Intervenção de Pedro Maia, Conferência «II Centenário do nascimento de Karl Marx – Legado, Intervenção, Luta. Transformar o Mundo»

O materialismo dialéctico e o combate contra o idealismo e o irracionalismo na actualidade

Ver vídeo

''

Que fazer com a liberdade?

1. Que fazer com a dita.

Mais de dois séculos volvidos sobre a Revolução Francesa, o que fez o ordenamento então nascente à proclamada Liberté?

Sem prejuízo dos ganhos efectivos entretanto obtidos, fruto também de intensas e sangrentas lutas, cedo se tornou evidente que a vitória histórica do sistema capitalista sobre o ordenamento feudal tradicional correspondeu à manutenção, reformulação, aprofundamento e sofisticação das formas mais variadas de discriminação e de exploração, ou seja, na deturpação de um suposto ideal universal de liberdade.

A liberdade agora vigente não se traduziu na libertação da dicotomia material radical entre explorados e exploradores, entre produtores de mais-valia e apropriadores da mesma, entre proletários e capitalistas.

O trabalho de Marx é decisivo para a compreensão deste ponto nodal: enquanto a liberdade assentar de raiz naquela diferença e contradição, então necessariamente assumirá as figuras da liberdade de explorar — «a liberdade do capital na sucção da força de trabalho», como refere em O Capital — e da liberdade de vender a força de trabalho.

Por exemplo, a análise crítica profunda dos droits de l’homme a que procede nas páginas do ensaio Zur Judenfrage (Para a Questão Judaica), de 1844, mostra um Marx muito atento à concepção dominante do valor da liberdade presente nas Declarações dos Direitos do Homem. Como «a liberdade do homem» é aí entendida «como mónada isolada, virada sobre si própria», como «o direito deste isolamento, o direito do indivíduo limitado, limitado a si», Marx avança num registo conclusivo do seu argumentário: «Nenhum dos chamados direitos do homem vai, portanto, além do homem egoísta, além do homem tal como ele é membro da sociedade civil, a saber: [um] indivíduo remetido a si, ao seu interesse privado e ao seu arbítrio privado, e isolado da comunidade.» A marca de classe da liberdade torna-se evidente, assim como a ideia de que não pode haver verdadeira emancipação política sem libertação dos condicionamentos de ordem económica.

Com a sua abordagem materialista e dialéctica da história, dos mecanismos determinantes do funcionamento da economia, e da sua articulação com os dispositivos políticos e ideológicos das sociedades, o marxismo também isto nos ensina: que não há valores ou ideais, como o da liberdade, sobrepairantes aos contextos sociais e históricos e aos seus protagonistas concretos e situados.

Isto não nos deve impedir de defender que a liberdade continua a constituir um desafio de e para a humanidade, que a luta pela universalização da liberdade e pela libertação face à matriz exploradora do sistema capitalista vigente é uma exigência indeclinável.

Este trabalho pede, desde logo, não a capitulação, mas a crítica sistemática e a denúncia continuada da ilusória liberdade dominante, e a reinvenção da liberdade autêntica e em conformidade com a dignidade humana. Neste contexto, a apropriação dos contributos críticos de autores contemporâneos não deve ser menosprezada, mas sim objecto da devida ponderação.

2. A crítica de Byung-Chul Han.

Vejamos o caso do filósofo germano-coreano Byung-Chul Han, cuja obra vem sendo muito traduzida e divulgada nos últimos anos.

Em texto publicado em 2014, o autor propõe tópicos sugestivos de análise crítica, designadamente sobre o que designa como «novas técnicas de poder» do sistema neoliberal dominante. O legado de um Michel Foucault é aqui assumido e reformulado, na passagem que efectua do conceito de biopolítica (supostamente adequado à descrição do sistema capitalista disciplinar) para o de psicopolítica (mais pertinente para a fase neoliberal que atravessamos).

Não esquecendo que as formas mais rudes e cruéis de exploração permanecem (veja-se, por exemplo, os fenómenos de escravatura contemporânea, noticiados amiúde e bem documentados), não deixa também de ser verdade que a sofisticação das técnicas de dominação é um traço distintivo do poder actual.

O objectivo imediato é o de tornar o poder inteligentemente sedutor, ou seja, maximamente eficaz — «Quanto maior é o poder, mais silenciosamente age.» A finalidade última será a mesma: naturalizar e legitimar a exploração, exponenciar o lucro, garantir a extorsão da mais-valia. Fazer todo o barulho com o máximo de silêncio, causar toda a perturbação como se nada fosse — eis o lema.

Tentemos aqui um resumo da argumentação de Byung-Chul Han.

Segundo ele, «hoje, através de diferentes vias, a liberdade transforma-se em coação.»

Como é que isso acontece?

Acontece na medida em que o neoliberalismo se apropria do sonho e do ideal da liberdade para o deturpar através de mecanismos psicológicos sofisticados, e tanto mais eficazes quanto inconscientes. Nos termos do autor:

«O neoliberalismo é um sistema muito eficaz, e de facto inteligente, de explorar a liberdade.»

O lance decisivo desta eficácia do psicopoder dominante joga-se no facto de o indivíduo se pensar livre, quando na realidade o sistema explora a sua liberdade, ou seja, há um sujeito que se submete sem ter consciência da sua submissão, uma espécie de servidão ou submissão voluntária:

«A técnica de poder própria do neoliberalismo adquire uma forma subtil, flexível, inteligente e escapa a toda a visibilidade. O sujeito submetido não tem sequer consciência da sua submissão. A estrutura da dominação mantém-se totalmente oculta aos seus olhos. Daí que se suponha livre. (…) O poder inteligente (…) seduz em vez de proibir.»

As figuras do empreendedor (em abstracto, quem pode não achar bom sê-lo?...), do «empresário de si próprio», do explorador de si próprio, são neste quadro altamente apropriadas e recomendáveis.

Apropriadas e recomendáveis porque vêm dar lastro e, ao mesmo tempo, força para alguns dos mitos astuciosos que o neoliberalismo procura tornar mais consistentes e abrangentes: o mito da autorrealização e da autossuficiência, como se alguém se pudesse bastar a si próprio e se realizasse isoladamente; e o mito de que “a minha liberdade termina quando começa a liberdade do outro”, como se a liberdade não fosse, de raiz, «uma palavra relacional», como se a liberdade consistisse na quebra de laços e no individualismo isolacionista, como se a liberdade não se afirmasse e frutificasse quando ou na medida em que começa a liberdade do outro, ou seja, em relação com o outro, no interior de uma comunidade, como se ser livre, nos mais diversos níveis e instâncias dos relacionamentos, significasse «outra coisa senão realizarmo-nos mutuamente

Que o pensamento suponha e implique autonomia e relativo isolamento — um quarto que seja seu, para recordar o maravilhoso texto de Virginia Woolf) —, ele só é possível porque o indivíduo se encontra já de início e radicalmente em relação com o(s) outro(s) (e quando faz de si próprio um outro).

O pior escravo ou o escravo mais absoluto será então aquele que «se explora a si próprio de forma voluntária», tornando o sistema tanto mais eficaz quanto maior é o carácter voluntário da exploração. A inteligência aqui quantifica-se e mede-se pelo grau de eficácia sedutora. Byung-Chul Han é esclarecedor e pertinente quando diz:

«Explora-se tudo o que pertence a práticas e formas de liberdade, como a emoção, o jogo e a comunicação. Explorar alguém contra a sua vontade não é eficaz. Na exploração de outrem, o produto final é parco. Só a exploração da liberdade gera o rendimento máximo.»

Os mecanismos de controle e manipulação psicológica actuam assim a um nível pré-reflexivo. A análise que o autor propõe sobre o panóptico das redes digitais, o Big Brother digital, revela-se como um exemplo flagrante desse controle inconscientemente voluntário (e em obediência um paradigma de ilusória transparência):

«A liberdade e a comunicação ilimitadas transformam-se em controle e vigilância totais. (…) A sociedade do controle digital procede a um uso intensivo da liberdade.»

Valerá a pena aprofundar a análise daqueles mecanismos e da sua inteligência astuciosa.

O poder que seduz convence o outro de que é livre e, desse modo, fá-lo mostrar-se até na sua intimidade e torná-lo “agente” participativo na grande montra desta pseudodemocracia comunicacional:

«O poder inteligente adapta-se à psique em vez de a disciplinar e submeter a coações e a proibições. Não nos impõe qualquer forma de silêncio. Pelo contrário: exige que partilhemos, participemos, comuniquemos as nossas opiniões, necessidades, desejos e preferências — ou seja, que contemos as nossas vidas.» A conclusão segue-se inevitável: «Este poder amável é mais poderoso do que o poder repressivo.»

Em termos do grau de eficiência do controle, estamos pois bem distantes do panóptico de J. Bentham (modelo aplicável a penitenciárias, fábricas, escolas, hospitais ou hospícios) ou do Estado vigilante distópico de G. Orwell (em que o modelo repressivo e silenciador é claramente dominante):

«No pan-ótico digital não existe esse Big Brother que extrai de nós informações, contra a nossa vontade. Somos nós, pelo contrário, que por nossa iniciativa nos expomos e desnudamos.»

E estamos bem distantes desses modelos de inspecção e dominação anteriores porque o panóptico actual — «o culminar da sociedade de controle digital» — é muito mais subtilmente intrusivo, profundo e abrangente, ao tornar os sujeitos “agentes” inconscientes da sua própria exploração:

«Enquanto sujeito que se expõe à luz e se vigia a si próprio, encontra-se num pan-ótico em que é simultaneamente recluso e carcereiro. O sujeito em rede, digitalizado, é um pan-ótico de si próprio. É, portanto, deste modo que a vigilância é delegada em cada um dos vigiados.»

Assim, sendo «capaz de atingir processos psíquicos em termos prospetivos», sendo capaz de se antecipar à (e condicionar a) vontade livre, esta «capacidade de prospeção da psicopolítica digital significaria o fim da liberdade

Deste modo, conclui o autor, «a psicopolítica neoliberal é a técnica de dominação que estabiliza e reproduz o sistema dominante por meio de uma programação e do controle psicológicos.»

Em 1934, Simone Weil acreditava ingénua e idealisticamente que «jamais é possível (…) quer penetrar, quer manejar do exterior o pensamento humano.» Ou: «nada existe no mundo que possa obrigar um homem a exercer a sua capacidade de pensamento ou subtrair-lhe o controle do seu próprio pensamento.»

Bem pelo contrário, «o isolamento total a que o regime liberal nos conduz não nos torna realmente livres.» Mais: esse isolamento converte-se precisamente no campo livre para a ocupação e apropriação do capital, no caminho aberto e propício para a ditadura do capital.

3. A crítica da crítica.

Mas, chegados a este ponto, devemos dizer que a análise crítica de Byung-Chul Han parece atingir os seus limites, ou, pior, revelar uma preocupante irracionalidade, como se o próprio se tivesse deixado levar pela avalanche de ilusões criada pelo sistema capitalista.

É que um passo importante é o esforço de tentarmos perceber os mecanismos da dominação psicológica inoculada pelo sistema capitalista e inoculadora da suposta naturalidade do seu ordenamento; outro andamento bem distinto é (não) perder o pé relativamente à radicação ontológica definidora do sistema capitalista, e para as consequências sociais e políticas que desse gesto advêm.

Esclareçamos este ponto.

O facto de muito boa gente (porventura, uma imensa minoria) se poder ver como «um trabalhador que se explora a si próprio na sua própria empresa», como «senhor e escravo na sua mesma pessoa», e desse modo considerar que «a luta de classes se transforma em luta interna de cada um consigo próprio», vai levar o autor à conclusão inaceitável e irracional de que a luta de classes deixou de fazer sentido. Pretendendo talvez avisar uns tantos distraídos e esclarecer outros tantos irremediavelmente anquilosados, Byung-Chul Han assegura e dá corda a uma conversa que não é nova:

«O neoliberalismo, enquanto forma de mutação do capitalismo, transforma o trabalhador em empresário. É o neoliberalismo, e não a revolução comunista, que elimina a classe trabalhadora submetida à exploração alheia.» Tudo isto para concluir que

«Já não é possível manter a distinção entre proletariado e burguesia.»

E assim, num ápice, como se a questão se pudesse resolver com um passe de mágica, desaparece a funda materialidade da produção do capital, onde a lei da mais-valia prevalece e se revela como o motivo impulsionador do sistema; (se esta desvinculação dos processos ao enraizamento na materialidade não for idealismo não sei o que será);

oblitera-se a separação matricial entre o capitalista e o operário, ou, nos termos usados por Marx (de onde não está ausente alguma ironia), entre o «possuidor de dinheiro» e «o possuidor de força de trabalho», o primeiro «significativamente sorridente e zeloso pelo negócio, o outro tímido, contrariado, como alguém que levou a sua própria pele ao mercado e agora nada mais tem a esperar senão — ser esfolado»;

ignora-se a proletarização crescente de várias camadas sociais e classes profissionais que se tem verificado nos últimos tempos, e, portanto, a permanência (que a sofisticação não apaga) dos meios «de subjugação, de exploração e de pauperização do operário», de «repressão organizada da sua vitalidade, liberdade e autonomia individuais»; e, claro está, esfuma-se toda a possibilidade ou sequer um mero vislumbre de uma revolução comunista.

É caso para perguntar: para quê então tanta manipulação e estratagema psicopolítico de dominação, se no fim de contas todos nos transformamos de facto em empresários, e diferença e a luta de classes pura e simplesmente deixaram de existir?!

Na verdade, com esta deriva irracionalista, é a própria noção de exploração que radicalmente perde todo o sentido. Deixar entendido que o neoliberalismo vai fazer dispensar qualquer revolução comunista porque elimina a classe trabalhadora submetida à exploração alheia é um raciocínio ontológica e epistemologicamente não fundamentado, logicamente abstruso e inaceitável, e social e politicamente capitulacionista ou no final rendido aos cantos de sereia do sistema capitalista, que antes tinha posto a nu e criticado.

Que hoje estejamos «sob a dominação de uma ditadura do capital», tal não pode fazer esquecer algo de relativamente elementar: é que essa ditadura tem protagonistas, detentores e beneficiários, e também vítimas.

Que muitos hoje se iludam com o mito «de uma autoprodução ilimitada» e da autorrealização como «projeto livre de si mesmo», não pode fazer esquecer que se trata mesmo de uma ilusão.

E o mesmo se diga quanto à pretensão neoliberal de transformar a exploração alheia em auto-exploração supostamente afectando e nivelando, ou seja, suprimindo todas as classes — pura ilusão, insidiosa máscara para fazer crer que o capitalismo deixou de ser aquilo que é: um sistema assente na exploração do trabalho alheio e na extorsão e acumulação de mais-valia pelos exploradores.

Reconheça-se que num ponto Byung-Chul Han tem razão. É quando diz que este seu desarrazoado nada tem que ver com a matriz do pensamento marxista. Como ele refere:

«A auto-exploração sem classes é totalmente estranha a Marx. Torna impossível a revolução social assente na distinção entre exploradores e explorados.»

Que o sistema dominante procure isolar os trabalhadores, convencê-los de que deixaram de pertencer a uma classe trabalhadora explorada, passando a ter o estatuto de colaboradores ou mesmo de senhores da sua empresa, tornando-os corresponsáveis e/ou culpados pelos seus (in)sucessos, mais não são do que vias astuciosas para impedir a criação e o desenvolvimento entre os trabalhadores de um «nós político com capacidade de ação comum.» Ou seja, com poder de resistência, de solidariedade e de afirmação da sua liberdade libertadora.

A sofisticação das relações de dominação repressiva não elimina o índice de repressão das mesmas, antes as torna muitíssimo mais eficazes no seu desiderato dominador.

  • Conferência
  • Central