O decreto perdido

Artigo de Vitor Dias
Jornal "Semanário"

23 de Abril de 1999



Na mesa de uma cervejaria da Almirante Reis, encontrámos um rascunho de um projecto de decreto que aqui hoje divulgamos para que o seu autor o possa reclamar, sem necessidade de dar alvíssaras. Reza assim:

"Preâmbulo :

Nos últimos anos, têm-se acentuado consideravelmente nas sociedades modernas, e Portugal neste aspecto não é excepção, uma manifesta incompatibilidade entre um antigo conjunto de valores e regras democráticas atinentes às disputas eleitorais e os interesses dos «media» ditados pela sua sagrada missão de suscitar mais apelativamente o interesse dos eleitores.

É indiscutível que, na prática, muito tem sido feito no sentido de superar esta incompatibilidade, designadamente substituindo o pluralismo e a equidade no tratamento das diversas candidaturas pela selecção antecipada de dois únicos protagonistas com possibilidades de vitória e também pela substituição do avaliação de propostas ou projectos pela exclusiva valorização das batalhas verbais entre os candidatos que, antecipadamente, se decretou serem os mais mediáticos ou interessantes.

Entretanto, à beira de eleições europeias, parece adequado pôr a lei de acordo com as realidades e, nesse sentido, se passa a dispor:

Artigo 1º

1. Por prejudiciais ao interesse mediático da luta eleitoral e designadamente à proeminência do duelo Mário Soares-Pacheco Pereira, devem ser dadas por absolutamente inexistentes todas as convergências, todos os acordos, todas as votações conjuntas que, no passado, associaram fortemente o PS e o PSD em matéria de construção europeia.

2. Para assegurar a inexistência decretada no número anterior, devem ser queimados todos os arquivos de imprensa escrita ou registos audiovisuais, incluindo números do "Diário da Assembleia da República", que possam ser usados pelos inimigos da modernização das campanhas eleitorais para contestar aquela inexistência.

3. Com as necessárias adaptações, é igualmente dada por absolutamente inexistente a há tempos muita celebrada aproximação programática do PP ao PSD em matéria europeia, bem como a reflexa aproximação do PP ao PS que decorria daquela sua outra aproximação ao PSD.

Artigo 2º

1. Definem-se como crimes de natureza eleitoral, a ser sancionados nos termos de regulamentação posterior, todas as referências que veiculem ideias perniciosas como a de que, em 13 de Junho, não se elege nenhum Presidente do Parlamento Europeu, mas sim 25 deputados portugueses àquele órgão e pelo sistema proporcional .

2. Constituem crimes particularmente agravados afirmações no sentido de que o dr. Mário Soares será sempre eleito deputado ao PE desde que o PS tenha mais de 5% dos votos, bem como explicações de que o único duelo individual existente nas eleições portuguesas é para a Presidência da República, ou ainda esclarecimentos visando divulgar que, cada partido, acima daquele limiar de 5% , elegerá deputados ao PE na proporção dos votos que tiver e que todos os votos obtidos em qualquer ponto do país contribuem para a eleição de deputados.

Artigo 3º

Por não obedecerem ao critério moderno do deslumbramento com poses e palavras e convocarem em tempo de eleições o fastidioso tema do trabalho realizado, devem ser imediatamente canceladas as inoportunas referências jornalísticas a balanços do trabalho feito pelos 25 actuais deputados portugueses ao Parlamento Europeu e que têm apresentado os 3 deputados comunistas como as "estrelas" da representação nacional."