Um processo. Uma luta exemplar




Jerónimo de Sousa
Membro da Comissão Política


Se há sectores que, no quadro actual, constituem referência e exemplo de luta, de capacidade de intervenção e organização no plano político e sindical são, sem dúvida, os ferroviários.
Isto apesar de ser um sector sujeito a uma avassaladora ofensiva que se desenvolve há anos e tem como objectivo final a privatização de áreas fundamentais e mais rentáveis, liquidando o carácter social dos caminhos de ferro.
Os sucessivos governos de direita e as administrações por si nomeadas tinham, à partida, um obstáculo: a força organizada do movimento sindical ferroviário.
Recuando na história até ao período inicial do 25 de Abril de 74, o movimento sindical unitário organizou-se com grande pujança em três Sindicatos e na Federação Sindical, a par da constituição da Comissão de Trabalhadores da CP, abrangendo praticamente o universo dos 28 mil ferroviários.
Após o início e o desenvolvimento do processo contra-revolucionário, uma linha ofensiva foi o fomento da pulverização sindical sustentada na criação de sindicatos de base profissional, alimentando sentimentos corporativos. Refira-se que, actualmente, para um universo de 16 mil trabalhadores ferroviários existem cerca de 30 organizações sindicais, algumas delas com pouco mais que a sigla.

Esta estratégia de divisão sindical era articulada com a marginalização da Federação nos processos de negociação da contratação por parte das sucessivas administrações que, simultaneamente, potenciavam e protegiam, de diversas formas, a actividade das organizações afectas às denominadas tendências socialista e social democrata. O objectivo central era, por um lado, eliminar a capacidade negocial da Federação e, por outro, desfigurar a convenção colectiva unificadora dos direitos dos ferroviários.
Simultaneamente, a Administração desencadeia um processo de eliminação de milhares de postos de trabalho efectivos, substituindo-os por empreitadas e pelos vínculos precários, enquanto concretiza a primeira fase do desmembramento através da criação de várias empresas afiliadas da CP, com destaque para a Emef e Soflusa.
No decurso deste processo, perante a reacção e a luta dos trabalhadores ferroviários filiados nos sindicatos unitários, verificou-se por parte do Sindicato dos Maquinistas (com real influência) uma demarcação sistemática ou a realização de greves isoladas - 800 maquinistas em greve por alguns dias, provocavam mais impacto do que 10.000 ferroviários paralisados nas oficinas e no movimento, durante semanas, como aconteceu na década de 80.
No seio dos ferroviários foi-se instalando a ideia de que sem os maquinistas, a luta não resultaria.


O valor da luta e da organização

Com uma capacidade de resistência e reacção notáveis, a estrutura sindical e a CT definem objectivos prioritários de acção, organização e luta:

1º - Defesa dos direitos dos ferroviários.
2º - Defesa e modernização dos caminhos de ferro e do seu carácter público e social, considerando o sector como um todo.
3º - Reforço da organização, criação de Comissões de Trabalhadores nas empresas desmembradas, maior intervenção sindical nos locais de trabalho, diversificação das formas de luta, sem abandonar a possibilidade de recurso à greve.

No início da década de 90 e ainda durante o consulado cavaquista, os sucessivos falhanços dos denominados “planos de recuperação e modernização dos caminhos de ferro” e o galopante endividamento e degradação económico-financeira e da qualidade dos serviços da CP desmascararam o argumento da necessidade de “redimensionar” o número de efectivos e os direitos sociais para relançar o sector. A eliminação massiva de mais de 7 mil postos de trabalho e a desregulamentação de direitos aceite pelos sindicatos UGT só vieram agravar a situação, além de também quebrar atentismos.
A vida veio dar razão ao movimento sindical unitário. Com a consciência mais desperta para os perigos, os ferroviários desencadearam e diversificaram a luta, através de processos grevistas, concentrações, desfiles, plenários. A Federação é de novo chamada a negociar a contratação, conseguindo em 1996 um acordo na CP que, no fundamental, garantiu os direitos consagrados no Contrato e abriu novas possibilidades de retomar a iniciativa na Emef e na Soflusa. As listas unitárias vencem as eleições para as três Comissões de Trabalhadores.


Uma nova fase da luta

Com a formação do Governo PS e no quadro da sua política de aceleração das privatizações assistiu-se a uma mudança táctica das administrações orientadas pelo ministro dos Transportes. Era necessário neutralizar o movimento sindical unitário pela via da corresponsabilização no processo que culmine na privatização das unidade e serviços rentáveis.
Não se escusando ao diálogo e à negociação, a Federação coloca, como condição prévia, a garantia e consagração dos direitos e conquistas dos ferroviários, a par da defesa do carácter público e social dos caminhos de ferro.
A força das suas propostas é sustentada no esclarecimento, no envolvimento e na mobilização dos trabalhadores ferroviários, partindo dos seus problemas, aspirações e reivindicações concretas, seja na resolução da questão do horário de trabalho dos guardas de passagem de nível, seja no desbloqueamento da negociação da contratação na Emef, seja na apresentação de propostas para modernizar os caminhos de ferro, que comportem a dimensão social para os trabalhadores e utentes.
No plano da organização novas questões se colocam. Com a redução drástica do número de trabalhadores efectivos baixou o nível de sindicalização. Simultaneamente, como corolário de novos desmembramentos, surgiram novas empresas a exigir organização e eleição de estruturas sindicais e unitárias.
Partindo para um dinâmico processo de reestruturação sindical, os três Sindicatos e a Federação vão constituir um Sindicato Nacional para concentrar meios e estrutura e, simultaneamente, descentralizar a acção e a intervenção sindical nos locais de trabalho, potenciando os pólos sindicais no sul, centro e norte.
Na Refer, empresa formada recentemente, com mais de 1.000 trabalhadores transferidos da CP, está em curso o processo de constituição de uma nova Comissão de Trabalhadores que, em conjunto com as três já existentes, podem criar as condições para o surgimento da Comissão Coordenadora das Comissões de Trabalhadores do Sector Ferroviário.
Lutar e organizar, organizar para melhor lutar é o caminho encontrado pelos ferroviários para responder à ofensiva e, simultaneamente, às novas realidades nos caminhos de ferro.


«O Militante» Nº 233 - Março / Abril - 1998