Intervenção de Carla Cruz na Assembleia de República

"É preciso pôr fim à destruição do Serviço Nacional de Saúde"

Sr.ª Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados:
Começo por fazer uma saudação à luta dos enfermeiros do Agrupamento de Centros de Saúde Lisboa Central, que hoje lutam em defesa do Serviço Nacional de Saúde e dos direitos dos trabalhadores.
Os portugueses já perceberam que o Governo se orienta por razões que não são as do interesse público e da salvaguarda do Serviço Nacional de Saúde; antes pelo contrário, a ação do Governo tem sido sempre norteada no sentido de favorecer os grandes grupos económicos do setor da saúde em prejuízo dos doentes.
Se algumas dúvidas restassem, os dados publicados pelo INE referentes aos indicadores sobre a saúde dos portugueses na década de 2002-2012 demonstram, de forma clara e inequívoca, esta opção de favorecimento dos grandes grupos económicos.
Vejamos, então.
Em 2011 e 2012, houve um decréscimo nos atendimentos urgentes realizados nos hospitais públicos, enquanto nos hospitais privados a tendência foi exatamente a contrária — crescimento! Numa década, os atendimentos urgentes nos hospitais privados duplicaram, ultrapassando os 800 000. O número de camas também aumentou em 1400, ao mesmo tempo que nos hospitais públicos o número de camas diminuía em 3000.
A transferência na prestação de cuidados de saúde do setor público para o privado ocorreu também nos exames complementares de diagnóstico. Em 2012, os atos de diagnóstico nos hospitais privados representavam já 8% do total dos exames realizados.
Sr.ª Presidente, Srs. Deputados, os números revelados pelo estudo do INE são bem esclarecedores: os sucessivos governos do PS, do PSD e do CDS têm prosseguido uma política de privatização dos cuidados de saúde. A sua opção política, ideológica e programática foi e é a criação de um sistema de saúde a duas velocidades: um serviço público desqualificado e degradado para os mais pobres, centrado na prestação de um conjunto mínimo de cuidados de saúde, e um outro, centrado nos seguros privados de saúde e na prestação de cuidados por unidades de saúde privadas, para os cidadãos mais favorecidos.
Sr.ª Presidente,
Srs. Deputados:
A opção política do Governo tem consequências extremamente gravosas e nefastas para os utentes do Serviço Nacional de Saúde, nomeadamente na área da emergência pré-hospitalar.
A recente situação de inoperacionalidade das viaturas de emergência médica no distrito de Évora é bem reveladora do que acima afirmámos. A este episódio junta-se um outro, ocorrido no passado mês de dezembro. Nestas duas situações a VMER (viatura médica de emergência e reanimação) não foi acionada por falta de profissionais. E, infelizmente nestas duas situações, houve seis vidas perdidas. Não sabemos se teriam sido salvas, mas sabemos que o acionamento atempado dos meios de emergência hospitalar tem salvado muitas vidas. Neste caso não ocorreu.
De acordo com o que tem sido noticiado, a VMER de Évora esteve parada 1521 horas durante o ano de 2013! Infelizmente, a situação não se restringe a Évora, atinge também outras regiões do País, como Torres Vedras, Guarda e Almada. A inoperacionalidade da VMER de Évora é justificada pelo reduzido número de profissionais com formação específica, mas há quem afirme, concretamente um responsável da Ordem dos Enfermeiros, que esta situação resulta da redução do montante pago aos profissionais da VMER.
O PCP apresentará, em breve, uma proposta concreta para assegurar a operacionalidade dos meios de emergência pré-hospitalar.
A política de progressivo desinvestimento no Serviço Nacional de Saúde, de desvalorização dos profissionais de saúde, de carência de recursos humanos e técnicos traduz-se na degradação dos cuidados de saúde prestados às populações, nomeadamente no adiamento de cirurgias programadas, no atraso na realização de exames complementares, na falta de medicamentos e de material de uso corrente.
O Grupo Parlamentar do PCP confrontou o Sr. Ministro da Saúde, no passado dia 26 de março, em sede de Comissão de Saúde, com um exemplo concreto da degradação dos cuidados de saúde ocorrido no Centro Hospitalar Universitário de Coimbra, resultante da falta de material clínico.
O Sr. Ministro, para além de ter desvalorizado a questão colocada pelo Grupo Parlamentar do PCP, mentiu a este Parlamento quando afirmou que, passadas 48 horas, a situação estava ultrapassada.
O utente continua a aguardar pelos cuidados de saúde ao problema de que padece — uma ablação cardíaca — e até hoje não recebeu qualquer informação, por parte dos serviços do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra, acerca da data em que o procedimento médico se irá realizar. Mais, o utente tinha recomendação clínica para que a intervenção se realizasse em cinco meses, prazo que termina já neste mês de abril. Mas há ainda mais: há mais doentes com este problema e que aguardam por intervenção cirúrgica.
Tivemos conhecimento que o cardiologista que estava habilitado para esta intervenção foi contratado por um hospital inglês e já saiu de Coimbra, pelo que as ablações cardíacas não serão ali realizadas até que seja contratado novo cirurgião.
Sr.ª Presidente, Srs. Deputados: A Constituição da República Portuguesa consagra o Serviço Nacional de Saúde como sendo universal, geral e tendencialmente gratuito. Mas a política do Governo leva a que cada vez mais portugueses, para acederem a cuidados de saúde, tenham que pagar, quer por via das taxas moderadoras, quer por via dos transportes não urgentes de doentes. Continuam a contar-se aos milhares os doentes impedidos de aceder a consultas, a tratamentos, porque o Governo continua a negar transporte.
A Constituição consagra a cobertura racional e eficiente de todo o País em termos de recursos humanos e unidades de saúde. Mas o que o Governo faz é encerrar serviços, concentrar valências e departamentos, diminuir os horários de funcionamento das unidades de saúde, como recentemente aconteceu com o serviço de atendimento urgente do Porto.
Sr.ª Presidente, Srs. Deputados, é preciso que o Governo responda perante a Assembleia da República e perante o povo português pelas malfeitorias que tem imposto ao Serviço Nacional de Saúde. Neste sentido, o PCP apresentou, ontem mesmo, um requerimento na Comissão de Saúde para que o Sr. Ministro da Saúde, com caráter de urgência, seja ouvido sobre as matérias relacionadas com a organização médica pré-hospitalar e sobre a relação entre o Serviço Nacional de Saúde e o setor privado.
É preciso pôr fim à destruição do Serviço Nacional de Saúde levada a cabo pelo Governo!
É preciso travar esta política e este Governo!
É necessário que a todos os portugueses seja garantido o direito à saúde, cumprindo a Constituição da República Portuguesa.
(…)
Sr.ª Presidente,
Sr.ª Deputada Helena Pinto,
Quero agradecer a questão que colocou e dizer-lhe que o Serviço Nacional de Saúde vive dias muito difíceis. Vive dias muito difíceis por opção política do Governo — e essa opção política do Governo é de desvalorização dos profissionais, é de não cumprimento das dotações seguras.
A esse propósito, tivemos oportunidade de confrontar, quer na interpelação que fizemos em março, quer em sede de Comissão de Saúde, o Sr. Ministro e o Sr. Secretário de Estado sobre o cumprimento das dotações seguras, até relativamente aos enfermeiros, e aquilo que obtivemos foi uma ausência de resposta. Ora, esta ausência de resposta é reveladora daquilo que é a opção política do Governo, que é não dotar o Serviço Nacional de Saúde dos enfermeiros necessários para prestar cuidados de saúde com qualidade.
Relativamente à questão da dotação segura, permita-me, Sr.ª Deputada, que relembre a este Parlamento uma situação com que confrontámos o Governo e que tem a ver com o ocorrido num serviço de urgência de um hospital do Norte, em que para um serviço de observação de doentes urgentes, com pulseira laranja, onde estavam internados 31 doentes, apenas foram escalados dois enfermeiros. Um dos enfermeiros alertou a chefia para as causas da não prestação de cuidados, porque os doentes eram de elevada dependência e necessitavam de cuidados muito acentuados, e a resposta foi «a escala é para cumprir, a escala é para seguir».
E o que é que aconteceu aos doentes? Os doentes ficaram sem cuidados, que são essenciais: não foi vigiada a dor, não foi vigiado o estado de consciência, não foram prestados cuidados de higiene, não lhes foi administrada a medicação. E porquê? Por opção política do Governo, porque o Governo não cumpre as dotações seguras, porque o Governo dá orientações para que não sejam contratados enfermeiros. E a opção é mandá-los para fora, porque todos os dias saem do País enfermeiros que fazem falta.
Mas não são só os enfermeiros que fazem falta. Fazem falta — e nós sabemo-lo — assistentes operacionais, assistentes técnicos, profissionais que são fundamentais para o funcionamento do Serviço Nacional de Saúde.
E só com outra política, com outro governo, um governo que valorize, de facto, os profissionais e a qualidade do Serviço Nacional de Saúde, é que teremos a salvaguarda do Serviço Nacional de Saúde.
(…)
Sr.ª Presidente,
Sr. Deputado José Luís Ferreira,
Quero agradecer a sua questão e dizer-lhe que, obviamente, o Partido Comunista Português partilha da ideia de que há cada vez mais portugueses que não acedem aos cuidados de saúde. E não acedem aos cuidados de saúde porque não têm poder económico, não têm rendimentos suficientes para o fazer.
E não basta o Sr. Ministro dizer que aumentou o número de pessoas isentas. Acontece que o Sr. Ministro se esquece de dizer que aqueles que hoje recebem pouco mais de 600 € não estão isentos de taxas moderadoras, e são esses que não vão às consultas. E mesmo aqueles que estão isentos, por força da alteração do regime de atribuição de transportes não urgentes, também não vão às consultas, nem aos tratamentos.
Portanto, o que temos é uma perspetiva demagógica de que o Governo tudo faz para salvar o Serviço Nacional de Saúde. Ora, o que assistimos e os utentes sentem todos os dias na pele é exatamente ao contrário. A política do Governo, todas as medidas que são lançadas visam a degradação da prestação de cuidados de saúde, visam impedir que os utentes usufruam de um direito que está consagrado. A questão é exatamente esta.
E se dúvidas houvesse de que há um favorecimento do setor privado em detrimento do setor público, aí estão os dados do INE para comprová-lo. Mas não são só os dados do INE. É preciso dizer que, no relatório económico do Grupo BES, mais de metade das suas receitas são provenientes de transferências diretas de dinheiro público, por via do pagamento da PPP do hospital de Loures.
Mas não é só ao Grupo BES que são pagas as PPP, são-no também a outros grupos económicos. Assim, só em 2014, vão ser gastos 418 milhões de euros no pagamento de várias PPP na área da saúde.
(…)
Sr.ª Presidente,
Sr.ª Deputada do PSD e bancada do PSD,
Que fique claro o seguinte: o que, ontem, o PCP aqui defendeu foi a capacidade instalada, o uso da capacidade instalada do Serviço Nacional de Saúde na realização dos exames.
O que defendemos é um Serviço Nacional de Saúde público e não a transferência de dinheiros do público para o privado.
E o que os dados do INE, por mais que os Srs. Deputados da direita e, concretamente, a Sr.ª Deputada Conceição Bessa Ruão queiram esconder, confirmam a transferência de dinheiros públicos do Serviço Nacional de Saúde para o setor privado.
Enquanto, no Serviço Nacional de Saúde, diminuiu, em 3000, o número de camas, nos hospitais privados esse número aumentou. Enquanto, no Serviço Nacional de Saúde, diminuiu o número de serviços de atendimento urgente, no setor privado esse número aumentou.
Srs. Deputados do PSD, Sr.ª Deputada,
Aquilo que defendemos e preconizamos, no que toca à emergência pré-hospitalar, é a operacionalidade a 100%, é uma cobertura nacional.
E, para isso, é preciso que haja dotação financeira.
Por isso, Sr.ª Deputada, o que peço a si e ao seu grupo parlamentar é que perguntem ao Ministério da Saúde por que é que tantas vezes a VMER de Évora fica inoperacional. É que o hospital de Évora não recebe um cêntimo para ter a VMER em Évora.
Sr.ª Deputada e Srs. Deputados,
O que o PCP defende é um Serviço Nacional de Saúde tal qual está na Constituição. E o que o seu Governo, o Governo PSD/CDS-PP, tem feito com as medidas do pacto de agressão é o desmantelamento e a desagregação do Serviço Nacional de Saúde.
(…)
Sr.ª Presidente,
Gostaria de agradecer à Sr.ª Deputada Luísa Salgueiro a questão que colocou e dizer que, obviamente, o Partido Comunista Português acompanha o requerimento apresentado pelo Partido Socialista, apesar de ontem termos apresentado um requerimento para a vinda do Ministro, porque, de facto, é importante que o Ministro responda à Assembleia, responda ao País e ao povo português sobre as malfeitorias que tem feito, malfeitorias essas que têm sido muitas e diversificadas.
Mas aquilo a que temos vindo a assistir e que não podemos deixar escamotear é ao seguinte: tendo os três partidos do arco da dívida responsabilidades na situação que se vive no Serviço Nacional de Saúde e muito em concreto a situação que vive a VMER de Évora, gostaríamos de perguntar, Srs. Deputados do PS, o que é que os portugueses podem esperar. Que compromisso é que o PS assume com os portugueses no sentido de salvaguardar o Serviço Nacional de Saúde? E falo em salvaguardar o Serviço Nacional de Saúde no cumprimento estreito do que está consagrado na Constituição da República Portuguesa e não nesta transferência para o sector privado.
É importante dizer, Sr.ª Deputada Conceição Bessa Ruão, que o que está a viver-se hoje no Serviço Nacional de Saúde é resultado do pacto da troica. Mas o pacto da troica tem a assinatura do PS, porque a troica foi chamada pelo PS.
É preciso também dizer que a alteração nos transportes não urgentes começou pelo PS.
É verdade que o PSD e o CDS tiveram oportunidade de corrigir, mas nós já sabemos que eles não querem corrigir. Nós sabemos que o Governo não quer corrigir, porque é este caminho que eles querem, o da degradação da prestação de cuidados de saúde.
Por isso, o que fazemos é precisamente querer saber qual é o compromisso do PS para a salvaguarda do Serviço Nacional de Saúde constante na Constituição da República Portuguesa.

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