Mal e bem acordados

Artigo de Vitor Dias
Jornal "Semanário"

21 de Maio de 1999



Ainda os ecos da «mágoa» de António Guterres com as palavras de Cavaco Silva não se tinham dissipado, e já a TSF nos acordava na manhã de quarta-feira com os estrépitos do «caso» Soares-Jardim e com a excitação do temível duelo Durão Barroso-Guterres previsto para essa tarde na Assembleia da República.

Sentados na cama, fomos subitamente assaltados pela ideia de quanto o país perdeu nestes últimos quatro anos por causa da radical contraposição, da fúria assassina, da animosidade visceral e do ódio irracional que tristemente têm marcado as relações entre PS e PSD.

Veio-nos à memória como o patriótico programa de privatizações que devia pôr termo aos últimos resquícios do desvario revolucionário de há 24 anos foi estupidamente congelado dada a teimosa oposição do PSD aos magníficos planos e compromissos do PS com esses desinteressados benfeitores da pátria que são os grandes grupos económicos.

Veio-nos à memória como uma excelente revisão constitucional foi ao charco por causa da falta de acordo entre estes dois partidos.

Veio-nos à memória esse crime maior que foi Portugal ficar de fora da moeda única, e portanto encostado a esses países atrasados e miseráveis como a Suécia, a Grã-Bretanha e a Dinamarca, exactamente por PS e PSD não se terem entendido.

Veio-nos à memória o terrível dano causado à coesão do tecido social português e à boa causa da modernização das relações laborais pela guerra sem quartel que o PSD, copiando estranhamente o PCP, moveu contra a legislação laboral proposta pelo PS e contra a restritiva política salarial do seu Governo.

Veio-nos à memória aquele episódio lamentável ocorrido quando o PSD, esquecido que tinha sido Cavaco Silva a passar a idade de reforma das mulheres dos 62 para os 65 anos, ajudou o PCP a fazer aprovar, contra a vontade do PS, uma proposta de reposição dessa idade nos 62 anos.

Veio-nos à memória o triste espectáculo de, em 4 de Maio, na investidura de Romano Prodi como Presidente da Comissão Europeia, os deputados do PS no Parlamento Europeu terem votado a favor e os do PSD contra. Um verdadeiro absurdo quando se sabe que aquele estimado democrata-cristão, escolhido por governos socialistas, até tinha declarado minutos antes que «o verdadeiro volante do desenvolvimento será uma nova serie de liberalizações das trocas internacionais» e que uma das maiores preocupações deve ser com «os ritmos de crescimento da despesa social».

Veio-nos à memória como a solidariedade euro-atlântica de Portugal - antiga de 50 anos - foi interrompida pela desatinada e destemperada crítica do Governo do PS à guerra contra a Jugoslávia e ao novo «conceito estratégico» da NATO, mais um vez em trágica divergência com as posições do PSD.

E, recordando estes e muitos outros negativos acontecimentos, subiu-nos sobretudo à cabeça o angustiado sentimento de quanto o país teria ganho se, em vez deste imenso abismo cavado entre PS e PSD no que toca a projectos de sociedade e a políticas estruturantes e fundamentais, as suas grandes divisões se limitassem às etiquetas, às diferenças de personalidades, às questões acessórias e à alternância no fazer o mesmo ou parecido.

E estávamos nisto, quando alguém espreitou o ecrã do computador e exclamou: «eh pá, é tudo falso, estás é mal acordado !».

Certamente que sim. Bem acordados para as eleições e as suas conjunturais exigências de diferenciação já estão o PS e o PSD.