Rafael Bordalo Pinheiro

Por Vasco Granja
Divulgador de banda desenhada




Rafael Bordalo Pinheiro (1846/1905) é considerado como o primeiro artista português que criou histórias desenhadas com sequências lógicas, contendo textos integrados de forma harmoniosa, concebendo cada imagem como uma unidade indissociável do conjunto.

Coube a Rafael dar a mais valiosa contribuição de desenhadores portugueses para o desenvolvimento de uma nova expressão artística que mais tarde seria conhecida como histórias aos quadradinhos.

Neste domínio ele foi um desbravador de grande mérito, tal como aconteceu com o suíço Rodolphe Töpffer, os franceses Caran d’Ache, Benjamin Rabier e Gustave Doré, os britânicos Thomas Rowlandson e Marie Duval, o alemão Wilhelm Busch, os famosos pioneiros daquilo que hoje se designa correntemente como banda desenhada, denominação inventada em França em época recente.



Sólida formação cultural


Nasceu no seio de uma família devotada às artes, nomeadamente o pai, que nele exerceu forte influência: Manuel Maria (1815/1880), notabilizado como escultor e gravador. O seu irmão Columbano (1857/1929) foi certamente um dos grandes pintores portgueses de sempre.

Rafael teve uma sólida formação cultural e bem cedo revelou acentuada tendência para se exprimir através do desenho, da aguarela, da caricatura e da pintura, manifestando igualmente irresistível vocação para o teatro, chegando a representar como amador. Mas o pai não via com bons olhos que o filho se inclinasse para as luzes da ribalta...

Frequentou a Academia de Belas-Artes, teve um emprego que nada significou para ele e foi realmente a intensa actividade de desenhador e de pintor que caracterizou a sua vida artística.



Editor e director de jornais, revistas e álbuns


Revelou qualidades excepcionais para editar e dirigir jornais, revistas e álbuns de natureza satírica que o tornaram popular junto de numerosas camadas de leitores. Publicações que repousavam nele em grande parte.

A primeira incursão neste domínio ocorreu em 1869 com a revista O Calcanhar de Aquiles, que se prolongou até ao ano seguinte. Tratava-se de observações muito acutilantes acerca do meio literário da época mas sem azedume. Deve dizer-se que esta foi uma regra que Rafael aplicou sempre em todos os seus trabalhos.

No ano seguinte lançou, entre outras publicações, A Berlinda, onde critica o conservadorismo político da época. O último número deste semanário revelou o espírito contestador de Rafael, ao focar a acção censória do Governo perante o ciclo das Conferências do Casino, nas quais um grupo de escritores procurava informar a opinião pública acerca das novas correntes do pensamento europeu. O autor utilizou o acontecimento para descrever em trinta imagens sucessivas, colocadas em cinco tiras e colando as legendas na parte inferior, levando o leitor a lê-las desde o princípio até ao fim. Podia-se «ouvir» o narrador, ou seja, Rafael... Ali se descreviam todos os tipos característicos da sociedade portuguesa. O povo famélico cantava o fado, os ministros arrogantes discursavam sem nada dizerem de concreto, o clero revelava fartura, as dançarinas do «cancan» excitavam o auditório, a corrupção estava em todo o lado. Enfim, uma sociedade de sucesso... A história tinha como título “Conferências Democráticas”.

No ano de 1872, e indo ainda mais longe do ponto de vista crítico e na concepção, lançou Apontamentos de Rafel Bordalo Pinheiro sobre a Picaresca Viagem do Imperador de Rasilb pela Europa, a sua maior obra do género, pois desenrolava-se ao longo de catorze páginas com cento e vinte desenhos. Foi um grande êxito e teve três edições. Rasilb era o anagrama de Brasil e o imperador em causa, D. Pedro II, vive peripécias inesperadas em diversos países que o deixam estarrecido, convivendo com pessoas ilustres e cometendo alguns dislates durante a acidentada excursão...

De excelente qualidade gráfica, e particularmente acutilante no que se refere à interpretação crítica, é a história aos quadradinhos intitulada M. J. ou a História Tétrica duma Empresa Lírica, que foi editada em dois folhetos no ano de 1873. Tratava-se de uma estranha aventura vivida por Manuel José Ferreira, que criara uma periclitante associação para explorar o Teatro São Carlos de 1873 a 1876. O homem não estava preparado para a função de administrador do famoso Teatro Lírico e acabou por ir à falência. A história foi publicada em dois cadernos de quatro páginas, com imagens colocadas livremente em quatro tiras, à excepção da página seis, contendo cinco tiras. A caracterização das personagens é mais elaborada, retratando figuras conhecidas que frequentavam habitualmente o teatro. Os desenhos são concebidos com muita elegância e firmeza de traço, há numerosos efeitos cómicos, como a imagem deitada em que M. J. é elevado a grande altura, ou ainda os grandes planos dos assinantes antes e depois da entrada na sala, sem contar com os saborosos pormenores das mãos da claque e dos pés dos espectadores e também as imagens sucessivas do Governo a abanar as orelhas e torcendo o nariz...



Notável caricaturista


A sua produção artística no domínio da caricatura, do desenho humorístico e das histórias desenhadas, foi invulgar não só pela qualidade como também pela quantidade.

Foi experimentador no mais completo sentido da palavra, procurando desenhar imagens demolidoras para combater a mediocridade de uma sociedade que foi incapaz de se modernizar. Lançou um olhar muito cáustico para os políticos e governantes do seu tempo, incapazes de orientar o país no caminho do progresso e do bem-estar do povo.

A sua obra é muito vasta e encontra-se espalhada por milhares de páginas que constituem um dos mais importantes repositórios da sociedade portuguesa no final do século passado. As publicações que dirigiu e para as quais concebeu centenas e centenas de desenhos, com destaque para:A Lanterna Mágica (1875), António Maria (1876/1885), Álbum das Glórias (1880/1906), revelaram excepcional capacidade de fazer rir o público, castigando com humor os diversos poderes instituídos. E não ignorando o seu valioso trabalho de ceramista...

Criou uma figura popular que permanece viva e actual no comportamento e na maneira de viver do povo português: o Zé Povinho, síntese de indómita rebeldia e de sofrido conformismo, falando em nome de todos aqueles que normalmente não têm voz... A perenidade do Zé Povinho ganha novos contornos no momento actual, mas agora a contestação é mais actuante e consequente...


«O Militante» Nº 229 de Julho/Agosto de 1997