Uma pseudo-esquerda - 2
Foi Mário Soares quem escreveu o prefácio do livro «O
que é governar à esquerda?». O Expresso (29/11/97)
publicou este prefácio.
É um longo documento onde o seu autor desenvolve algumas das
ideias que actualmente defende em relação à sociedade humana,
ideias que considera que são de esquerda.
Referiremos apenas algumas questões.
1. Em todo o texto não há uma palavra em
relação à existência de classes com interesses diferentes,
até antagónicos, nem nada se diz, claro, sobre a luta de
classes. A sociedade humana, para Mário Soares, parece não
comportar quaisquer contradições entre classes. Mas a verdade
é que o socialismo, o socialismo moderno, nasceu da existência
de classes antagónicas, em oposição ao capitalismo.
É certo que, quando Mário Soares se viu primeiro-ministro em
1976, senão antes, claro, pôs o socialismo na gaveta. Ele
próprio o afirmou. Somente o Partido Socialista não mudou de
nome, como deveria. Deveria passar a ser Partido Capitalista. Mas
este é um nome que nenhum partido capitalista jamais utilizou.
Escondem os seus objectivos com a classificação de socialistas,
social-democratas, democratas-cristãos, populares e outros
nomes.
E as noções de esquerda e de direita sempre têm estado ligadas
ao facto de se defender principalmente os interesses das classes
exploradas ou os das classes exploradoras. Para a esquerda, a
razão, a justiça, a liberdade estão estreitamente ligadas à
emancipação dos explorados; para a direita não.
2. MS constata «o aparecimento de preocupantes
formas de ideologização do mercado». Mercado, que
é um factor insubstituível de desenvolvimento
económico, mas que cria cada vez maiores
desigualdades, concentrando a riqueza e o poder real nas mãos
das grandes empresas trans e multinacionais. E reconhece
o alargamento assustador, cada vez maior, do fosso
terrível que separa os ricos dos pobres - pessoas e
nações, a existência de «um capitalismo hoje
essencialmente especulativo, sem pátria nem rosto (...) em busca
tão-só do lucro pelo lucro (...), um monstro (...)
que poderá vir a causar os maiores danos à humanidade» e que
as desigualdades só podem ser corrigidas através da
acção reguladora dos Estados ou (...) a nível das
organizações regionais.
Ao fazer tais apreciações, que acertam em questões da maior
importância, pensará MS que não contribuiu, quanto pôde, para
esse percurso económico e social? Não pode pensar isso.
3. MS diz que, genericamente, são de esquerda
aqueles que acreditam ser possível transformar o mundo
para melhor - e que se empenham nesse combate. Só é
necessário esclarecer o que é um mundo melhor. Há quem
considere que a evolução que tem havido e que agora parece
preocupar MS tem sido muito boa. Estão satisfeitos, para eles o
mundo está melhor. E o empenho de MS foi nessa evolução...
4. MS dá um grande relevo à questão
central da liberdade e, consequentemente, do pluralismo
político. É uma questão muito importante que foi muito
mal apreciada e acompanhada nos países socialistas. Mas não nos
enganemos com a liberdade que existe em muitos países
democráticos, incluindo Portugal, nem se pode
reduzi-la simples ou principalmente ao pluralismo político, o
qual, muitas vezes, não passa de uma farsa.
MS refere as liberdades e os direitos humanos, separando as
primeiras dos segundos talvez a pretender diminuir estes. Parece
que actualmente, nas democracias ocidentais, se
começa a compreender melhor a sua importância. Por exemplo, a
ministra britânica para o Desenvolvimento Internacional diz numa
entrevista (D.N., 17/12/97): Entendemos os
direitos humanos não somente como direitos políticos mas
também como direitos básicos - à alimentação, à educação,
à saúde - que vêm, aliás, expressamente referidos na
Declaração Universal dos Direitos do Homem.
5. MS afirma que em 1975 o país esteve
então à beira do abismo e sugere que a opção de
esquerda venceu, pelas armas, em 25 de Novembro. Esta foi, na
verdade, uma data extremamente favorável à direita. Até, entre
os socialistas, há quem saiba isso. Foi Filipe Nunes,
editor do Jovem Socialista, orgão oficial da JS, que
escreveu num seu editorial
(27/2/97), a propósito da votação sobre a despenalização do
aborto: Foi (...) mais uma vitória da direita dos
negócios e dos sectores mais reaccionários da Igreja Católica,
que desde o 25 de Novembro de 1975 têm vindo a recuperar, um a
um, todos os velhos privilégios (empresas, bancos, rádios) e a
obter outros que faltavam (universidades e canais de televisão).
6. MS apoia de alma e coração a União
Europeia e cita Cohn-Bendit, que se destacou na movimentação de
Maio de 68 em Paris e tem tido um percurso muito variável, que
afirmou que para se ser de esquerda é preciso ser a favor da
União Europeia...
Ninguém pode supor que MS não saiba muito bem quem manda na UE,
quais os interesses que esta serve. Quando MS critica o
capitalismo especulativo, a ideologização do mercado e o
alargamento do fosso entre ricos e pobres está a pensar em quê?
Não pensa na UE? Só a acção dos trabalhadores da UE, de todos
os seus verdadeiros cidadãos de esquerda, pode modificar o
caminho profundamente neoliberal, anti-social que tem sido
percorrido pela União Europeia.