Intervenção de João Amaral na Assembleia de República

Projecto de Lei do PCP nº 12/VII

Quero começar por lamentar a ausência do Senhor Ministro da Administração Interna neste debate. É certo que o Governo não tem nenhuma proposta sua em debate e não está por isso " obrigado" a estar presente. Mas, o debate versa sobre a matéria da segurança interna nos seus aspectos centrais e essenciais. A Assembleia da República vai debruçar-se não sobre um qualquer aspecto particular da política de segurança interna mas precisamente sobre as suas grandes orientações. O debate realiza-se não só por iniciativa do PCP que apresentou o projecto e requereu o seu agendamento, e mas também por decisão unânime da conferência de líderes, que fez esse agendamento. No contexto actual, a presença do Governo significaria o seu empenho em participar com a Assembleia da República numa reflexão sobre uma matéria, que hoje preocupa seriamente os portugueses, e que acaba de atravessar uma crise assinalável, cujas sequelas não se apagaram. Evidentemente que a Assembleia da República realiza este debate com completa legitimidade, eficácia, empenhamento e qualidade. Mas é ao Governo que, na base das grandes opções definidas, cabe estabelecer e executar a política de segurança interna. O Ministro fala de virar de página. É no mínimo mau sinal que na primeira ocasião que tem de demonstrar ao plenário da Assembleia o seu empenhamento concreto em reais mudanças de política, o Ministro perca a oportunidade e falte à convocatória.

O PCP submete à discussão da Assembleia da República um projecto com dois objectivos complementares: o primeiro é o de atribuir ao Parlamento a incumbência de ser ele a discutir e aprovar o documento das grandes opções da política de segurança interna; o segundo objectivo é o de propor que a Assembleia realize desde já esse debate, para o que apresentamos um projecto concreto de grandes opções.

O primeiro objectivo corresponde ao primeiro capítulo do projecto de lei nº 12/VII, artigos 1º e 2º. Nas competências da Assembleia da República e a ser aceite a proposta do PCP, passará a figurar uma nova alínea, com menção expressa da competência para " aprovar por meio de lei as Grandes Opções da Política de Segurança Interna". Pensamos que esta intervenção específica da Assembleia da República no processo de definição da política de segurança interna, realizada sem prejuízo da competência do Governo de ser ele a desenvolver e executar essa política, será positiva a vários títulos. Desde logo, porque pela sua natureza específica, envolvendo inclusivamente a possibilidade de meios de coacção sobre cidadãos, a política de segurança interna deve ter o mais largo suporte institucional possível, como sucederá se a Assembleia intervier no processo pelo modo proposto.

Evidentemente que manifestamos desde já a nossa disponibilidade para fórmulas alternativas que conduzam ao mesmo resultado. O Governo, através do Ministro da Administração Interna, já aqui anunciou a sua ideia de que a Assembleia deveria aprovar uma lei de orientação da política de segurança interna. O sentido parece ser o mesmo que aqui propomos e creio assim que não deverá haver dificuldade em encontrar a fórmula e o local adequados a garantir a intervenção da Assembleia esta fase do processo de definição da política de segurança interna.

É sobre as grandes opções (que constam do capítulo II do projecto de lei nº 12/VII) que pretendo abanar principalmente a atenção.

A política de segurança interna foi dominada nos últimos anos por um processo de militarização e afastamento dos cidadãos. Os Governos PSD do Prof. Cavaco Silva evidenciaram particularmente na política de segurança interna o autoritarismo e o vezo repressivo que caracterizou toda a sua política.

Mais do que nenhum outro, o Ministro Dias Loureiro deu rosto com o Prof. Cavaco Silva a essa política. A política do PSD assumiu o rosto da brutalidade nas ordens governamentais em casos como as cargas sobre as estudantes, sobre os trabalhadores e populações da Marinha Grande, e sobre os utentes da Ponte 25 de Abril. Com o PSD no Governo, são os corpos especiais de repressão receberem apoio. As funções gerais de polícias foram descuradas, foram encerradas esquadras e postos, os orçamentos de funcionamento das polícias sofreram fortes restrições. A militarização acentuou-se como o mostram vários diplomas legais publicados pelos Governos PSD. As super esquadras (ou divisões concentradas) ficaram como símbolo de uma política que quer esvaziar a polícia da sua componente cívica e transformá-la numa máquina, que não se reconhece nem se identifica com a vida colectiva dos portugueses.

O que o PCP traz a debate do plenário da Assembleia e à alteração profunda desta política. O que o PCP propõe é uma ruptura com os métodos e a filosofia que o PSD usou no Governo. Era essa política que há um ano, (quando apresentámos o projecto, logo a seguir às eleições, no início desta legislatura) tinha acabado de ser sentenciada e condenada pelo povo português. Foi uma política que deixou sem combate o crime, que foi causa de um preocupante aumento do sentimento de insegurança e que privilegiou a repressão e o confronto com os cidadãos.

A realidade, no entanto é que, decorrido este ano, e apesar das promessas feitas e dos compromissos assumidos no seu programa, o governo não efectivou as mudanças indispensáveis nas orientações da política de segurança interna e nas estruturas das forças policiais que os servem . Foi um ano perdido. e não só. Foi um ano de hesitações e ziguezagues. Depois de ter aprovado um decreto-lei a permitir que fosse um civil a comandar a PSP, que queria o Governo da nomeação de um militar para Comandante-Geral? Que queria o Governo quando deixa sem resposta a ausência concentrada e provocatória das chefias intermédias da PSP da cerimónia de tomada de posse do seu Comandante-Geral? Que queria o Governo quando permitiu o General Comandante Geral declare publicamente que não tem nada que cumprir as recomendações do Provedor de Justiça, feitas a propósito do caso de Stº Tirso? Que queria o Governo que mudasse, quando manteve os superesquadras e a filosofia loureirista que lhe presidiu? Que queria o PS quando, para encerrar os processos postos por Dias Loureiro aos dirigentes das Associações socio-profissionais da polícia, não deixa de fazer a concessão à hierarquia da PSP de ainda assim os punir?

Foram estas hesitações, esta manutenção dos traços fundamentais da política anterior, estas concessões a uma concepção militarizada da PSP que foram o caldo de cultura da crise que se viveu nos últimos dias. A substituição de um comandante militar por um não militar era um primeiro passo que deveria ter sido dado logo no início. Não há nenhum radicalismo numa posição como esta: é tão radical fazer essa substituição agora como tê-la feita há um ano. Há um ano talvez fosse menos, porque então toda a gente a esperava e muita gente a desejava! O Governo fala em "cautela e caldos de galinha" para justificar o atraso. Mas, outros aproveitaram o atraso para desenvolver oposições e lançar minas e armadilhas no percurso da modernização da PSP.

Não basta mudar de Comandante Geral, passando de um militar para um profissional da casa. Agora o que é essencial é com decisão mudar efectivamente de política.

As Grandes Opções que o PCP propõe no projecto de lei correspondem a esse objectivo.

Não esquecemos que uma pratica de segurança e tranquilidade pública tem de passar também pela conjugação de dois outros vectores: por um lado, são necessárias políticas gerais, designadamente de emprego, educação de segurança social e de habitação e urbanismo, que combatam males sociais muito ligados às causas do crime. Não significa que baste a resolução de problemas como os do desemprego, pobreza, ocupação dos tempos livres,ou educação, para automaticamente se ter o país livre do crime. Mas a inversa é verdadeira: sem a resolução desses problemas, não haverá solução duradoura para os problemas de segurança interna. O segundo vector que assinalamos refere-se à justiça. A justiça tem de ser mais célere, evidentemente que sem prejuízo dos limites e garantias dos arguidos. Não se trata aqui de apurar causas e responsabilidades: mas não pode continuar a mediar o tempo que hoje medeia entre a descoberta do presumível criminoso e o seu julgamento. Não há sistema penal que resista a esta dilação que submete a função da pena e a torna inútil ou injusta.

A questão fundamental quanto à política de segurança interna propriamente dita, é a de sabermos como devem ser assegurados os seus objectivos, fixados na Lei nº 20/87, de 12 de Junho. Da nossa parte, entendemos que há três princípios enquadradores fundamentais: primeiro, o meio principal e privilegiado de assegurar a tranquilidade e segurança é a prevenção; segundo, a responsabilidade orgânica é do Governo e da política, mas a função segurança não deve ser alheia ao cidadão e à sociedade, que nela deve participar; terceiro, a polícia e a sociedade devem viver em conjunto os mesmos problemas, numa relação estreita de confiança.

Com estes pressupostos, o projecto do PCP apresenta propostas quanto ao modelo de esquadras e postos, quanto à sua distribuição, quanto ao modelo de distribuição de forças de segurança, quanto à distribuição de recursos humanos, quanto à disponibilização de recursos financeiros, quanto à questão crucial da formação e das regras deontológicas.

Sublinharei alguns traços fundamentais e caracterizadores das propostas do PCP.

Primeiro: defendemos uma política de proximidade. São de rejeitar as superesquadras, que levem ao encerramento das esquadras mais pequenas, a nível de bairro, com as suas funções de base logística para policiamento, e local de apoio permanente à população. A polícia deve estar próxima dos cidadãos, deve ser conhecida na personalidade própria dos agentes que servem cada zona, e deve estar em condições de conhecer pormenorizadamente a zona respectiva de actuação. É aliás a polícia de proximidade que realiza com vantagem a função preventiva.

Segundo ponto: a polícia deve antes de tudo "policiar". A sobrecarga com funções burocráticas que não cabem na função policial (como sucede com as notificações) retiram agentes preparados daquilo que devem fazer. É necessário resolve com urgência este problema. Como também não é admissível a concentração de milhares de efectivos em corpos especiais de repressão, quando poderiam e deveriam estar afectos às funções normais de policiamento. O país não merece tanta desconfiança por parte de um poder político, que assume continuar a viver obcecado em declarar guerra à sociedade!

Ainda neste campo da "recuperação" dos agentes para funções de policiamento, quero aqui registar o nosso espanto e desagrado pelo verdadeiro boicote que tem sido feito à aplicação da legislação sobre serviços municipais de polícia. Uma das funções que poderiam ser exercidas pelos respectivos funcionários são os relacionados com certos aspectos do trânsito urbano, incluindo o estacionamento. Hoje, com a lei portuguesa, já é possível que não sejam as forças de segurança a fiscalizar e a passar multas no estacionamento ilegal. Isso libertaria muitos agentes particularmente da PSP para as suas funções de segurança. Mas, desde a tomada de posse deste Governo, esse processo foi paralisado, e hoje vemos por exemplo em Lisboa ser a PSP que continua a acompanhar os funcionários da EMEL que fiscalizam o estacionamento.

Terceiro ponto: a questão da formação deve constituir uma efectiva prioridade e não uma mera prioridade declarada. É necessária aprovar um novo Código Deontológico, que tenha presente as mais recentes resoluções e recomendações da ONU, do Conselho da Europa e de outras instituições que se debruçaram sobre o assunto.

Quarto ponto: A aprovação dos Conselhos Municipais de Segurança dos Cidadãos, aqui pendentes há meses e meses, é uma prioridade. Os Conselhos são uma forma privilegiada de fazer participar as instituições e a sociedade no equacionamento da problemática concreta da segurança pública. Com a presença das autarquias, escolas, associações económicas e sociais, magistratura e forças policiais, estes Conselhos dão à execução da política de segurança interna a dimensão participada que lhe tem sido negada.

Quinto ponto: A dimensão cívica da PSP. Sem dar à PSP uma feição "civilista", não será possível nenhuma reforma séria e profunda da política de segurança interna. Feição civilista significa pôr a polícia ao lado dos cidadãos na procura de um resultado que interessa a todos. Significa considerar que a segurança interna é serviço à comunidade, executado por cidadãos especializados para o efeito. Cidadãos com os seus direitos fundamentais devidamente respeitados, incluindo o direito à constituição de um sindicato. Cidadãos que por isso mesmo, defendem os direitos, liberdades e garantias e encontraram neles o fundamento e o limite para a sua acção como polícias.

Estas são linhas fundamentais da proposta que o PCP submete à apreciação da Assembleia da República.

Fazêmo-lo com a firme convicção de com ela estarmos a contribuir para a defesa dos interesses e direitos dos cidadãos e da sociedade.

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