Intervenção de António Filipe na Assembleia de República

"É preciso aprovar legislação para criminalizar o enriquecimento ilícito"

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Enriquecimento injustificado (trigésima quinta alteração ao Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, quarta alteração à Lei n.º 34/87, de 16 de julho, e sexta alteração à Lei n.º 4/83, de 2 de abril)
(projeto de lei n.º 782/XII/4.ª)
Estabelece medidas de reforço ao combate à criminalidade económica e financeira, proibindo ou limitando relações comerciais ou profissionais ou transações ocasionais com entidades sedeadas em centros offshore ou centros offshore não cooperantes
(projeto de lei n.º 803/XII/4.ª)
Propõe a adoção pelo Estado português de um plano de ação nacional e internacional para a extinção dos centros offshore
(projeto de resolução n.º 1286/XII/4.ª)

Sr.ª Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados:
Cabe-me apresentar o projeto de lei do PCP relativo à criminalização do enriquecimento injustificado. Mais tarde, o Sr. Deputado João Oliveira fará a apresentação dos projetos do PCP relacionados com os offshore e com a criminalidade económica e financeira.
No que se refere ao enriquecimento injustificado, foi precisamente há oito anos que o PCP apresentou nesta Assembleia, em 15 de fevereiro de 2007, um projeto de lei nessa altura também designado por «enriquecimento injustificado». Mais tarde, em 2009, nas iniciativas legislativas evoluiu-se para a designação de «enriquecimento ilícito» e temos, de certa forma, oscilado nesta designação para propormos iniciativas que basicamente têm o mesmo objeto.
Nessa altura, há oito anos, o projeto de lei apresentado pelo PCP foi rejeitado com os votos contra do PS, do PSD e do CDS. Houve uma evolução quando apresentámos uma iniciativa em 2009, pela segunda vez: nessa altura os votos contra foram apenas do PS e do CDS. Até que, finalmente, foi possível encontrar uma solução maioritária para aprovar um texto que foi declarado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, como sabemos, com a consideração de que o texto aqui aprovado violava a presunção de inocência constitucionalmente consagrada por significar uma inversão do ónus da prova relativamente à prática do ilícito criminal.
Na iniciativa que agora apresentamos, temos escrupulosamente em conta aquela que foi a decisão do Tribunal Constitucional. Uma das considerações feitas e que levou à declaração de inconstitucionalidade era a de que não havia precisão quanto à determinação do bem jurídico a defender com a criminalização do enriquecimento ilícito — foi assim que se designou o texto então aprovado. Daí que aquilo que o PCP agora propõe é que muito claramente se estabeleça que o bem jurídico a preservar é o valor da transparência na obtenção de património e rendimentos. É esse o valor a que corresponde uma obrigação de declaração de um património, declaração inicial se esse património for acima de 400 salários mínimos nacionais. Ou seja, um património que seja superior a 200 000 € deve ser declarado ab initio, após a entrada em vigor do texto legal que for aprovado e, para além disso, acréscimos patrimoniais de valores superiores a 200 salários mínimos deve implicar, obrigatoriamente, uma atualização dessa declaração dentro de um determinado prazo com indicação da origem desse acréscimo patrimonial ou desse acréscimo de rendimentos. É a forma que encontramos para tutelar juridicamente, com a aplicação de uma sanção penal em caso de incumprimento, o valor da transparência.
Portanto, respondemos à crítica fundamental feita pelo Tribunal Constitucional, que considerava que o enriquecimento só por ocorrer não pode significar um ilícito criminal, apenas seria ilícito se tivesse por detrás uma origem ilícita, e isso teria de ser demonstrado pelas autoridades judiciárias. O ónus da prova não deveria recair sobre o próprio agente.
O que agora dizemos é que a não declaração ou a não declaração da origem do acréscimo patrimonial deve ser, essa, sim, um ilícito criminal, deve ter uma sanção penal direta. Claro que esse enriquecimento não justificado poderá ser indício da prática de outros atos criminosos, mas aí, então, as autoridades judiciárias, com base nesses indícios, terão de fazer a investigação necessária. Mas a injustificação do rendimento, essa, já é, em si mesma, um ilícito, em nome da transparência que importa tutelar.
Entendemos que este regime para os titulares de cargos políticos, de altos cargos públicos ou de funcionários deve ser um regime agravado, mas este crime deve existir para o conjunto da sociedade e, portanto, também outros cidadãos que tenham um acréscimo patrimonial injustificado devem ter o dever social de, perante os seus concidadãos, justificar esse acréscimo patrimonial.
Sublinhamos que deve haver um regime mais agravado para funcionários e titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, mas deve haver um dever geral de transparência que impenda sobre o conjunto da sociedade. Todos temos, na sociedade portuguesa, a experiência amarga de atos de corrupção gravíssimos que são praticados no âmbito do setor privado, designadamente no âmbito do setor financeiro, e isso também não deve ficar impune quando se criminaliza o enriquecimento injustificado.
Há também soluções propostas pelos outros partidos, pelo que a nossa posição é a de que deve haver uma viabilização para especialidade de todas as iniciativas apresentadas, sem prejuízo de termos algumas dúvidas e divergências relativamente a outros caminhos que são encetados.
Quer-nos parecer, designadamente, que o projeto do Partido Socialista significa um regime mais agravado, se se quiser, da declaração de rendimentos de titulares de cargos políticos, que já existe hoje. Relativamente ao projeto do PSD, pensamos que falta um aspeto, que é o da obrigação de declaração, a qual não é explícita e deveria haver uma explícita obrigação de declaração a partir da qual fosse aferível o enriquecimento injustificado, e também nos parece que se justifica um maior aperfeiçoamento quanto à precisão do bem jurídico-penal a proteger. Parece-nos que a formulação encontrada pelo PSD não responde inteiramente às questões suscitadas pelo Tribunal Constitucional.
Mas essas são questões que podemos e devemos dirimir na especialidade. Fazemos votos para que, mais cedo do que tarde, esta Legislatura aprove a criminalização do enriquecimento injustificado, porque seria um passo muito significativo e de muito valor no combate à corrupção, que é um combate que muito preocupa os portugueses.
A impunidade do enriquecimento injustificado é, de facto, algo que falta na nossa ordem jurídica, que é sentido pela generalidade dos nossos concidadãos e a Assembleia da República tem o dever de corresponder a essa preocupação, aprovando a legislação pertinente.
(…)
Sr.ª Presidente,
Sr.a Deputada Teresa Leal Coelho,
Queria colocar-lhe duas questões relacionadas com o projeto de lei do PSD e do CDS-PP, que acabou de apresentar, e a que, de certa forma, já aludi na minha intervenção inicial, mas que gostaria de aprofundar.
Em primeiro lugar, parece-nos que, no projeto de lei, falta uma obrigação declarativa específica. Porquê? Porque se criminaliza um acréscimo patrimonial e esse acréscimo tem de ter, como base, um ponto de partida, qualquer que ele seja; tem de acrescer a algo.
Acontece que declarações de património têm-nas os titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos, não as têm outros cidadãos. E na declaração de rendimentos que todos os cidadãos fazem em sede de IRS, pelo menos aqueles cidadãos que têm um nível de rendimentos que é compatível com aquilo que se exige, que não tenham rendimentos mais exíguos, não há, de facto, uma declaração específica de património que possa servir de ponto de partida para o que se pretende criminalizar.
Por conseguinte, a minha primeira questão é no sentido de saber se não consideram que é necessário que haja uma obrigação explícita de declaração de rendimentos e património, seja como propomos, junto da administração fiscal, aproveitando o prazo que existe para a declaração de IRS, seja por outra forma. Mas quer-nos parecer que há no vosso projeto uma falha, uma omissão que importaria colmatar.
A segunda questão prende-se com a precisão da definição do bem jurídico a tutelar.
Quando o Tribunal Constitucional considerou que não havia, no texto anterior, uma definição de que bem jurídico era esse, quer-nos parecer que a tentativa que fazem de contornar esta questão arrisca-se a ser também ela declarada inconstitucional por falta de precisão.
Porque, senão, vejamos.
Os senhores consideram que «a conduta prevista no número anterior…» — ou seja, o enriquecimento — «… constitui uma perturbação grave à ordem social e à proteção das condições sociais e económicas e atenta contra interesses fundamentais do Estado, nomeadamente no que respeita à preservação dos recursos económicos, necessários ao desenvolvimento humano, social e económico, à confiança e à credibilidade das instituições, e visa salvaguardar a convivência pacífica da sociedade, a transparência das fontes de rendimentos e a probidade, a credibilidade do mercado nacional, a equidade, a livre concorrência e a igualdade de oportunidades, valores que constituem o núcleo essencial dos interesses fundamentais do Estado na vida comunitária». Sr.a Deputada, não me leve a mal, isto ficaria bem no preâmbulo, mas já não fica bem no articulado.
É que, a constar no articulado, isto trata-se, verdadeiramente, de uma ladainha que tem muito pouca precisão relativamente ao bem jurídico a defender. Portanto, não estando em desacordo com estes valores que aqui estão ínsitos, de facto, em abstrato, o que nos parece é que o risco de insistir numa solução inconstitucional é muito grande.
Portanto, apelávamos para que os Srs. Deputados refletissem sobre esta questão e sobre a necessidade de haver uma precisão maior relativamente à definição do bem jurídico a defender, para conseguirmos levar por diante, com êxito, esta nossa tarefa de criminalizar o enriquecimento injustificado ou ilícito, como se preferir.

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