Intervenção de

Orçamento do Estado para 2002 (abertura do debate) - Intervenção de Lino de Carvalho

Senhor Presidente,
Senhor Primeiro-Ministro e Membros do Governo
Senhores Deputados,

Se tivéssemos que classificar, em poucas palavras, este Orçamento e as operações de "diálogo" com a oposição desencadeadas pelo Primeiro-ministro, diríamos: encenação, engano, cedência ao capital financeiro, penalizações para os trabalhadores, irrealismo, desorçamentação.

Encenação e engano, senhor primeiro-ministro, para usar expressões suaves. Porque quando convocou as três rondas de conversações com a oposição, fingindo um diálogo que não queria (pelo menos com o PCP), já tinha as suas opções bem definidas, orientadas para a direita e para os grandes interesses. Pediu sugestões quando já tinha as medidas negociadas com o mercado de capitais, decidido congelar os salários, prosseguir com as privatizações. Apesar dos indícios já então evidentes o PCP entregou ao Governo um memorando com nove sugestões para a elaboração do Orçamento. Foi um gesto com significado político que o Primeiro-ministro ignorou. Praticamente nem uma foi assumida, porque este é um Orçamento, desde o início da sua elaboração, a pensar e claramente de apelo ao voto da direita, seja directamente seja por interposto Campelo. Este é um Orçamento que, no que se refere à reforma fiscal e à tributação das grandes sociedades, traduz uma total inconstância do Governo, vagabundeando à medida das pressões e dos interesses do grande capital, transmitindo sinais contraditórios para a economia. Quem pode acreditar num Governo que menos de um ano após as alterações introduzidas nos impostos sobre o rendimento e nos benefícios fiscais, três meses depois da revisão global dos Códigos, semanas depois do Primeiro-ministro e do Ministro das Finanças terem jurado a sua fé sobre a Reforma Fiscal que tinha sido aprovada, sem sequer darem tempo a que as modificações entrassem em vigor e fosse testada a sua eficácia, dá o dito por não dito, suspendendo tudo, reconstruindo todas as medidas de favorecimento do capital financeiro ? A revisão do regime de tributação das mais valias não assenta em nenhuma base credível e tecnicamente aceitável. Trata-se tão somente de uma clara cedência às exigências da banca e dos patrões das SGPS.

Cedência ao capital financeiro

A reforma fiscal tinha permitido introduzir no nosso ordenamento jurídico mais justiça tributária e melhores condições para o combate à fraude e à evasão fiscal. Desagravou-se a tributação sobre os rendimentos do trabalho e procurou-se acabar com o escândalo do Estado nada arrecadar em resultado de vultuosas transacções de património mobiliário e imobiliário geradoras de muitos milhões de contos de ganhos em mais valias. Era e é inaceitável que os rendimentos conseguidos a trabalhar sejam altamente tributados e os rendimentos resultantes dos negócios bolsistas não o fossem. Naturalmente que os grandes interesses económicos e financeiros tocados por estas alterações reagiram (e o Governo já o sabia antes), e reagiram fortemente, com pressões, exigências e chantagens. Esperava-se de um Governo que se dizia empenhado em introduzir mais justiça no sistema que reagisse com firmeza a estas intoleráveis manifestações de afrontamento por parte do poder económico. Mas a verdade é que o Governo do PS e o Eng.º Guterres fizeram exactamente o contrário. Vergaram-se a essas pressões e aproveitaram a primeira oportunidade para dar o dito por não dito fazendo, nalguns casos, recuar o sistema fiscal para situações anteriores aos próprios Códigos. Entretanto, criou um original facto orçamental: como assumir já um recuo total poderia ser excessivo para a opinião pública e até para o interior do próprio Partido Socialista, o Governo tratou de descansar as boas consciências, prometendo neste Orçamento para 2002 legislar já para 2003, dizendo que, então sim, a tributação sobre as mais valias será reposta mas, em todo o caso, reduzida a metade. Mas para já fica tudo sem efeito e entretanto volta a adiar os jurados compromissos de até ao final deste ano avançar com o Imposto sobre o Património e o Imposto Automóvel.

Eis alguns exemplos da futura tributação a acreditar, mesmo ingenuamente, nas novas promessas do Primeiro-ministro para 2003:

Em IRS, o saldo líquido das mais valias de acções (descontada a parte sujeita a isenção que entretanto sobe de 200 mil escudos para 500 mil escudos) só é considerado em 50% independentemente do período da sua detenção. Desta feita o Governo comete ainda a proeza de beneficiar os movimentos especulativos de capitais de curto ou curtíssimo prazo. Acresce outra solução orçamental insólita: a tributação sobre as mais valias deixa outra vez de existir - ou, dito de forma mais eufemística, fica suspensa - mas se houver menos valias no mesmo tipo de movimentos já os prejuízos podem ser reportados durante os cinco anos seguintes. Terceiro exemplo em IRS: o regime de tributação de dividendos. As alterações propostas traduzem-se na curiosa conclusão de que vão beneficiar somente os mais elevados rendimentos que se encontram no escalão dos 40%.

Vamos agora ao IRC. Também aqui o saldo líquido das mais valias em resultado da alienação de activos passa a ser tributado só a 50%. Com a reforma fiscal eram tributados a 100%. E ainda com um prémio extra: é que este benefício passa a ser alargado ao activo incorpóreo o que quer dizer que uma empresa pode vender património produtivo, máquinas, por exemplo, e apostar, com as mais valias apuradas, em negócios na bolsa, situação que, aliás, não era aceite - e bem - pelo quadro legal anterior à reforma fiscal. Às SGPS era exigida uma participação de 25% no capital das associadas para poderem ter acesso aos benefícios nas operações realizadas dentro de cada grupo. Agora, passa a bastar uma participação de 10%. Mas mais. A partir deste Orçamento os saldos das mais valias realizadas antes de 1 de Janeiro de 2001 podem ser incluídas nos resultados de qualquer exercício anterior (de preferência um em que tivesse havido prejuízos), à vontade do freguês, e sem exigência de reinvestimento. Só aqui estima-se em cerca de 600 milhões de contos as mais valias nesta situação. Não será exagero afirmar que só nesta operação os grandes grupos económicos embolsarão - e o Estado perderá - qualquer coisa como 180 milhões de contos !!!

Vamos agora às operações nas zonas francas, para o caso, o off-shore da Madeira. O Governo quis fazer crer que iria aqui apertar o controle aos movimentos ilícitos de capitais. A verdade é que para as SGPS alargam-se as isenções às mais valias e não só aos lucros. As instituições financeiras deixam de ser solidárias no pagamento do imposto devido quando se comprove que a operação afinal foi realizada de modo fraudulento. E, finalmente, alivia-se - e muito - a exigência de certificação da qualidade de não residente, condição para beneficiar das isenções inerentes à zona franca. Praticamente passa a servir qualquer meio de prova - o que facilite mais a vida ao interessado, presume-se - e para as SGPS até se afirma que estão dispensadas da (fraca) comprovação exigidas às restantes entidades.

Mesmo as medidas de clarificação introduzidas no regime simplificado e na pequena agricultura deixam de fora, entre outras, a publicação dos coeficientes técnicos e a situação dos rendeiros, sem os quais a sua aplicação continuará a gerar múltiplas injustiças.

É evidente que perante tantas benesses os interesses financeiros - embora rindo-se - só teriam, de novo, de aplaudir com todas as mãos o recuo do Governo. Afinal, o Governo do Partido Socialista ainda tem muito para lhes dar.

E não nos venham falar da justificação de última hora da "competitividade fiscal" e da necessidade de dinamização do mercado de capitais devido aos acontecimentos de 11 de Setembro. Sendo, além do mais, uma condenável instrumentalização dos actos de terrorismo, a verdade é que a situação de abrandamento, crise e até recessão das economias e, em particular, do mercado de capitais, já vinha muito de trás, anterior à reforma fiscal, e a verdade também é que mais nenhum País reagiu à situação económica existente, que, obviamente nós não ignoramos, eliminando ou suspendendo a tributação das grandes sociedades, pelo menos, no nível em que o Governo Português o está a fazer. A instabilidade da política fiscal, essa sim, é que é a responsável pela perda de confiança dos mercados.

Penalização para os trabalhadores

Mas esta proposta de Orçamento é tanto mais chocante quanto, em contrapartida, o Governo se prepara para transferir para quem trabalha os custos das suas opções. Os valores para a despesa com pessoal inscritos no Orçamento, já com a dotação provisional, não vão além dos 3% de aumento para a massa salarial o que significa que o que fica para o aumento nominal das remunerações dos trabalhadores da administração pública não vai além de pouco mais de 1,5%. Pelo terceiro ano consecutivo os trabalhadores vão perder poder de compra.

O Governo continua, com isto, a dizer que em Portugal se continua a apostar numa política de baixos salários em vez de estimular as empresas a caminhar no sentido de melhorar a oferta (melhor gestão, melhores tecnologias, mais investigação, mais e melhor formação, novos mercados e, por consequência, melhor produtividade). É uma orientação estrategicamente errada dirigida a um tipo de empresariado avesso à iniciativa, ao risco e ao investimento, sempre pronto a penalizar o trabalho exigindo menos salários e mais facilidades para despedir, mais precarização e mais flexibilidade, sempre a reclamar menos impostos (que, aliás, não paga), sempre a exigir menos Estado mas sempre encostado aos apoios e aos subsídios desse mesmo Estado. Ora o País precisa exactamente do oposto. Além do mais parece ignorar que a melhoria do poder de compra dos portugueses é também um forte estímulo para as empresas e para a economia. E não venham também com o fantasma do crescimento da inflação. A economia pode conviver saudavelmente com mais um ou dois pontos percentuais de taxa de inflação, num quadro de estímulo ao desenvolvimento, sendo que, sintomaticamente, quem argumenta recorrentemente com a tese da inflação pelos salários esquece sempre o aumento da inflação pelos lucros.

Outro pecado não menor deste Orçamento tem a ver com o completo e voluntário irrealismo com que foi elaborado. Num quadro de generalizado abrandamento da economia, de contenção do comércio internacional com uma mais que previsível diminuição da procura externa, de uma quebra continuada do índice de confiança dos consumidores, de recessão ou a caminho dela, o Governo propõe-nos para 2002 um crescimento idêntico ao deste ano, um mesmo nível de crescimento do consumo privado, um salto no investimento quase para o dobro, contrariando, aliás o que ele próprio afirma no relatório do Orçamento. É, claramente, um Orçamento de ficção. À falta de melhores argumentos o Governo socorre-se agora, desesperadamente, dos dados do INE para o final do segundo trimestre ignorando deliberadamente a forte desaceleração que se produziu e está a produzir neste último semestre e que se vai agravar no próximo ano em resultado conjugado da crise internacional, de uma crescente liberalização do comércio internacional em áreas de extrema sensibilidade como os têxteis e o agro-alimentar, de uma continuada perda de produtividade e competitividade da economia portuguesa por ausência de uma política sustentada de desenvolvimento dos nossos sectores produtivos. Neste contexto cada vez é mais incompreensível a insistência numa política de privatizações, que o Governo quer agora alargar aos estabelecimentos hospitalares, feita por exclusivas razões de encaixe financeiro e que não tem conduzido a nenhuma reestruturação do nosso aparelho produtivo, bem pelo contrário. Tudo isto deveria conduzir a mais prudência na fixação dos cenários apontados no Orçamento. Mas o Governo prefere transmitir sinais errados ao País e às actividades económicas por razões de mera engenharia estatística e de um perigoso jogo de esconde esconde o défice por medo de Bruxelas em vez de assumir, como o PCP propôs, a irrazoabilidade dos critérios de convergência impostos pelo Pacto e pelo Programa de Estabilidade e Crescimento.

A evidência maior do que afirmamos está nas projecções para as receitas fiscais e para a inflação. O IRC, em Setembro passado, apresentava uma quebra de receita cobrada em relação ao ano anterior de 9,6%. Mas o Orçamento afirma que em Dezembro essa quebra se irá situar somente nos 0,3% e que para 2002, apesar do reconhecido abrandamento da economia e da baixa da taxa do IRC a sua receita crescerá mais 5,5% e o IVA, mais 7,5%. É, obviamente, um cenário sem qualquer credibilidade que faz deste Orçamento um documento em que ninguém acredita, de tal modo que um destacado membro do Partido Socialista já fala na previsibilidade de um rectificativo logo para os princípios de 2002. Da nossa parte estimamos que as previsões de arrecadação de receita fiscal só para este ano estejam sobreavaliadas em cerca de 109 milhões de contos.

Em relação à inflação, mesmo que haja alguma moderação na chamada inflação importada não é crível, face a uma leitura sequencial atenta dos índices de preços médios e do índice homólogo e face à evolução previsível das tensões na economia europeia e mundial, que aquela baixe dos 4,3% / 4,4% que atingirá este ano para os 2,75% que o Orçamento nos propõe para 2002. Tal como afirmámos o ano passado o valor da inflação proposto pelo Governo tem um objectivo central: enganar os trabalhadores, procurando condicionar de maneira ilegítima as negociações salariais com a administração pública e, por extensão, as negociações da contratação colectiva geral no País.

Esta é outra das características deste Orçamento. Só no que se refere ao Serviço Nacional de Saúde a desorçamentação de despesas pelo recurso a autorizações de endividamento para pagar dívidas deste ano, logo despesa efectiva, e pelo desvio para activos financeiros a título de capital inicial visando aquilo a que o Governo chama de "empresarialização dos estabelecimentos hospitalares" monta a cerca de 168 milhões de contos. Mas porventura mais grave do que isso é o facto do Governo, numa atitude sem precedentes e absolutamente inaceitável, não ter entregue a descriminação do Orçamento do SNS para 2002 enquanto os valores de previsão para 2001 revelarem parecer que se está a apostar, deliberadamente, na sua describilização para melhor poder justificar o seu desmantelamento e privatização.

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

Nestas condições não há apelo de ninguém, de nenhum órgão de soberania nem nenhuma utilização abusiva pelo Governo dos trágicos acontecimentos de 11 de Setembro que possam salvar este Orçamento.

Se o Primeiro-ministro entende que face à instável situação internacional seria útil que se gerasse um consenso em torno do Orçamento para 2002 deveria, à partida, ter feito, ele próprio, um esforço real e de boa fé para que o Orçamento incorporasse medidas que pudessem suscitar essa convergência, questão que, aliás, o Presidente da República também devia ter presente. Do nosso lado, como o afirmámos, deveria ser um Orçamento de verdade, que funcionasse como alavanca para ajudar a economia portuguesa a suportar a crise económica, que não fizesse pagar aos trabalhadores e aos sectores mais desfavorecidos da sociedade portuguesa como os reformados e pensionistas o preço das dificuldades, que não insistisse numa irracional política de privatizações, que prosseguisse com a reforma fiscal e não claudicasse perante os grandes interesses económicos e financeiros, que introduzisse mais justiça, mais coesão e mais equilíbrio social.

Lamentavelmente nada disto acontece neste Orçamento. O Governo e o PS optam mais uma vez por não enfrentarem os grandes interesses inviabilizando, assim, o clima de confiança necessário à construção de uma política à esquerda. Esta responsabilidade, no contexto concreto deste Orçamento, deve-se exclusivamente às opções de fundo do Partido Socialista, opções que se traduziram também na revisão constitucional, na Lei de Programação Militar, nas iniciativas em curso no âmbito da regulamentação da Lei de Bases da Segurança Social e de alterações à legislação laboral.

Por isso, em nome dos interesses do País e da justiça social rejeitamos claramente o Orçamento de Estado para 2002.

  • Assuntos e Sectores Sociais
  • Economia e Aparelho Produtivo
  • Regime Democrático e Assuntos Constitucionais
  • Assembleia da República
  • Intervenções