As propostas do PCP para a Justiça - Declaração de José Neto, Comissão Política do PCP


A situação da Justiça e as propostas do PCP
Conferencia de Imprensa com José Neto da Comissão Política do PCP

No quadro de uma profunda crise que afecta toda a sociedade portuguesa, a situação no sector da Justiça não foge à regra.
Ao fim de ano e meio de governação do PS, também nesta área todos os problemas se agravaram.
Problemas que não se resolvem com medidas pontuais ou de fachada, como foi o (por todos) reconhecido fracasso da alteração de regime das chamadas férias judiciais.
Problemas que não se resolvem sem a mobilização e a participação empenhada daqueles que no dia a dia trabalham na Justiça e muito menos com medidas que afrontam direitos e campanhas que atingem a dignidade dos profissionais, descredibilizando aos olhos dos cidadãos o poder judicial, para mais facilmente o atacar.

A realidade dos Tribunais e as condições para a realização da Justiça são a prova da incapacidade, mas, sobretudo, da falta de vontade política deste e de governos anteriores, para pôr em prática medidas estruturantes e de fundo que abram linhas de resolução de um vasto conjunto de problemas com que se defronta esta função soberana do Estado.
As situações são há muito conhecidas: uma gritante falta de meios, ditada, também aqui, por uma visão economicista que afecta as condições de trabalho de todos os profissionais da Justiça, não responde ao preenchimento dos quadros, à modernização de instalações e equipamentos, à melhoria da investigação criminal ou à actualização da formação; o aumento do ritmo da acumulação de processos, ao invés da diminuição da morosidade; a não diminuição das elevadíssimas custas e taxas de justiça; a mais que precária informação jurídica e apoio judiciário aos cidadãos, dificultando-lhes, ou até impedindo, na prática, o seu acesso à Justiça e aos Tribunais.
 
Estão, pois, há muito diagnosticadas as inúmeras situações e estrangulamentos de diferente natureza e complexidade aos quais é necessário e possível dar resposta.
Mas o mal profundo de que padece a Justiça é o seu marcado carácter de classe. Não nos cansamos de o dizer.
É uma Justiça que não realiza o princípio constitucional da igualdade, que trata diferentemente, por um lado, os ricos e poderosos (que têm acesso à informação jurídica e a bons advogados) e, por outro, todos aqueles, a maioria, que, não dispondo de meios, se confrontam com uma Justiça de menor qualidade.
É uma Justiça em que, no caso do Trabalho, persiste vergonhosamente a situação de milhares de trabalhadores com processos pendentes, que esperam anos a fio para receber aquilo a que têm direito, em caso de salários em atraso ou de falência de empresas.
É uma Justiça que enche as prisões de toxicodependentes e deixa impunes o grande tráfico, os corruptos e a criminalidade económica.
Não é fácil explicar, e muito menos entender, senão pela existência de uma emaranhada teia de poderosos interesses e cumplicidades, que importantes e conhecidos processos da área do chamado «crime de colarinho branco» continuem a ter, vezes de mais, como destino o arquivamento ou a prescrição de procedimento criminal, o que constitui um verdadeiro escândalo.
E é este sentimento de impunidade de que temos falado, esta desigualdade de tratamento, que estão na base do descrédito da Justiça, da desconfiança nas instituições judiciárias e que mina inexoravelmente o Estado de direito democrático.

Duas grandes linhas sobressaem na política da Justiça do actual Governo.
A primeira é a que se traduz numa cada vez maior desresponsabilização do Estado pela Justiça: foi a privatização do notariado e a privatização das acções executivas para cobrança de dívidas; é o apoio judiciário, quase inexistente; é o incremento da mediação privada, agora também apontada para o processo penal; é a privatização de partes importantes do sistema prisional e a ameaça de fecho de dezenas de estabelecimentos.
Este é um caminho que, deixando a realização da Justiça entregue ao jogo puro e duro dos interesses privados, agrava inevitavelmente, contra o disposto na Constituição, as desigualdades dos cidadãos.
Muito grave também, nesta linha, para as populações e para os próprios profissionais da Justiça, é a aplicação aos tribunais de critérios neoliberais de produtividade (é a palavra que usam) e que, por via do novo mapa judiciário, em gestação, levaria ao fecho ou a um papel residual de muitas comarcas do interior.

A segunda linha da política do Governo é a que conduz a uma cada vez maior interferência e controlo sobre o poder judicial.
Pelo caminho que as coisas estão a tomar, o Governo decidirá o que deve e o que não deve ser investigado; o que deve e não deve ser julgado nos tribunais, o que deve e o que não deve ir a julgamento; e, até, quem deve ser o julgador.
O Estatuto do Ministério Público e a própria independência dos juizes estariam inexoravelmente postos em causa.

A assinatura do Pacto para a Justiça, entre o PS e o PSD, levanta sérias preocupações e nada de bom augura para o sector judicial.
Tal como o PCP sublinhou, para lá da total falta de ética política na forma como foi urdido e, objectivamente, visando condicionar e menorizar o órgão de soberania Assembleia da República (não fomos os únicos a afirmá-lo), o Pacto para a Justiça, resultante da identificação e entendimento entre os dois partidos, que, juntos ou separados, foram responsáveis pela situação que hoje se vive na Justiça, deixa antever a continuação, no essencial, da mesma política que conduziu à crise actual.
Está em curso uma estratégia que tem por objectivo enfraquecer o poder judicial, limitar a independência dos Tribunais, governamentalizar e partidarizar a Justiça.
Trata-se, no entender do PCP, de pôr em marcha a política de Justiça sempre reivindicada pelos sectores mais conservadores e pelo poder económico dominante, como facilmente se deduz das conclusões sobre a Justiça do conclave do Beato em qualquer das duas edições.

Ao longo de anos temos reclamado medidas de desburocratização e simplificação que permitam realizar a Justiça em tempo útil, meios humanos e materiais para uma investigação mais eficaz, mais e melhor formação e especialização a todos os níveis do sistema. Bem como a modernização do aparelho judiciário, dignificação das profissões jurídicas e das suas condições de trabalho em ordem a uma melhor qualidade do serviço público de Justiça a prestar aos cidadãos.
Nas várias reuniões com o Ministro da Justiça disponibilizámo-nos para dar os contributos que nos foram pedidos, não na perspectiva de compromissos ou pactos de conveniência, mas com a séria intenção de concorrer com a nossa própria reflexão e opinião para as soluções necessárias.
Afirmámos então, e afirmamos hoje, que o nosso pacto é com a Constituição da República, com os direitos nela consagrados, com o modelo e as soluções equilibradas nela contidas para o sistema judicial.
E é nesse quadro que dizemos: a nossa agenda para a Justiça é diferente da do PS e PSD; as nossas prioridades não são as prioridades do Pacto.
Agenda e prioridades que hoje, aqui, o PCP apresenta, e que são ancoradas em objectivos e orientações que consideramos essenciais.

A primeira, a preservação e defesa do poder judicial soberano, assegurando a sua independência face ao poder político, a par da garantia da autonomia do Ministério Público, da defesa do princípio da legalidade na acção penal e do modelo de investigação sob a sua direcção.
A segunda, um decidido e empenhado combate ao crime organizado e à corrupção, para o qual são necessários, antes de tudo, uma real vontade política mas, seguramente, mais prevenção, meios efectivos e eficazes, mais formação e especialização de todos aqueles que estão envolvidos nesse combate.
A terceira, que continua a ser ponto de honra do PCP, a defesa de uma Justiça mais igualitária, uma Justiça menos onerosa, mais pronta e acessível e próxima dos cidadãos e das populações, bem como um apoio judicial efectivo, responsabilidade a que o Estado não se pode eximir.

Passando das palavras aos actos, o PCP anuncia a apresentação, durante os próximos meses, de um conjunto de iniciativas legislativas na área da Justiça que constitui uma agenda alternativa ao Pacto PS/PSD e que corresponde à resolução dos problemas que consideramos mais prementes. Essas propostas incidirão em 5 áreas:

Em primeiro lugar, a corrupção e a criminalidade económica e financeira.

Em 7 de Julho passado, o Grupo Parlamentar do PCP suscitou um debate de urgência sobre o combate à corrupção, chamando a atenção para a gravidade desse fenómeno e para a necessidade de adoptar medidas capazes de o enfrentar. Esse debate suscitou pouco interesse da parte das demais bancadas parlamentares e ainda menos da parte dos media. Mas, três meses passados, é o próprio Presidente da República que vem manifestar a sua preocupação com a corrupção em Portugal, conferindo actualidade ao tema.

Assim, o PCP irá apresentar um projecto de lei que cria um Programa Nacional de Prevenção e Combate à Criminalidade Económica e Financeira e um conjunto de medidas de aperfeiçoamento dos mecanismos legais de combate à corrupção no sentido preconizado pela Convenção das Nações Unidas contra a corrupção, assinada em Mérida em Outubro de 2003 e que entrou em vigor em 14 de Dezembro de 2005.

Em segundo lugar, o PCP apresentará um novo Projecto de Lei sobre Julgados de Paz.

Os julgados de paz afirmam-se como uma outra forma de Justiça. Uma justiça de proximidade, desburocratizada, célere. Vencendo inércias e incompreensões, aumenta o recurso a estes Tribunais, que se tornaram realidade através de iniciativa legislativa do PCP. Tarda, no entanto, o alargamento da rede dos Julgados de Paz. Tarda a revisão da lei, tantas vezes já recomendada pelo seu Conselho de Acompanhamento.

O PCP irá propor a alteração da competência dos Julgados de Paz, não só em razão do valor como da matéria, nomeadamente na área penal. Importa também clarificar que a competência dos julgados de paz é exclusiva e não concorrente com a competência dos Tribunais Judiciais.

Em terceiro lugar, o PCP irá apresentar um novo Projecto de Lei sobre Apoio Judiciário.

A prometida revisão da lei está um ano atrasada. Entretanto, e nomeadamente na justiça laboral, o acesso ao Tribunal continua a ser negado por motivos puramente económicos, já que a lei existente apenas permite a concessão do apoio judiciário aos que se encontram em situação de quase indigência.

O Pacto para a Justiça celebrado entre o PS e o PSD excluiu esta matéria. Que é uma matéria urgente, já que se trata de cumprir um preceito constitucional que proíbe a denegação da Justiça.

O PCP irá reapresentar a iniciativa legislativa rejeitada na anterior sessão legislativa, reformulando-a no que toca ao processamento do pedido de apoio judiciário.

Em quarto lugar, o PCP irá apresentar um Projecto de Lei sobre a Acção Executiva.

Urge pôr cobro á catástrofe da reforma da acção executiva, que tornou ainda mais morosa, e mais cara, a Justiça. O PCP irá propor algumas medidas nesta área, nomeadamente para a Justiça laboral, garantindo aos trabalhadores o retorno ao sistema existente antes da reforma, mais célere e menos oneroso.

Em quinto lugar, o PCP irá apresentar um Projecto de Lei que cria um Observatório da Justiça junto da Assembleia da República.

Será objectivo desse Observatório assegurar a recolha e a sistematização de dados objectivos sobre a situação e o funcionamento do sistema judiciário e promover a reflexão sobre as medidas adequadas à resolução dos problemas da administração da Justiça. Através de uma composição alargada a diversos participantes do funcionamento da Justiça, sob diferentes ângulos, mas todos particularmente qualificados, o Observatório da Justiça estará em condições de assegurar, com base em elementos objectivos, não apenas a permanente reflexão sobre os problemas fundamentais que afectam a administração da Justiça, mas também a apresentação das propostas e recomendações que se mostrem necessárias pata atingir essa finalidade.