Lutar contra os efeitos e as suas causas
Extrema-direita e
nacionalismo reaccionário

Por Carlos Aboim Inglês
Membro do Comité Central




Dia 3 e 4 de Maio de 1997, realizou-se em Larnaca, Chipre, um Encontro Internacional promovido pelo AKEL - Partido Progressista do Povo Trabalhador, sobre o tema: A posição do movimento da Esquerda na época actual e a necessidade da sua convergência para enfrentar a ofensiva neoliberal e a Nova Ordem Mundial - De que modo deve o movimento da Esquerda dar resposta aos esforços feitos no sentido de explorar o nacionalismo, o chauvinismo, o racismo e o fanatismo religioso com o objectivo do domínio neoliberal e da Nova Ordem Mundial?

Participaram no Encontro 37 partidos e organizações comunistas, socialistas, de esquerda e progressistas de 25 países. O PCP esteve representado pelo camarada Carlos Aboim Inglês, cuja intervenção reproduzimos.



O tema que os camaradas do AKEL propuseram para a discussão neste Encontro Internacional coloca o dedo na ferida de um dos mais sérios fenómenos com que hoje se defrontam os comunistas e todas as forças de esquerda e progressistas. Abordarei apenas e brevemente alguns tópicos.



1.


O desaparecimento da URSS e dos países socialistas da Europa do Leste alterou radicalmente a correlação de forças à escala do mundo.

Enfraquecendo generalizadamente a frente das forças do progresso social, da paz e da independência nacional, permitiu ao imperialismo desencadear uma poderosa ofensiva, em múltiplas frentes, para impor aos trabalhadores e aos povos, com a proclamada Nova Ordem Mundial, o domínio universal do capitalismo sob a hegemonia dos EUA.

Esta ofensiva do imperialismo potenciou ainda mais a ofensiva dita “neoliberal” do grande capital que, com Thatcher e Reagan, já vinha de trás, ligada à nova fase de funcionamento do capitalismo desde começos dos anos 70, fase em que avulta, entre outros factores, o crescente papel e poder das maiores empresas transnacionais e do capital financeiro, cada vez mais rentista e especulativo.

A brutal concentração e centralização do capital nesta reduzida oligarquia, a utilização capitalista das novas tecnologias saídas da revolução científica e tecnológica, a crescente dificuldade de rentabilização do capital produtivo, a enorme deriva financeira rentista e especulativa, a busca desesperada de novos sectores para a obtenção de mais-valia, etc., deram lugar a uma generalizada vaga de privatizações de empresas e serviços públicos e ao ataque sistemático aos direitos e conquistas dos trabalhadores e das populações. Por todo o lado aumenta a exploração da força de trabalho, cresce o desmantelamento do chamado “Welfare State” (Estado Providência), aumenta o desequilíbrio na distribuição dos rendimentos.

Necessariamente, a outra face das políticas neoliberais tem sido o desastre social, com o desemprego maciço e crónico a atingir as taxas da grande depressão dos anos 30, uma generalizada precarização das condições de trabalho e da existência, a ampliação da pauperização e da marginalização social, que assumem percentagens crescentes mesmo nos países capitalistas mais desenvolvidos e atingem, à escala mundial, em níveis incapazes de garantir a subsistência, mais de 1/5 da população do planeta.

Tal só tem sido possível (e estes são outros tantos domínios em que se expressa a ofensiva do grande capital e do imperialismo, que aqui apenas refiro) com o desenvolvimento de processos de degradação da democracia e da vida política, de deriva cultural obscurantista, de agravamento da militarização, das ingerências e da agressividade imperialistas.

Os interesses e actividades das colossais maiores empresas transnacionais, os processos de integração supranacional sob o seu comando, a acção dos mecanismos internacionais da Nova Ordem imperialista (G-7, OCDE, FMI, BM,OMC, NATO, etc., etc.), a instrumentalização da ONU e da OSCE e a subversão do direito internacional - têm espezinhado os interesses vitais e a soberania dos povos e países do mundo menos poderoso, no interesse dos EUA e das outras maiores potências imperialistas. Tudo isto no quadro de uma renovada exacerbação das rivalidades inter-imperialistas e da luta pela redistribuição das suas “zonas de influência”.

O mundo, neste final do século XX, é um mundo mais instável, mais inseguro, mais incerto do que era há apenas poucas décadas atrás. Mas a História não poderá ser parada. E a luta dos trabalhadores e dos povos vencerá esta conjuntura perigosa.



2.


Este é, cremos, muito breve e incompletamente delineado, o contexto profundo em que se alimenta a reactivação das forças de extrema-direita fascizante a que se assiste mais ou menos por todo o lado, acompanhada pelos surtos do nacionalismo reaccionário, do chauvinis-mo, da xenofobia, do racismo, do fanatismo religioso e outras manifestações de irracionalismo ideológico.

A falência e ruína de milhões de pequenos e médios empresários; a desvalorização do trabalho criador e o agravamento da concorrência para a obtenção desse bem cada vez mais escasso que é um emprego; a pobreza, a desprotecção e a marginalização social massiva e prolongada; a expulsão de milhões de camponeses da terra e o crescimento anárquico de megacidades; o cancro da corrupção a partir dos mais altos estratos da sociedade e dos Estados; o alastrar da criminalidade, das mais variadas mafias, dos tráficos da droga, da prostituição, etc.; o esmagamento das soberanias, das identidades e das culturas nacionais; o acirrar das diferenciações étnicas, tribais, religiosas, etc.; o descrédito das instituições democráticas pela sua manipulação pelo poder económico e outros “poderes de facto” não democraticamente legitimados; as limitações ao carácter representativo dos organismos eleitos; sistemas eleitorais que falseiam a livre escolha dos cidadãos para perpetuar no poder, em alternância, partidos apenas formalmente distintos, mas que no essencial realizam as mesmas políticas ao serviço do grande capital; a “mediatização” e o “espectáculo” na vida política, que afasta os cidadãos de uma activa participação cívica; a perda de referências políticas e éticas; o massacre ideológico globalizado pelos “media”, propriedade do grande capital, impondo os dogmas do seu “pensamento único” para excluir das consciências a possibilidade de outras alternativas; a banalização da violência, da superstição, de uma “subcultura” de degradação moral e baixos valores, tudo conduzindo à confusão, à angústia, ao medo, à sensação de desamparo ou de desespero, insuportável e por isso mesmo cegamente explosivo; o apontar insistente de falsos culpados para os males que as grandes massas sofrem; o inculcar da crença da salvação em “super-homens” providenciais - tudo isto são ingredientes que formam o caldo de cultura para a extrema-direita, a xenofobia, o racismo, os fanatismos religiosos, o exacerbar dos mais negativos sentimentos étnicos, tribais e do nacionalismo reaccionário.

Todos estes factores (e estes são grandes perigos), por um lado, cavam divisões entre os trabalhadores e entre os povos; por outro lado, contribuem para formar uma base social e ideológica de recurso para soluções de força por parte do grande capital e o imperialismo.


Duas observações apenas ainda:


1) Pensamos que devemos dis-tinguir, do nacionalismo reaccionário, por um lado, os justos interesses, sentimentos e lutas em defesa da soberania, independência e identidade nacional, contra o domínio opressivo e explorador do imperialismo, do grande capital transnacional e do seu “pensamento único”. Fazer esta distinção parece-nos essencial para quem foi, é e quer ser internacionalista na luta de classes global contra a supranacionalidade imperialista e pela mais ampla e necessária cooperação internacional dos povos e dos países, em pé de igualdade e até mesmo no interesse mútuo. Atente-se que até mesmo as próprias experiências da URSS e da Jugoslávia, por exemplo, recomendam o maior cuidado neste domínio.


2) Para o imperialismo e o grande capital, as ideologias, actividades e organizações de extrema-direita, etc., que eles próprios muitas vezes fomentam e organizam, servem para as opor às forças revolucionárias, de esquerda, progressistas e libertadoras; para iludir e confundir as causas reais da situação em que as massas se en-contram; para assim dificultar o avanço de uma verdadeira alternativa e, caso necessário e como recurso de última instância, impor pela força bruta a manutenção do seu poder.

Mas para as massas populares que aquelas forças conseguem mobilizar, os motivos que as movem são fundamentalmente a degradação da sua situação sócio-económica e a falta ou insuficiência de uma alternativa política e ideológica progressista das forças revolucionárias e de esquerda, que seja para elas credível.

Não podemos pois confundir grande parte dessas massas com os nossos inimigos principais que manipulam o seu desespero.



3.


As concretas situações nacionais e regionais quanto à incidência e gravidade dos fenómenos de extrema-direita fascizante, nacionalismo reaccionário, xenofobia, racismo, fanatismo religioso, etc., são diferenciadas. Também diferenciadas são, não apenas à escala do mundo e suas regiões, mas também nacionalmente, as forças revolucionárias, de esquerda e progressistas, quer nas suas características de classe, quer na sua ideologia, quer no seu grau de organização, de força política, de implantação nas massas, etc.. Cremos pois que, para que se alcance a máxima eficácia, se não deverá buscar soluções únicas universalmente válidas.

Mas pode haver, e deve haver, e temos de nos esforçar por que se desenvolva, mais e mais, convergência na acção e uma base mínima de unidade de pensamento neste domínio. E ela pode e deve ser muito ampla nas forças a fazer convergir. Também, a nosso ver, neste domínio, a base nacional para a acção de cada força nos parece incontornável lugar de luta. Mas simultaneamente, a solidariedade internacionalista e a acção comum ou convergente à escala internacional é indispensável para o êxito de todos e de cada um. É essa convicção que nos reune aqui.



4.


Para terminar, algumas últimas observações.

Podemos e devemos todos buscar entendimentos e desenvolver esforços, à escala nacional e internacional, para a mais ampla convergência na acção contra os surtos da extrema-direita fascizante, do nacionalismo reaccionário, xenofobia, racismo, fanatismo religioso, etc.. Há múltiplas e específicas organizações de massas unitárias, cujo carácter unitário e de massas devemos defender e fomentar, para conseguir desenvolver o maior esclarecimento e mobilização possível contra tão perigosos fenómenos. Essa é uma frente de luta directa, indispensável e constante.

Mas estes fenómenos não são uma realidade “em si” fechada, não são fruto de um “mal” isolado e abstracto. Eles têm causas profundas e determinantes. A luta contra as políticas, práticas e ideologia do imperialismo, da Nova Ordem imperialista, do neoliberalismo que hoje corporiza os interesses do grande capital e tão nefastas consequências têm para os trabalhadores e os povos (como estamos a assistir na Europa com as consequências do Tratado de Maastricht e a sua injusta, antidemocrática e anti-social “construção europeia” supranacional), a luta contra essas causas profundas é igualmente indispensável. É por isso de saudar vivamente o recrudescer que se desenha das lutas dos trabalhadores e das massas populares a que estamos a assistir, na Europa e não só, e que contribuem elas também poderosamente para o combate à extrema-direita, à xenofobia, ao racismo, ao nacionalismo reaccionário e fanatismo religioso, fazendo prevalecer o sentido da comunhão de interesses vitais e o justo caminho para fazer avançar uma autêntica alternativa.

Por outro lado, tanto para atacar essas causas profundas como para vencer estes perigososos fenómenos, é imprescindível que as forças revolucionárias, de esquerda e progressistas, consigam afirmar na consciência das massas uma autêntica alternativa ao carácter anti-humano, explorador, opressor, agressivo, antidemocrático e obscurantista, que o capitalismo hoje assume à escala mundial.

Para nós, comunistas portugueses, é falso o proclamado “triunfo definitivo do capitalismo”. Hoje o capitalismo tornou-se não só um obstáculo ao progresso social mas é mesmo uma ameaça à civilização. A alternativa necessária continua a ser o socialismo, renovado e enriquecido pelo património de experiências positivas e negativas do século XX, relançado pela luta dos trabalhadores e das mais amplas massas populares e pela luta teórica e ideológica. Conscientes das dificuldades mas com convicta confiança, essa é para nós a grande perspectiva de progresso so-cial, de libertação e humanização do mundo com que entramos no século XXI.


«O Militante» Nº 229 de Julho/Agosto de 1997