Agricultura portuguesa e agenda 2000

Por Carlos Amaro
Engenheiro Agrónomo
Membro da Comissão Nacional para as Questões de Agricultura do PCP




A agricultura portuguesa está em crise, não obstante uma ligeira melhoria da situação que se verificou nos últimos três anos.

Mas, como se sabe, a agricultura é um sector económico cujo processo de produção é condicionado por factores aleatórios - ocorre em meio biológico e está sujeito a contingências climáticas. Esta aleatoriedade tem mais peso quando o desenvolvimento tecnológico é mais limitado, como é o caso da agricultura portuguesa.

Evolução da situação da agricultura

A avaliação da sua evolução só ganha, pois, sentido quando o período em análise é suficientemente alargado de modo a “absorver” variabilidades anuais contingentes.

É neste contexto, e tendo em conta os dados disponíveis e comparáveis, que procuraremos dar uma visão da evolução da agricultura, tendo como referência, tanto quanto possível, o ano de 1986, em que se concretizou a adesão à então Comunidade Económica Europeia (CEE).

- A evolução da estrutura agrária apresenta três características essenciais: a concentração da terra a Sul do Tejo; a acentuação da estrutura minifundiária no resto do País; e, consequentemente, o aprofundamento das assimetrias regionais da estrutura fundiária. Entre 1989 e 1995 desapareceram cerca de 140 mil explorações. A área média das explorações agrícolas no Alentejo aumentou 24%, enquanto, no mesmo período, a área média das explorações a Norte do Tejo e no Algarve baixou 30%.

- A evolução da produção em valor (preços constantes de 1996), entre os biénios 1986-87 e 1995-96, expressa pelo Valor Acrescentado Bruto a preços de mercado (VABpm) baixou 3%. A produção vegetal registou um decréscimo de 6%, tendo os cereais baixado 11%. A produção animal cresceu 22% devido ao aumento da produção de carne de suíno e de aves, predominantemente pecuárias industriais, ou seja, com recurso crescente a importações de cereais, oleaginosas e outros produtos para alimentação animal. Entretanto, a produção de carnes de bovino e ovino e caprino baixou, respectivamente, 16% e 14%.

- A taxa de cobertura das importações agrícolas, entre 1986 e 1995, baixou de 60% para 40% (-20 pontos percentuais). Nos cereais, o grau de auto-abastecimento baixou de 49% para 40% no período 1989/1990-1994/95, na carne de bovino baixou de 79,1% para 54,3% e na carne de ovino e caprino de 82,4% para 75%, no mesmo período. Mesmo em sectores em que a produção interna excede o consumo, como é o caso das frutas e hortícolas, verifica-se que entre 1991 e 1995 a liberalização do mercado gerou um crescimento de importações, respectivamente de 56% e 156%, enquanto a produção nacional é destruída, sem escoamento no mercado.

- A evolução dos rendimentos dos agricultores baixou, entre 1989 e 1993, 43%, considerando o total de activos agrícolas, e 33%, considerando apenas o trabalho familiar. Após a reforma da Política Agrícola Comum (PAC) de 1992 regista-se, a partir de 1993, uma melhoria dos rendimentos que, todavia, está longe de compensar as quebras sofridas anteriormente. É uma melhoria que resultará, não tanto da evolução da economia agrícola, mas sobretudo da recuperação da produção face a anos anteriores marcadamente atingidos por más condições climatéricas, associada a uma menor descida dos preços mundiais do que a prevista, e conjugada com os subsídios de apoio directo criados pela reforma.

Na evolução da agricultura portuguesa concorreu negativamente a PAC e as políticas agrícolas de sucessivos governos do PSD e agora, igualmente, do PS, as quais têm agravado ainda mais a situação.

Acresce ainda que uma série de acidentes climáticos tem afectado fortemente a situação dos agricultores, agudizando ainda mais a descapitalização do sector, sem que o Governo tenha sido capaz de enfrentar a situação eficazmente.

Como aspecto positivo regista-se a decisão da Comissão Europeia sobre o financiamento do Alqueva, pondo na ordem do dia a necessidade de uma reforma agrária no Alentejo que garanta a democratização do acesso à terra àqueles que nela querem trabalhar e viver, e permita essa mesma democratização para a sua utilização, mesmo para usos não agrícolas.

É inaceitável que um empreendimento avaliado em cerca de 300 milhões de contos, pago com dinheiros públicos, venha beneficiar "meia dúzia" de agrários detentores da terra, quer na sua utilização agrícola quer noutros fins, enquanto os campos do Sul vão perdendo população.

Refira-se ainda o reconhecimento pelo Ministério da Agricultura da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), ainda que limitado. Continua a não integrar os Conselhos Económicos e Sociais, português e europeu, devido a cedências do Governo, designadamente do primeiro-ministro, às pressões da CAP. Não obstante a participação da CNA em diversos órgãos consultivos do Ministério tem permitido que, em diversas instâncias da administração, nomeadamente junto do ministro, se passasse a ouvir a voz da agricultura familiar, o que não pode deixar de se registar como aspecto positivo da actual conjuntura política.

A Agenda 2000

A reforma da PAC que se prepara para o ano 2000 não é de molde a criar melhores expectativas. Pelo contrário, parece que tudo irá agravar-se.

A reforma que se projecta aprofunda, nos seus aspectos mais negativos, a reforma de 1992, nomeadamente nos seguintes:

- É dirigida fundamentalmente aos sectores produtivos predominantes no Norte da Europa, enquanto os produtos mediterrânicos predominantes no Sul vão sendo objecto de alterações sectoriais que, aliás, apontam de um modo geral, num sentido penalizador para a agricultura portuguesa, como são os casos das frutas e hortícolas, vinho e azeite;

- acentua-se e consolida-se a dicotomia entre os chamados agricultores produtivos e não produtivos, com a consequente distinção entre apoios ao investimento e à produção e apoios directos aos rendimentos desligados da produção;

- continuará a contenção de preços à produção, o que irá estimular acréscimos de produtividade com a consequente degradação ambiental que um quadro de competitividade acrescida irá acentuar, ao mesmo tempo que se proclamam preocupações com a natureza e se propõem aos países e agricultores menos competitivos medidas agro-ambientais, os quais, por esta mesma razão, são aqueles países e regiões em que a degradação ambiental é menos sentida e são aqueles agricultores cujo processo produtivo é menos intensificado;

- acentuar-se-á a retracção da produção não apenas através dos preços, como ainda pela fixação de quotas de produção, florestação, rebanhos de referência. Continuará o “set-aside” (retirada de terras da produção), ainda que sem carácter obrigatório, com os respectivos subsídios, o que significará que, após 2000, o País continuará a assistir à iniquidade de grandes agrários receberem, pela inactividade produtiva, centenas de milhar de contos de renda fundiária, como já este ano o PCP tornou público.

Para além destes aspectos essenciais imediatos, a reforma que se desenha abre as portas à intervenção financeira dos Estados-membros nalgumas áreas através de ajudas nacionais a partir dos respectivos orçamentos, o que parece indiciar uma tendência para a chamada renacionalização da PAC a médio prazo, fortemente penalizadora dos Estados como Portugal, de menor capacidade financeira face aos países mais ricos.

A ser assim, significará que começam a ter vencimento as teses do mais puro e duro liberalismo no âmbito da agricultura. Ou seja, a PAC, enquanto política comum da União Europeia, estará com um fim anunciado a médio prazo, e os destinos das agriculturas e dos agricultores europeus serão entregues, após um maior ou menor período de tempo de transição, aos mecanismos selectivos de mercado. Foi esta a tese difundida num recente fórum da agricultura e assumida, senão oficial, pelo menos oficiosamente, pelo Ministério da Agricultura.

A situação da agricultura e do mundo rural constitui uma questão que respeita directamente aos agricultores, mas que interessa também a todos os portugueses e à opinião pública em geral.

Constata-se, porém, que, mais recentemente, a política agrícola tem sido objecto da atenção dos órgãos de comunicação, não pelas questões nucleares que afectam o presente e o futuro da agricultura e dos agricultores mas, sobretudo, pela guerrilha que tem pautado as relações entre o “aparelho agrícola” do PS e o ministro - questão esta que respeita apenas à vida interna do PS - e, por outro lado, entre a CAP e o ministro.

Neste último caso é preciso que se diga que o que está em causa não são as políticas e orientações de fundo que têm pautado a actuação do Ministério - nas quais, aliás, a CAP e o ministro convergem, no essencial - mas apenas o desespero desta organização pelo reconhecimento da CNA e perda da exclusividade da representação dos agricultores e, bem entendido, das vantagens financeiras e políticas que essa exclusividade implicava.

O PCP não se envolve nem envolverá em encenações de falsa oposição que apenas contribuem para desviar as atenções dos agricultores, e da opinião pública em geral, dos problemas reais com que a agricultura se confronta, nos quais o PSD, como o PS, têm as maiores responsabilidades políticas, e de que a CAP foi sempre cúmplice.

O PCP está e estará firme na luta contra todas as medidas e orientações - quer da responsabilidade própria do Governo, quer oriundas da PAC - que têm arruinado e continuam a arruinar a agricultura e os agricultores.

O PCP permanecerá firme na defesa e preservação da agricultura e do mundo rural em Portugal.


«O Militante» Nº 231 de Novembro/Dezembro de 1997