Intervenção de Joana Antunes, membro da Direcção da Organização Regional de Setúbal, Debate «Política patriótica e de esquerda em defesa dos direitos das mulheres – A alternativa do PCP para o combate à violência doméstica»

"Impõem-se medidas que combatam as causas da violência doméstica"

A violência doméstica tem, como outras violências exercidas sobre as mulheres, causas próximas e remotas, causas de diferente natureza. E sem analisar as causas, sem o devido enquadramento, dificilmente se identificam e preconizam com acerto soluções para prevenir e combater o problema.

No nosso entender, as causas para mais este flagelo que atinge a sociedade não podem ser desligadas do estado em que esta se encontra actualmente. Uma sociedade em que as relações económicas assentam no sistema capitalista, sistema esse em profunda crise; em que a ideologia dominante tem tradução em políticas neoliberais que estão na origem do brutal aumento da exploração e empobrecimento.

Os modelos de sociedade forjam mentalidades, influenciam comportamentos. Olhemos para Portugal. Até há pouco mais de 40 anos atrás, antes da Revolução de Abril de 1974, durante o regime fascista:

– O marido podia rescindir o contrato de trabalho da mulher;

– A mulher não podia exercer uma actividade comercial sem autorização do marido;

– O salário da mulheres era 40% do dos homens (as mulheres ganhavam menos de metade que os homens);

– A família era dominada pela figura do chefe que detém poder marital e paternal; o código civil determinava que «pertence à mulher durante a vida em comum, o governo doméstico»;

– O homem tinha o direito de abrir a correspondência da mulher;

– Até 1969, a mulher não podia viajar para o estrangeiro sem autorização do marido;

– O Código Penal permitia ao marido matar a mulher em flagrante adultério sofrendo apenas um desterro de 6 meses;

– Os médicos da Previdência não estavam autorizados a receitar contraceptivos orais; a mulher não tinha o direito de tomar contraceptivos contra a vontade do marido;

– O aborto era punido em qualquer circunstância com pena de prisão entre 2 a 8 anos.

Com tamanha discriminação, indignidade, humilhação para a mulher na lei, haverá alguma dúvida de que na vida quotidiana as mentalidades e comportamentos pressupunham a menorização do papel da mulher na sociedade? A aceitação da ideia de subjugação da mulher em relação ao homem? Da legitimidade do domínio do homem em relação à mulher?

E o fascismo não ficou no passado, é uma ameaça do presente perante o aprofundamento da crise capitalista, do aumento da exploração e do empobrecimento, da desconfiança perante a incapacidade de resposta do actual sistema...

A Revolução de Abril de 1974 representou para as mulheres portuguesas um acontecimento histórico pelo reconhecimento de direitos fundamentais e por um aspecto essencial – a vivência quotidiana do exercício desses direitos, o que correspondeu a uma explosão de intervenção massiva das mulheres – da participação política à sindical, da gestão de escolas à de cooperativas, no acesso a novas profissões e carreiras.

Foram adoptadas medidas revolucionárias na área do direito da família, no alargamento e reforço dos serviços públicos, na área do trabalho e da segurança social, na criação de creches e jardins-de-infância, na área dos direitos da criança. A Constituição da República Portuguesa, a 2 de Abril de 1976, consagrou a premissa «a trabalho igual ou de igual valor, salário igual».

O processo revolucionário abriu um caminho novo para a emancipação da mulher. Haverá alguma dúvida de que esse processo de transformação da sociedade – ao nível político, económico, social e cultural – também contribuiu para uma evolução positiva na transformação de mentalidades? Uma evolução no sentido do reconhecimento de que não há progresso social numa sociedade que discrimina, menoriza e violenta as mulheres.

Mas o processo revolucionário foi interrompido. A Revolução de Abril é uma revolução inacabada. Trinta e oito anos de políticas de direita foram forçando o caminho inverso. Não fora a luta persistente de defesa das conquistas da Revolução, durante todos estes anos, a situação seria bastante pior.

Mais do que retrocessos sociais, registamos hoje retrocessos civilizacionais. Regressam os discursos de que a mulher deve regressar a casa, largar o trabalho para dar atenção aos filhos, cuidar do lar e da família. Empurra-se para a mulher a responsabilidade de «compensar» o que na sociedade vai piorando.

Banaliza-se a violência. E como tem aumentado! Um pouco por todo o mundo vemos a multiplicação das agressões militares sobre os povos. É atroz o número de vítimas mortais, incluindo mulheres e crianças. Relembre-se aqui as revoltantes imagens televisivas do massacre pelas tropas israelitas de milhares de crianças e mulheres palestinas. E o agressor – o Estado de Israel – saiu impune. As notícias serviram realmente para informar? Ou tratou-se de aproveitar o efeito emocional para aumentar audiências?

A proliferação destes acontecimentos e a seguir das respectivas imagens não leva a relativizar o nível de agressividade? Não terá efeito, não apenas nos adultos mas também nas crianças e jovens a banalização da violência, nomeadamente, através da sua mediatização? Há inúmeros vídeo-jogos assentes em cenas de violenta acção militar. São inúmeras as séries de desenhos animados e novelas em canais dirigidos a crianças e jovens com imagens degradantes da relação entre amigos, entre familiares, seja através de agressão física ou verbal. ...Os «reality shows», cuja audiência parece subir assim que há episódios de agressão entre os concorrentes. É a sociedade de consumo a privilegiar o tempo de antena para, supostamente, «o que vende melhor».

É a mercantilização da violência como produto rentável. Veicula-se a ideia de que «é o que as pessoas gostam de ver», sem se dizer que os grupos económicos que detêm o poder sobre a produção e difusão televisiva dos canais privados não dão oportunidade a que os espectadores vejam outras coisas.

O problema da violência que começa cedo entre os jovens, nomeadamente, a violência no namoro. Somos influenciados para culpar o ambiente escolar, para responsabilizar os professores. Mas os verdadeiros responsáveis são aqueles que no Governo decidem a retirada de verbas para o sistema público de educação, não contratam auxiliares de acção educativa, despedem professores aos milhares, desenvolvem toda uma campanha de descredibilização dos professores. Será que isso contribui para a consideração e o respeito tanto de alunos como pais em relação aos professores? Será que contribui para que a autoridade do professor ajude ao re-equilíbrio em caso de instabilidade do aluno durante as aulas?

Um olhar sobre a mediatização de casos de violência doméstica, nos jornais ou da televisão, leva-nos a questionar se o modo como são tratados contribui para o esclarecimento de formas de apoio à vítima, ou procedimentos de prevenção que potenciais vítimas possam ter em conta. Será que as notícias que ouvimos têm efeito de encorajar as vítimas a denunciar o agressor, a libertar-se da situação? Ou, pelo contrário, amedrontam, fazem-na pensar que o melhor é estar calada, «fechar-se» e aguentar?

Tudo o que conhecemos e sentimos de incapacidade de resposta dos serviços de segurança social, de saúde, de justiça, será que encorajam e dão confiança à vítima de violência doméstica para que avance com a denúncia, a queixa, o encetar de um processo judicial que se arrastará no tempo? A desresponsabilização do Estado em relação às suas funções sociais e a redução drástica dos recursos afectos ao funcionamento das estruturas de serviços públicos é mais um obstáculo à prevenção de casos, ao acompanhamento e protecção das vítimas, ao controlo das acções do agressor.

Um outro aspecto que importa abordar é o da transversalidade da violência doméstica. Haverá diferentes causas a originar a ocorrência do problema em diferentes camadas e classes sociais. Associar o problema da violência doméstica apenas às camadas da população com problemas económicos criará ainda mais dificuldades à adopção de medidas efectivas para o combate ao problema. Contribuirá para uma ainda maior estigmatização das vítimas.

Ainda assim, importa ter em conta que uma mulher que seja economicamente dependente do agressor (no todo, ou em parte), uma mulher que tenha um vínculo de trabalho precário (a maioria dos trabalhadores que o têm são mulheres!), ao factor psicológico (do medo, da vergonha de assumir que é vítima,...) somar-se-á o factor económico a dificultar a libertação da situação a que está amarrada.

Impõe-se o combate à violência contra as mulheres, independentemente da sua idade ou condição social, considerando sempre que a violência põe em causa a dignidade da mulher, a saúde pública, o valor do respeito pelo outro.

Impõem-se medidas que combatam as causas da violência doméstica.

Romper com políticas que contribuem para agravar o problema é possível e é urgente.

Repor o caminho do progresso social é essencial para transformar mentalidades.

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