«O Militante» Nº 227 de Março/Abril de 1997 - «As jovens de Abril»

«As jovens de Abril»

Por Margarida Botelho
Membro do colectivo do AGIT




Para quem já nasceu depois da Revolução de Abril e à luz da Constituição de 1976, é talvez difícil conceber o quanto evoluíram os direitos das mulheres desde os tempos do fascismo. Difícil perceber talvez o carácter profundamente revolucionário, para a época, de artigos como o nosso 13º da Constituição, que consagra a igualdade entre sexos em todos os domínios.

Mas se se souber que só em 1976 foi abolido o direito do marido abrir a correspondência da mulher, ou que os patrões podiam livremente despedir uma trabalhadora, se soubessem que o marido não tinha dado autorização para que esta trabalhasse fora de casa, tornam-se mais perceptíveis as conquistas de Abril na área dos direitos das mulheres.

Uma panorâmica, necessariamente rápida e muito geral, pelas evoluções legislativas dos últimos 23 anos, e um olher voltado para o futuro e para o tanto que ainda está por legislar e efectivar, são os objectivos deste artigo.

Alterações legislativas

Como é óbvio, os direitos das mulheres desde sempre mais defendidos e mais atropelados dizem respeito à igualdade no trabalho e à protecção à maternidade.

Logo em 1974, três diplomas abrem o acesso das mulheres a todos os cargos das carreiras diplomática e administrativa local, bem como à magistratura, até então reservados aos homens. Três portarias, publicadas entre 91 e 92, permitem às mulheres o cumprimento do serviço militar. Todas as restrições ao voto baseadas no sexo são abolidas em Novembro de 79.

Em 78 desaparecem os estatutos de chefe de família e de dependência. Os cônjuges são juridicamente encarados como adultos conscientes, responsáveis e iguais em direitos.

Paralelamente, e com a reforma de 1977 do Código Civil, é consagrada a união de facto. E estabelecidas normas de protecção da mulher, por ocasião da morte do companheiro: direito a receber pensão de alimentos da herança por ele deixada, direito a continuar o arrendamento, se a união durasse há mais de cinco anos. Na área da habitação, em 1981 foi aprovada uma proposta do PCP que exige que as acções de despejo venham sempre em nome dos dois cônjuges, evitando as situações de separação em que o marido não reclamava a ordem de despejo - porque nem sequer vivia naquela morada - e a mulher se via posta na rua sem aviso prévio.

Além dos avanços garantidos na Constituição, em 76 institui-se a licença de maternidade de 90 dias e a criação de consultas de Planeamento Familiar. É permitido o acompanhamento familiar no parto, dando aos pais entrada num mundo inteiramente novo que até então lhes era vedado: o do parto. E em 1984, depois de uma discussão intensa que volta agora de novo à ordem do dia, permite-se a interrupção voluntária da gravidez (IVG) em três casos: terapêutico (se a vida da mãe correr perigo, até às 12 semanas), ético (em caso de violação, também até às 12 semanas) e eugénico (no caso de malformação do feto, permitido até às 16 semanas).

A protecção contra a exploração sexual da imagem feminina nos meios de comunicação social, uma área mais esquecida mas nem por isso menos importante, é também objecto de regulamentação em 1981. O Código da Publicidade, posteriormente melhorado, recomenda a não discriminação com base no sexo e a não objectificação sexual das mulheres.

Os números do contentamento e os do descontentamento...

As desigualdades no trabalho entre sexos estão bem patentes nas cifras oficiais, apresentadas pela Comissão para a Igualdade e Direito das Mulheres: em 1993, a remuneração média mensal de base das mulheres do Continente era 76,1% da dos homens; 52,4% dos desempregados eram, no último trimestre de 95, mulheres. E o mercado de trabalho apresentava uma taxa de feminização na ordem dos 44,9%.

Perguntar porquê é legítimo. Se é verdade que quase um quarto (23%) das mulheres portuguesas nunca frequentou a escola e não sabe ler nem escrever, também é verdade que a situação se tem invertido nos últimos anos. Em 1995, dos portugueses com menos de 30 anos habilitados com curso superior, 63,3% eram mulheres. E, neste momento, representam 56,3% das matrículas no ensino superior português.

Não parece, portanto, disparatada a presunção da discriminação das mulheres no acesso ao emprego. E o PCP chegou mesmo a apresentar, durante a última legislatura, um projecto-lei que estabelecia regras para que isso não acontecesse. Alertado pelo caso do Banco Comercial Português (BCP) - que, lembremos, não admitia mulheres nos seus quadros -, o nosso Grupo Parlamentar propunha uma presunção de discriminação com base na confrontação da taxa de feminização das licenciaturas com a taxa de feminização dos empregos naquela área. Pelos números referidos acima, não é difícil perceber que a Inspecção Geral do Trabalho teria muito a fazer. O projecto foi, porém, chumbado no último dia da última legislatura PSD.

Quanto à maternidade, há boas e más notícias a dar. Primeiro as boas, vindas da Direcção-Geral de Saúde e da Associação para o Planeamento da Família (APF): 97% das grávidas têm vigilância pré-natal, 99% dos partos são hospitalares. Poucas são já as mulheres a correr os riscos de gravidezes não acompanhadas, ou dos partos caseiros.

Mas são ainda muitas a correr os riscos de uma gravidez não desejada. Num inquérito de 93 da APF, 12% das mulheres admitiam nunca terem usado qualquer tipo de contraceptivo. Em 1994, 7,9% dos partos realizados eram de mães adolescentes. Em 1995, 36,3% dos abortos identificados foram realizados por raparigas com menos de 15 anos.

O aborto clandestino aparece sempre, aliás, como primeira ou segunda causa de morte materna em Portugal. Na década que decorreu de 1984 a 94, a Direcção-Geral de Saúde fala em cerca de 700 interrupções voluntárias da gravidez (IVG) legais. Ao mesmo tempo, os números, não oficiais, apontam para 16 mil IVGs clandestinas, por ano. Decerto em virtude da maior acessibilidade a meios de planeamento familiar, o número de IVGs clandestinas tem vindo a baixar: há 20 anos, mais de cem mil portuguesas interrompiam voluntariamente a gravidez. Mesmo assim, a UNICEF estima que no nosso país morram ainda 15 mulheres por ano em consequência de abortos clandestinos, o que faz de nós o país da Europa com a maior taxa de mortalidade e de morbilidade por aborto ilegal. A Maternidade Magalhães Coutinho fez uma avaliação de 438 IVGs no quarto trimestre de 1990 e concluiu que em 57% dos casos havia complicações, embora seja unanimamente reconhecido pelos técnicos de saúde que, quando feita por pessoal médico, a IVG não envolve grandes riscos.

O mesmo não se pode dizer, claro está, da IVG ilegal. Feita por "parteiras" curiosas, em condições quase sempre insalubres, as mortes têm sido relativamente reduzidas - nem por isso menos lamentáveis -, mas nunca são contabilizadas nas estatísticas outras consequências: lesões cervicais, perfurações uterinas, infecções, infertilidade.

O caminho ainda por andar: IVG, regulamentações, flexibilidade

Segundo a APF, a necessidade que leva uma mulher a interromper uma gravidez indesejada, acontece, na maioria dos casos, «por o planeamento familiar falhar ou não se ter utilizado um método contraceptivo seguro (...), ser jovem e não ter condições de constituir família e por muitas outras razões de ordem emocional e relacional». Ninguém tem o direito de obrigar uma mulher a abortar. Mas também ninguém tem o direito de obrigar uma mulher a ter um filho que não deseja ou não pode ter. Porque - e continuamos a citar a APF - uma mulher também é impelida para a IVG «por, muitas vezes, mais um filho pesar no orçamento familiar, já de si escasso; ser preciso garantir o emprego; faltarem condições de habitação; não haver condições para pagar a creche ou a ama (...)». E falha, aqui, o cumprimento do Estado nas suas obrigações de protecção às mulheres grávidas, criação de redes nacionais de planeamento familiar, assistência materno-infantil e de creches e infantários.

Fica bem claro que é urgente a aprovação do projecto de lei apresentado em Junho pelo PCP, que propõe a despenalização da IVG até às 12 semanas e o alargamento do prazo para o aborto motivado por malformações do feto de 16 para 22 semanas.

As discriminações das mulheres não desapareceriam com a despenalização da IVG. Muito mais há ainda a fazer para melhorar as condições de vida destes 51,8% da população portuguesa. Para começar, há que efectivar a legislação já existente e regulamentar leis entretanto já aprovadas. Como o projecto de lei do PCP aprovado em 1991, que estabelece um regime de protecção especial às mulheres vítimas de crimes sexuais - que inclui um serviço telefónico SOS, medidas a nível de processo penal (que impediriam o marido, no caso de ser este o agressor, de se aproximar da vítima), centros de acolhimento, etc. - e que está a ser regulamentado há, "apenas", seis anos. Há que mudar a lei sobre as associações de mulheres, sem carácter de Parceiro Social; há que conceder mais direitos às mulheres viúvas de uniões de facto, ao nível das pensões de alimentos, arrendamentos e heranças, há que fomentar a universalidade e gratuitidade do planeamento familiar; há que proteger as mulheres grávidas da Lei da Flexibilidade e Polivalência, que permite as semanas de 48 e 50 horas; há que garantir a igualdade no acesso ao trabalho.


«O Militante» Nº 227 de Março/Abril de 1997