Intervenção de João Oliveira na Assembleia de República

Por uma estratégia nacional para a proteção das crianças contra os abusos sexuais

Procede à trigésima sexta alteração ao Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de setembro, transpondo a Diretiva 2011/93/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, e cria o sistema de registo de identificação criminal de condenados pela prática de crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual de menor
(proposta de lei n.º 305/XII/4.ª)
Estratégia nacional para a proteção das crianças contra a exploração sexual e os abusos sexuais
(projeto de lei n.º 886/XII/4.ª)

Sr.ª Presidente,
Sr.ª Ministra da Justiça,
Sr.as e Srs. Deputados:
O PCP traz hoje a esta discussão um projeto de lei com um conjunto de medidas tendo em vista a aprovação, neste Parlamento, de uma estratégia nacional para a proteção das crianças contra a exploração sexual e os abusos sexuais. É que, Sr.ª Ministra, julgo que se há coisa sobre a qual, nesta Sala, nunca encontrará opinião diferente é a de que o combate aos abusos sexuais e à exploração sexual das crianças deve merecer todo o empenho, seja qual for a perspetiva política que tenhamos nestas questões.
Sr.ª Ministra, não me vou debruçar sobre qualificações à sua intervenção, mas, das referências concretas que fez, retirava apenas a conclusão de que tudo isso deve motivar todo o empenho, seja qual for a perspetiva política que cada um tenha, na prevenção e no combate aos abusos sexuais e à exploração sexual das crianças.
Por isso, Sr.ª Ministra, ao contrário do que faz a proposta de lei do Governo, apresentamos aqui um projeto que coloca como prioridade não o combate à reincidência, não a prevenção da reincidência, mas a prevenção do primeiro abuso sexual contra as crianças e os jovens. Apresentamos um conjunto de propostas e de medidas que, de forma articulada, não só em função de diferentes responsabilidades mas em diferentes esferas de ação e de intervenção, procura criar um quadro de intervenção com o objetivo de prevenir e 30 DE ABRIL DE 2015 19

combater a exploração sexual e os abusos sexuais de crianças e proteger os direitos das crianças vítimas de exploração sexual e abusos sexuais.
Assim, apresentamos um conjunto de propostas concretas com objetivos concretos, visando a erradicação, em Portugal, destes problemas, planificando a intervenção do Estado, dos organismos públicos e das comunidades na prevenção da exploração e abusos sexuais de crianças, com medidas eficazes destinadas a prevenir os riscos de atos de exploração sexual e de abusos sexuais, com a organização de campanhas específicas de esclarecimento e de informação, no plano público, mas também com medidas administrativas, políticas e outras com o mesmo objetivo.
Sr.ª Ministra, procuramos também articular a intervenção que em diferentes esferas é assumida não só pelo Governo mas por outras entidades, nomeadamente a Procuradoria-Geral da República, a própria Provedoria de Justiça, os Ministérios da Justiça, da Educação, da Saúde, a segurança social, a Ordem dos Advogados e as uniões das misericórdias ou das instituições particulares de solidariedade social. Isto porque, Sr.ª Ministra, temos consciência que a prevenção e o combate aos abusos sexuais de menores e à exploração sexual de menores é uma batalha que deve ser assumida por todos aqueles que têm uma intervenção a assumir.
Sr.ª Ministra, queria relembrar aqui uma questão muito concreta: há duas semanas atrás, na Assembleia da República, quando o PCP trouxe à discussão um projeto de lei que previa o afastamento do consentimento para a intervenção das comissões de proteção de crianças e jovens quando o agressor fosse um dos responsáveis parentais daquela criança, as bancadas que hoje apoiam a proposta que a Sr.ª Ministra hoje aqui vem defender, infelizmente, rejeitarem essa proposta do PCP.
Mais valia que, nessa altura, tivessem atendido à questão que aqui foi trazida e permitissem que as comissões de proteção de crianças e jovens, pelo menos, vissem afastado esse obstáculo. Mas já lá iremos, relativamente a outras questões.
Sr.ª Ministra, relativamente à proposta de lei que aqui nos traz há outros fatores de discordância que não só a lista de pedófilos, pois a proposta de lei não é só a lista de pedófilos e há outros aspetos que merecem a nossa discordância, mas centrarei a minha apreciação apenas neste aspeto para dizer que, da parte do Grupo Parlamentar do PCP, há uma frontal oposição à proposta que aqui nos traz por três motivos fundamentais: em primeiro lugar, porque a proposta de lei do Governo preocupa-se com os abusos sexuais de menores depois de já ter havido o abuso mas não se preocupa em evitar o primeiro abuso. O enfoque é todo colocado na reincidência e não na prevenção do primeiro abuso e, julgamos nós, essa é que deveria ser a prioridade.
Em segundo lugar, esta proposta de lei do Governo abandona e põe em causa objetivos de ressocialização dos condenados, optando antes pela sua estigmatização e pelo prolongamento dos efeitos da condenação. Não é esse o caminho, Sr.ª Ministra.
Em terceiro lugar, esta proposta de lei do Governo substitui a ação dos tribunais e dos meios de reinserção social, procurando substituí-la pelo alarme social e pela vigilância de umas pessoas sobre as outras.
E, Sr.ª Ministra, a proposta de lei do Governo faz tudo isto violando a Constituição e violando princípios estruturantes do nosso ordenamento jurídico-constitucional, como sejam os princípios da proporcionalidade em sentido amplo, e em sentido estrito também, o princípio da necessidade e da adequação na restrição de direitos, liberdades e garantias, o princípio da retroatividade, o princípio da igualdade ou a proibição de concentração de dados pessoais.
Sr.ª Ministra, o Governo apresenta esta proposta de lei focando a atenção na reincidência quando não há elementos ou estudos, nacionais ou internacionais, que justifiquem esse enfoque, pelo contrário, há, inclusivamente, um estudo que, no plano nacional, mostra que apenas 3,4% dos condenados tinham antecedentes pela prática do mesmo tipo de crime e que 51,1% tinha uma relação familiar com as vítimas. A estas questões concretas, Sr.ª Ministra, a sua proposta de lei não dá uma única resposta.
Mais: a proposta de lei faz este enfoque na reincidência quando aquilo que era decisivo era fazer o enfoque na prevenção do primeiro abuso, na prevenção de todas aquelas circunstâncias em que está em causa alguém que não tem antecedentes criminais pela prática deste crime mas que acaba por praticá-lo. Era aí que devia ser colocado o enfoque e a proposta de lei do Governo acaba por descentrar essa atenção e essa prioridade.
Por outro lado, Sr.ª Ministra, em vez de respeitar as competências dos tribunais, dos médicos, dos psicólogos, dos assistentes sociais, de todo o sistema de reinserção social, aquilo que o Governo vem fazer é criar, de facto, um clima de alarme social, procurando pôr as pessoas a vigiarem-se umas às outras, sem medir as consequências das propostas que aqui são feitas.
E não somos só nós que o dizemos, Sr.ª Ministra, é o Ministério Público, é a Procuradoria-Geral da República, é o Conselho Superior do Ministério Público, é a Magistratura Judicial, é a Ordem dos Advogados e outros.
Como a Sr.ª Ministra aqui trouxe o exemplo do Reino Unido, vou ler-lhe uma citação de um investigador inglês, Terry Thomas, que, em setembro passado, no Porto, numa conferência sobre estas matérias disse o seguinte: «A imprensa tabloide conseguiu chegar às listas e publicou nomes e moradas de agressores. Alguns foram agredidos por vizinhos e houve quem se tivesse suicidado».
A Sr.ª Ministra certamente não é partidária da justiça do «olho por olho dente por dente» e um dos princípios fundamentais de um sistema penal de um regime democrático é o objetivo da ressocialização dos condenados. Ora, com lógicas estigmatizantes como as que aqui propõe, contrariam-se esses princípios fundamentais.
Concluo, Sr.ª Presidente, dizendo o seguinte: com esta proposta, aquilo que o Governo propõe é efetivamente a criação de um registo que nem a diretiva nem a Convenção de Lanzarote impunham como obrigatórios, colocando como facultativos a Recomendação n.º 43 e o artigo 37.º da Convenção.
Propõe a criação de um registo que não abrange apenas a pedofilia, abrange todos os crimes sexuais, mas fazendo uma distinção, pois deixa de fora cidadãos estrangeiros, que põe em causa a eficácia da proposta.
Propõe um acesso ao registo que vai muito para lá daquele que está previsto na Diretiva e na Convenção, permitindo o acesso à informação muito para lá do universo a quem compete a prevenção e a investigação criminal.
Portanto, Sr.ª Ministra, efetivamente, aquilo que está em causa…
Como dizia, Sr.ª Ministra, aquilo que está em causa é o abandono efetivo de qualquer perspetiva de ressocialização.
Sr.ª Ministra, para concluir, queria deixar esta nota final: mesmo na preparação da proposta de lei…
Os senhores deveriam ter tido em conta os pareceres que vos foram dados e não tiveram, e até um novo artigo 69.º, para além daquele que já existe no Código Penal, os senhores acabam por reproduzir. Mais valia que tivessem ouvido os parceiros e as recomendações que foram feitas, nomeadamente pelo Ministério Público.

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