Intervenção de António Filipe na Assembleia de República

Sobre os projectos que procedem à alteração dos crimes de violação no Código Penal

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

Propõem o BE e o PAN alterações ao Código Penal, no que se refere ao crime de violação, no sentido de alterar o respectivo regime legal, tendo como referência decisões judiciais transitadas em julgado que foram alvo de crítica pública com base na consideração de que as penas aplicadas foram demasiado brandas para a gravidade dos crimes constantes das acusações deduzidas.

É uma evidência que alterações legislativas não alteram decisões judiciais passadas e que algumas das decisões publicamente criticadas foram tomadas à luz de um regime legal que entretanto foi alterado em 2015 aquando da reforma penal que visou a adaptação do Código Penal Português à Convenção de Istambul.

Há uma questão pertinente que aqui é colocada em debate, e essa questão é a de saber se a lei penal portuguesa, na forma como tipifica o crime de violação, abrange todas as situações que deve abranger de modo a impedir espaços indesejáveis de impunidade. Em 2015, as alterações ao Código Penal aprovadas na sequência da Convenção de Istambul permitiram avançar nesta matéria, ao não limitar o crime de violação aos casos em que tenha havido violência.

Porém, podemos ainda assim discutir se a formulação actual é suficiente para que o ato sexual que, por não ser consensual, atente contra a liberdade de autodeterminação sexual, seja punida como violação. Neste ponto creio que haverá unanimidade nesta Câmara. Os crimes contra a autodeterminação sexual são muito graves, devem ser punidos como tal, e todos devemos trabalhar para encontrar as melhores soluções legais para que esse objectivo não seja frustrado. A este respeito, as propostas hoje em discussão não são coincidentes e qualquer alteração na tipificação criminal do crime de violação tem de ser cuidadosamente ponderada de modo a não frustrar os objectivos que todos pretendemos atingir.

As iniciativas que hoje são propostas contêm, porém, aspectos de que discordamos e que não podemos deixar de assinalar.
Em primeiro lugar, propõem aumentos de penas que são desproporcionados. Não faz sentido que a moldura penal da violação seja igual à do homicídio. Está mais que demonstrado que não é a maior ou menor moldura penal que impede a prática de crimes. É claro que a crimes graves devem corresponder penas graves, mas devem ser evitados aumentos avulsos de penas que nos conduzam a um sistema penal desequilibrado e incoerente.

Percebe-se a intenção dos proponentes de agravar as penas para além dos 5 anos para evitar a suspensão das penas de prisão. Mas esse é um problema do Código Penal que não pode ser resolvido à peça. Ou se volta atrás na decisão tomada há uns anos de permitir a suspensão da execução de penas de prisão inferiores a cinco anos ou se excluem certos crimes da possibilidade de suspensão. O que não se pode é aumentar as penas de certos crimes para evitar a suspensão da execução das penas de prisão.

Em segundo lugar, discordamos da consideração da violação como crime público. E discordamos, precisamente, em nome da protecção dos direitos das vítimas que, recorde-se, é uma questão central considerada na Convenção de Istambul.

Um crime considera-se público quando essa consideração é do interesse da sociedade. O crime é semi-público e depende de queixa, quando se remete para o interesse da vítima a ponderação do que fazer em face do crime. Salvo no caso dos menores, a que o Código Penal já dá resposta, obrigar uma vítima de violação a participar num processo contra a sua vontade pode levar a uma revitimização contraproducente. Também aqui a vítima deve ter direito á autodeterminação. Não pode ser instrumental à realização de uma Justiça pública.

Argumenta-se por analogia com a violência doméstica. Mas embora as situações não sejam idênticas, no caso da violência doméstica ainda se permite que a vítima possa suspender o processo, o que no caso vertente não se propõe.

Finalmente, defende-se o agravamento do regime penal proposto com a ideia de alterar a consciência social relativamente a certo tipo de crimes. O problema é que não é essa a função do direito penal. O direito penal é uma última ratio de intervenção para a protecção de bens jurídicos fundamentais consolidados. Não é pela via da repressão penal que se alteram consciências sociais.

Concluímos pois, afirmando que compartilhamos as preocupações quanto à necessidade de encontrar boas soluções para a tutela penal adequada dos crimes sexuais, atenta a sua enorme gravidade, mas não nos identificamos com falsas soluções como as que são propostas que, podendo ser mediaticamente sedutoras, são erradas, do ponto de vista do interesse das vítimas e da coerência que deve ter uma adequada política criminal.

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