O logro do ano

Artigo de Vitor Dias
Jornal "Semanário"

2 de Junho de 1999



Já se sabe que quem, fora da área do PS, falar de Mário Soares, logo ouvirá António Guterres a sentenciar do alto dos seus púlpitos eleitorais que "vejam bem como ele é a tal ponto importante que os nossos adversários até só falam dele", ou então que "vejam bem que os outros a tal ponto não têm nenhumas ideias sobre a Europa e sobre Portugal que só atacam o pai da pátria, perdão, o cabeça de lista do PS".

Como se perceberá facilmente, trata-se entretanto de puros truques de retórica eleitoral destinados a encobrir o desejo íntimo do PS de, talvez em nome de um alegado dever nacional de reverência perante a ilustre figura, garantir impunidade absoluta para tudo o que Mário Soares e o PS entenderem dizer.

Salvo melhor opinião, o ponto básico da mistificação central que o PS escolheu para eixo desta campanha não está na falácia da candidatura "supra-partidária" que agora se desmanchou flagrantemente, como era mais ou menos previsível.

Está sim, mais rigorosamente, no facto de o PS, incomodado com a linha argumentativa de que "Soares já está eleito" ( lançada não pelos discursos ou "outdors" do PSD mas pelo primeiro comentário do PCP, em 8 de Fevereiro, ao anúncio dessa candidatura), ter empreendido a cruzada por uma "votação maciça" em Soares para "dar mais força a Portugal na Europa" e, adeus sentido das proporções, "dar mais força à Europa no mundo".

Falando francamente, não pode haver maior e mais definitiva prova de falta de ideias sobre Portugal e a Europa do que apostar em "vender" as eleições para ao Parlamento Europeu como se fossem uma espécie de plebiscito em torno de uma única figura, como se tratasse de escolher uma única voz portuguesa e como se a expressão dos interesses de Portugal na Europa pudessem ser aprisionados num exclusivo protagonismo individual.

Tenha alguém a coragem de o dizer : Mário Soares e o PS compõem esta linha de campanha sabendo perfeitamente da sua falsidade e, pior que isso, da sua séria proximidade com concepções de raiz caudilhista.

Sabendo tão bem como nós que a eventual futura eleição de Soares para Presidente do Parlamento Europeu dependerá muito mais dos clássicos arranjos entre o PSE e o PPE do que do número de votos que Soares obtiver. Sabendo tão bem como nós que a maior parte dos deputados de outros países nunca fixarão se Soares (isto é, a lista do PS, como seria dito na noite de dia 13) teve 35, 40, 45 ou 50 % dos votos.

Sabendo tão bem como nós que Soares já foi Presidente da República durante dez anos, por dois mandatos e no último respaldado em mais de 70% dos votos, e que portanto já teve tempo e oportunidades de sobra para influenciar, a favor de Portugal, os seus conhecidos e amigos estrangeiros.

Sim, sabendo Soares, Guterres e o PS tudo isto e muito mais, mas procurando cavalgar a imensa falta de informação e de conhecimento que uma grande fatia dos eleitores têm em relação às eleições para o Parlamento Europeu e explorar sem escrúpulos a sua provável permeabilidade ao truque simplista da "escolha do homem que...".

A verdade é que, se a manobra tivesse êxito, na noite de dia 13 e nos dias seguintes, para Soares e o seu papel na Europa e no mundo já só sobrariam as palavras de circunstância, sendo que as fortes e substanciais seriam sobre o grande apoio que a votação teria trazido à política do PS e à sua dinâmica para as legislativas.

A merecida derrota deste logro seria um bom sinal de inteligência colectiva e de maturidade da nossa democracia.