Intervenção de Agostinho Lopes na Assembleia de República

Em defesa da Constituição da República e do nosso futuro colectivo: Não à ratificação do Tratado assinado em Lisboa a 13 de Dezembro de 2007

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:

É o 25 de Abril data maior da nossa Pátria, afirmação maior da soberania e da independência nacional.

Afirmação de uma Pátria liberta de comandos, subordinações, subserviências ao estrangeiro, que não manifestação xenófoba ou serôdia visão autárcica do País num mundo de intersecções e interdependências de nações e povos. Bem pelo contrário!

Umbilical da afirmação de uma pátria liberta do labéu colonialista, que não podia ser livre quem oprimia outros povos. Afirmação de dignidade de um povo soberano na escolha do seu futuro colectivo, como comunidade humana com mais de oito séculos de História. Escolha que pressupunha, e pressupõe, o livre e responsável exercício da democracia, da participação democrática e soberana do povo nessa escolha, que a hoje pretendida ratificação parlamentar nega , em vésperas das comemorações dos 34 anos de Abril.

Ratificação de um Tratado que ofende e viola o principal fruto do «dia inicial inteiro e limpo», a Constituição da República Portuguesa.

Ratificação que aparece, assim, objectivamente como provocação política à própria Revolução de Abril.

Srs. Deputados,

O que se contesta na ratificação parlamentar não é a sua legitimidade formal (proposta de resolução n.º 68/X), a sua conformidade formal com as atribuições e competências desta Assembleia, é o uso oportunista dessa possibilidade da letra da lei para a negar, na sua materialidade essencial, a soberania do povo e a missão e imperativo constitucional de «aprofundamento da democracia participativa», conforme o artigo 2.º da Constituição.

E se o povo não exerce essa intervenção na avaliação de um Tratado internacional que, bom ou mau, atrela o País a um quadro institucional com tão profundas consequências para o seu futuro, tão radicais constrangimentos no seu relacionamento internacional, tão complexas limitações ao exercício da soberania, onde está, Srs. Deputados, o tema, o assunto, a opção que deva considerar-se como reclamando a sua participação e decisão por referendo?

Depois, a recusa do referendo é coberta por uma fraude política gigantesca, bem claramente vista numa argumentação capciosa que já tivemos ocasião de denunciar e que nada justifica, porque é falsa. Uma mentira política declaradamente assumida, onde a única verdade é o medo, o imenso medo que as forças ditas socialdemocratas ou conservadoras, as forças do grande capital que governam os Estados da União Europeia, têm - e despudoradamente o confessam - que um qualquer referendo possa fazer ruir o Tratado.

O que se contesta no Tratado é a sua brutal confrontação e desconformidade ao texto constitucional, que estabelece, sem margem para ambiguidades, no artigo 8.º, que «As disposições dos tratados que regem a União Europeia (...) são aplicáveis na ordem interna (...) com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.» Ora, esse imperativo respeito não está considerado no Tratado da União Europeia.

No artigo 5.º estabelece-se que «O Estado não aliena qualquer parte do território ou dos direitos de soberania que sobre ele exerce (...)».

O Tratado em causa aliena «os recursos biológicos do mar». Aliás, vai ser interessante ver como vota o Sr. Deputado Ricardo Rodrigues, um dos primeiros subscritores da petição a exigir referendo por causa desta matéria.

Aliena poderes soberanos do Estado em matéria de política externa, de defesa nacional e de direitos, liberdades e garantias, e aliena mesmo competências exclusivas da Assembleia da República.

No artigo 7.º, Relações Internacionais, estabelece-se que «Portugal rege-se (...) pelos princípios da independência nacional, (...) da igualdade...» - sublinho - «... entre os Estados (...)». O Tratado consolida um modelo federal de poder na União Europeia, institucionalizando a desigualdade de voto nas decisões e na condução da União Europeia entre os grandes e os pequenos e médios países, na base da dimensão das populações, consagrando de facto e na letra do Tratado o directório das grandes potências.

No mesmo artigo 7.º, n.º 2, estabelece-se: «Portugal preconiza a abolição do imperialismo, do colonialismo e de quaisquer outras formas de agressão, domínio e exploração nas relações entre os povos, bem como o desarmamento geral e controlado, a dissolução...» - sublinho - «... dos blocos político-militares (...)». O Tratado visa a constituição de um pólo imperial europeu, sob direcção da Alemanha e de outras potências, o reforço armamentista da União Europeia e a consolidação da NATO no seu pilar europeu, com articulação e comando dos EUA.

A Constituição da República, na Parte II, Organização Económica, define e assume uma clara matriz social e económica de intervenção e regulação do Estado, com a subordinação do poder económico ao poder político e o planeamento do desenvolvimento económico e social, assegurando simultaneamente «o funcionamento eficiente dos mercados». O Tratado perfilha e constitucionaliza o neoliberalismo como ordem económica e social, com a transformação da «concorrência não falseada» em sacrossanto princípio fundador da União Europeia, paradigma da livre circulação de capitais sem entraves, do livre comércio e motor da globalização imperialista.

Tratado que reconhece a Carta dos Direitos Fundamentais, atribuindo-lhe «o mesmo valor jurídico que os tratados», onde se inscreve não o «todos têm direito ao trabalho» do artigo 58.º da Constituição da República mas, em contraposição, «o direito de trabalhar», em estranha, ou talvez não, coincidência com a Constituição de 1933, de Salazar.

Alguém disse a propósito da Revisão Constitucional de 2004, que o PS, o PSD e o CDS aprovaram para acolher o primado do direito da União Europeia, inscrito no defunto tratado dito constitucional: «o sintoma que historicamente mais revela a decadência das classes dirigentes em Portugal é o cansaço de ser autónomo. Cansaço que leva essas classes dirigentes a aceitarem a perda da autonomia nacional sem um momento de reflexão, nem sequer de hesitação. O que se passou na Assembleia da República com esta Revisão Constitucional foi um dos momentos mais tristes e deprimentes de toda a nossa história parlamentar fora do período ditatorial».

Quem disse isto, Srs. Deputados, não foi nenhum comunista antieuropeísta impenitente mas, sim, João Ferreira do Amaral, prestigiado professor do Instituto Superior de Economia e Gestão, membro do PS, recordando, a propósito, 1385 e 1580, datas de crise da independência nacional.

Infelizmente para o País, vamos ter hoje a repetição desses momentos tristes e deprimentes com a ratificação do Tratado!

Srs. Deputados, quando caminhamos para os nove séculos de História nada nem ninguém poderá retirar ao povo português o imprescritível direito de escolher o seu futuro colectivo como povo e País soberano.

O Tratado da União Europeia é, e será, independentemente do grave significado antipatriótico e anticonstitucional do seu conteúdo, apenas mais um episódio da triste história das traições das classes dominantes em Portugal, subordinando os interesses nacionais aos seus mesquinhos e privados interesses de grupo!

A ratificação parlamentar do Tratado a 23 de Abril, excluindo a participação e a decisão por referendo do povo soberano, em vésperas do 25 de Abril, assume uma particular gravidade, mas esclarece também o caminho a prosseguir pelos portugueses. Esclarecimento porque convoca a luta dos portugueses, dos trabalhadores e camadas antimonopolistas, dos patriotas, dos homens e mulheres que não se resignam a ver este País, Portugal, feito região de um super Estado europeu, dirigido pelas grandes potências e pelo grande capital transnacional, a levantar uma barreira, a construir o «não» à Europa do capital, a continuar a resistência para depois vencer o federalismo, o neoliberalismo e o militarismo a que o Tratado quer amarrar o País.

Resistir e lutar por Portugal é hoje, em primeiro lugar, lutar contra o projecto de União Europeia consubstanciado no Tratado; é resistir e lutar por uma Europa de cooperação entre povos e países soberanos e iguais em direitos, por uma Europa de paz e de cooperação com todos os povos do mundo.

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