Ciência e cultura




Rui Namorado Rosa
Professor catedrático na Universidade de Évora e no Instituto Superior Técnico (Lisboa)


A Ciência e a Tecnologia são conhecimento e saber fazer sem os quais os indivíduos e as sociedades são incompletos, frágeis e dependentes.
A aquisição de atitudes e competências no domínio da Ciência passa naturalmente pela Escola. Mas não só, também nos locais e actos de trabalho e nos locais e momentos de lazer (exemplarmente, através da comunicação social e dos espaços museológicos). Assim como o impacto da Ciência não se faz sentir apenas nos Centros de Investigação e nos Laboratórios, onde os conhecimentos se descobrem ou aplicam, mas sim na Sociedade em geral (nas empresas e nos serviços, em particular, ou na pura fruição do contacto com ela).
A Ciência é presença (ou ausência) no nosso quotidiano; é pensamento e objecto partilhado (ou escondido); é Cultura e é Poder.


A Cultura Científica no nosso País

O nosso País não se pode orgulhar pela sua Cultura Científica; a baixa escolaridade e a elevada iliteracia da população portuguesa, mormente no que respeita às disciplinas científicas, são indicadores da nossa fragilidade e dependência.
A comunidade científica portuguesa, infelizmente, não é forte; necessariamente internacionalizada (por essência mesma do modo de produção do conhecimento científico), pela sua relativa debilidade é particularmente dependente, sujeita mesmo, por vezes, a manifestações de provincianismo (o que acontece até aos mais elevados níveis de responsabilidade institucional e política); as sociedades científicas e associações profissionais de trabalhadores científicos não encontraram ainda força suficiente para se fazerem conhecer pela Sociedade em geral e reconhecer pelo poder político em especial (o que é menos perdoável e contraria a desejável interiorização da Cultura Científica pela Administração Pública e se repercute negativamente no conteúdo e resultados da governação).
Não é por termos um Ministério em vez de uma Secretaria de Estado da Ciência e Tecnologia que estamos melhor, nem necessariamente no caminho certo. Aliás, os atribulados processos de “avaliação” que decorreram em 1996/7 sobre os Centros de Investigação e os Laboratórios do Estado, mostraram que não basta invocar (em vão) a Ciência para ter a bênção da verdade ou de outras virtudes.


Sobre a avaliação institucional

A avaliação institucional é um procedimento necessário ao melhor conhecimento da organização, dos recursos e dos procedimentos, bem como dos sucessos e bloqueamentos que uma instituição encontra na prossecução dos seus propósitos. Mas uma avaliação de instituições de Ciência ou Tecnologia tem de respeitar a autonomia científica e técnica do seu sujeito, ser objectiva e competente e ser legitimada pela plena independência dos avaliadores e a participação plena dos avaliados.
Não foi isso que aconteceu com alguns Laboratórios do Estado avaliados em 1996/7. Aliás, também não teria sido necessário fazer tal avaliação para concluir por detectar já conhecidas disfunções da Administração Pública (será só nos Laboratórios?!) e para reconhecer a urgência e os termos das já reclamadas reformulação da carreira de investigação e criação de um quadro legal próprio para os Laboratórios do Estado. O mais importante seria que os Laboratórios fossem assumidos pelos respectivos Ministérios de tutela como instrumentos relevantes e actuantes das suas políticas sectoriais na Indústria, Agricultura, Ambiente, etc.. Neste sentido o progresso não se vê. E é isso que falta, porque a Cultura Científica não está interiorizada pela Sociedade e mais particularmente por quem a governa.
A avaliação dos Centros de Investigação exibiu traços perversos. Não bastou reconhecer sucessos e insucessos, virtudes e vícios internos e externos ao sistema de Ensino Superior, formular recomendações. Foi-se ao ponto de classificar os Centros em categorias, com por vezes suspeitosa correspondência com as realidades e com as negativas consequências daí decorrentes. E, aqui também, sem o devido cumprimento de regras que, como no caso dos Laboratórios do Estado, assegurassem o respeito pela autonomia da instituição avaliada e a objectividade e legitimidade plenas da avaliação. É de estímulos positivos que precisamos, não de agressões gratuitas. Tal tipo de avaliação chega a ser abusiva e não é em tais termos aceitável.


Necessário mudar de rumo

A realidade permanece sem que se veja mudança de rumo. Portugal é o país da União Europeia com indicadores mais pobres quanto a recursos existentes (a começar por investigadores e outros trabalhadores científicos) e recursos afectados (mormente financiamento de actividades de Investigação Científica e Desenvolvimento Experimental). Também expressivamente, Portugal é, desses países, o que exibe, de longe, mais baixa participação das empresas, seja no financiamento seja na execução de Investigação e Desenvolvimento.
Isto é, a nossa Economia é profundamente dependente, falta-lhe “inteligência” em termos médios e comparativos. E todavia observamos, este à semelhança de anteriores Governos, atarefado não em melhorar as competências intrínsecas e a produtividade das Empresas e até Serviços Públicos mas em privatizá-los, sem que ao longo de largos anos dessa mesma política se verificasse que a alienação dessas Empresas tenha servido para que incorporassem mais Ciência e Tecnologia nacional e se tornassem mais modernas e competitivas. E se essa política não serve a dinâmica e a independência da nossa Economia, também não pode, evidentemente, estimular as capacidades Científicas e Tecnológicas do nosso País nem enriquecer a Cultura Científica do nosso povo.


Ciência, força de transformação

A Ciência, como toda a forma ou expressão de Cultura, não é um ser etéreo suspenso no ar à espera de ser invocado por novos sacerdotes do “pós-modernismo” para que apareça; é sim força de transformação, real ou virtual, que reside (ou não) nos homens, que através deles encontra tradução material ou sensível, pela qual os transforma a eles mesmos, ao colectivo social em que convivem e ao ambiente físico em que habitam.
Por isso dizemos que não há política Científica que nos valha se as políticas Educativa e Económica, e todas as demais, não tomarem a Cultura Científica como um ingrediente indispensável ao nosso desenvolvimento. Ou seja, a política Científica tem de ser transversal para que exista de facto; pouco importará que a “Ciência” olhe para si mesma; importará sim que olhe para lá onde ainda não se encontra.

Cabe também às forças políticas com influência na Sociedade interiorizar os valores e as aquisições da Ciência, para melhor agirem e para melhor contribuírem para a transformação, que defendemos progressista, do Homem e da Sociedade.
Creio que a Revolução Social em que muitos acreditamos e por que muitos mais (ainda que com entendimento mais difuso mas com sentido muito mais concreto) anseiam, passa por sólida e mais democraticamente acessível Cultura Científica que contribua para e force um poder político qualitativamente novo.


«O Militante» Nº 233 - Março / Abril - 1998