A vertente cultural da democracia - Emancipação, Transformação, Liberdade

Anteprojecto de Resolução Política do Encontro Nacional do PCP sobre Cultura

1. Cultura e ideologia

Marx e Engels mostraram o fundamento objectivo da dominação ideológica da burguesia, – a sua posição dominante na esfera económica – bem como a função da ideologia burguesa na subordinação das  classes trabalhadoras, na legitimação mistificadora do seu Estado e do seu modo de organização do viver social e na reprodução da sua posição de domínio.  Mostraram ao mesmo tempo que sendo embora dominante a ideologia burguesa  não é a única,  porque as sociedades de classes são marcadas por contradições e porque o trabalho em  certas esferas da ideologia, como as ciências e as artes, adquire tendencialmente uma autonomia relativa face às determinações económicas e sociais em que se desenvolve. É esta autonomia  relativa que permite compreender o profundo apreço por obras geradas em sociedades  profundamente desiguais e opressivas, a longa  reivindicação do acesso à cultura e a prática efectiva de uma democratização cultural, por parte do movimento operário e comunista.

1.1. Ao apontar o que considerava como as três fontes do marxismo – a filosofia alemã, a economia política inglesa e o socialismo francês – Lénine escrevia que a teoria de Marx era “o sucessor legítimo de tudo o que a humanidade criou de melhor no séc. XIX”. É o mesmo  Lénine –  em estreita conexão com o pensamento de Marx e Engels e assimilando de forma criadora e crítica a experiência acumulada pelo  movimento operário e pela intelectualidade revolucionária que nele tendia a intregrar-se – aquele que, de forma mais aguda, tomará a luta  ideológica em geral e, especificamente,  o trabalho teórico como constituindo uma instância da luta de classes.

1.2. De Marx e Engels a Lénine a valorização desta instância deve-se ao caracter profundo e simultaneamente quase inaparente do domínio burguês que nela se exprime, um domínio de tal forma poderoso que alguns dos seus valores podem sobreviver às realidades económicas ou sociais de que eram expressão, ou revelar o que se tem designado como um atraso da consciência social em relação a mutações verificadas no ser social. A importância atribuída a esta instância da luta de classes é tal que para Lénine ela surgirá  como um dos factores ou uma das tarefas que justificam a necessidade de um partido revolucionário, ou seja, de um partido “guiado por uma teoria de vanguarda”.

1.3. O pensamento e a acção de Marx, Engels e Lénine irradiando da Europa para os outros continentes reconfiguraram a tradição de luta dos explorados e oprimidos, deram uma base filosófica e científica ao ideal e ao projecto dos comunistas que lhes permitirá combinar a herança de sonhos milenares de emancipação humana e as reivindicações mais avançadas de toda uma nova era da história das sociedades. Milhões de militantes comunistas entregaram generosamente a sua vida à luta pela independência dos seus países, à resistência antifascista e anti-imperialista, ao progresso e à justiça social para os seus povos, à conquista da consagração em tratados internacionais de um conjunto de direitos económicos, sociais e culturais que constituem uma plataforma política de alcance civilizacional hoje ameaçada pela ofensiva do imperialismo. Em consonância com essa luta, milhares de artistas e cientistas, militantes e simpatizantes comunistas marcaram indelevelmente a história das artes e das ciências ao longo de mais de um século.

2. A complexidade da esfera da cultura: diferenciação disciplinar, técnica e social

É neste quadro complexo que devemos considerar a cultura. No amplo entendimento que dela fomos construindo, a cultura – ou seja, a cultura científica, tecnológica, artística e filosófica; a educação, o ensino e a comunicação social –  é um universo técnica e socialmente diferenciado – um conjunto de actividades e aparelhos, meios e instrumentos de trabalho; um conjunto de artefactos tomados como bens de consumo individual e social; um conjunto de valores, representações  e atitudes, de comportamentos e modos de vida. A esta diversidade técnica e disciplinar há que acrescentar a diversidade que é socialmente determinada das diferentes formas de produção, transmissão e circulação, ou comunicação: cultura erudita, cultura mediática de massas e cultura popular.

2.1. “Política cultural” e “cultura integral do indivíduo”. Estas distinções não são ociosamente académicas. São instrumentos de que uma análise de classe deve dotar-se para poder dar conta da realidade em movimento e para acertar nas posições a tomar na intervenção que visa transformá-la. Assim, neste Encontro, trataremos sobretudo da cultura artística e dos valores, representações e atitudes que nela e através dela são modelados, intermediados e partilhados, o que corresponde, entre nós, ao entendimento generalizado da expressão “política cultural”. Precisamente por isso, entendeu-se deixar ficar claro que o nosso entendimento da cultura não se esgota nas fronteiras, mesmo que porosas, da “cultura artística”. É necessário ter em conta esse nosso amplo entendimento da cultura, se não quisermos comprometer numa só direcção os esforços em torno dos nossos objectivos programáticos e se, pelo contrário, queremos reinvindicar como parte do nosso legado a noção de “cultura integral do indivíduo” , tal como no quadro do pensamento marxista ela foi pensada pelo intelectual comunista que foi o nosso camarada Bento de Jesus Caraça.

2.2. No mundo contemporâneo, a cultura é crescentemente atravessada pela economia e, ao mesmo tempo que se diferencia internamente não deixa em larga medida de coincidir com aquilo que para Marx constituía a esfera da ideologia.

No mundo actual, a cultura adquire um peso crescente na vida social. Tal facto traduz uma evolução marcada por um muito rápido revolucionamento das formas e tecnologias da informação e da comunicação, e por processos de industrialização, mercadorização e mundialização de que Marx rastreou os primeiros sinais, quando, por exemplo, poucos anos depois de Goethe, se refere, no Manifesto do Partido Comunista à emergência de uma literatura mundial.

Num processo contraditório que hoje se encontra num momento de grande tensão, geraram-se condições materiais para uma profunda democratização da cultura. Efectivamente se, por um lado, tanto os meios técnicos de produção e reprodução de objectos culturais como os meios concretos para a sua difusão e fruição tiveram ao longo do século XX um impressionante desenvolvimento quantitativo e qualitativo, por outro lado vêm-se acentuando de forma brutal desigualdades sociais e nacionais que privam enormes massas humanas dos mais elementares recursos e condições de vida e, em muitos casos, acrescentando não apenas a exclusão cultural a muitas outras formas de exclusão, mas também a expropriação dos seus valores, património, criação e tradição cultural próprios.

Confirmando e tornando proféticas análises de Marx e Engels nos remotos anos do Manifesto do Partido Comunista – “A burguesia não pode existir sem revolucionar permanentemente os instrumentos de produção, portanto as relações de produção, portanto as relações sociais todas” – o capitalismo, na sua forma imperialista, conseguiu apropriar-se da revolução científica e tecnológica e das novas tecnologias, e desviar em seu favor as possibilidades geradas. Criaram-se e desenvolveram-se inúmeras “industrias culturais” ou “indústrias de conteúdos” produzindo para um mercado. Neste processo, o capital, por um lado, explora as necessidades, que ele próprio configura, de entretenimento e evasão na ocupação dos “tempos livres” (tempos destinados à reposição da força de trabalho); gera e alimenta concepções que reduzem a cultura a mais uma área de mercado ou a  mais um sector da produção e troca de mercadorias; faz aparecer novas áreas de lucro potencial e de aculturação ou disseminação dos valores da ideologia dominante. Entretanto, por outro lado, este processo constitui a base material para a reinvindicação e posterior consagração de direitos culturais, de titularidade não só individual, mas também colectiva e social e de direitos sociais, como os dos trabalhadores dessas indústrias. Hoje, como todos os outros, estes direitos encontram-se submetidos a uma violenta ofensiva expropriadora, que tem como alvo estratégico o direito ao trabalho e o trabalho com direitos.

Apresentando-se como a forma contemporânea da cultura popular e muitas vezes parecendo acolher, para lha retirar, a função de ligação à experiência de vida e de trabalho das camadas populares – função essa que encontramos nas manifestações da cultura operária e camponesa das zonas suburbanas ou das etnias dos países colonizados, trazidas ou  atraídas para as metrópoles  coloniais – irá surgindo uma cultura mediática de massas, ou seja, uma cultura consumida por massas imensas e contando com um forte apoio prestado à sua promoção  publicitária e “crítica”, pelos grandes media audio-visuais e jornalísticos. Hoje ainda em crescimento, essa cultura mediática de massas, “cultura do espectáculo”, condiciona aos seus padrões de “visibilidade social” a repercussão pública da cultura erudita, e apresenta o gosto manipulado das grandes audiências como o critério único e eficiente de valoração estética. Destinada a um consumo tendencialmente passivo, rotineiro e  acrítico, anestesiando o sofrimento e a solidão urbanas; canalizando, para o esoterismo e as diversas receitas “milagrosas” de salvação e cura, o desespero ou a falta de perspectivas dos indivíduos, isolados ou insularizados e, ao mesmo tempo, transformados em participantes iludidos de comunidades ilusórias; a cultura mediática de massas concede valor “estético” ou “valor de exposição” às imagens da guerra, da degradação humana individual ou colectiva e, por outro lado, recusa qualquer crítica, que de imediato acusa de “iluminista”. A “cultura do espectáculo” tende a transformar tudo em espectáculo, a propor-nos a morte em directo. A espectacularização da poítica é apenas uma das formas de esteticização de que Walter Benjamin analisou os primeiros sinais no seu ensaio “A Obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”, e joga sem apelo a favor do capital. Numa passagem desse seu ensaio, escreve ele: “Todos os esforços para esteticizar a política culminam num só ponto. Esse ponto é a guerra [...]Nos tempos de Homero, a hmanidade oferecia-se em espectáculo aos deuses do Olimpo; hoje tornou-se no seu próprio espectáculo. Tornou-se hoje tão estrangeira a si mesma que consegue viver a sua própria destruição como um prazer estético de primeira grandeza. Eis a esteticização da política que o fascismo pratica”. 

É necessário compreender que no mercado da cultura e para a cultura mediática de massas quase não há espaço para a diferença ou contradição potencial entre os critérios do lucro, o gosto das grandes audiências e os critérios ideológicos.

2.3. A cultura como campo de luta e jogo de forças. A cultura constitui-se, assim, como campo de luta e como jogo de forças, no limite alternativas e, simultaneamente, como expressão histórica da criatividade humana e manifestação do caracter  transformador que reside, como característica fundamental e como possibilidade real, no trabalho humano.

Podemos assim compreender que a cultura seja para a burguesia dominante  um factor do seu domínio, um dos meios de reprodução do modo de produção capitalista; enquanto para nós comunistas, que criticamos esse seu carácter ou essa sua instrumentalização, ela é tendencialmente um terreno de combate contra a ideologia dominante e um factor de emancipação social, individual e colectiva; um agente histórico de enriquecimento do nosso aparelho perceptivo e de configuração da humanidade dos sentidos; uma antecipação provisória e um compromisso com o livre jogo das faculdades do humano.

3. Por uma  democracia avançada: a democracia cultural no Programa da PCP

Na continuidade histórica  do programa da revolução democrática e nacional definido e aprovado em 1965, assim como dos ideais, conquistas e realizações da revolução de Abril, o programa que nos guia é o da luta e da construção de uma democracia avançada. No ideal e no projecto dos comunistas, assim como no seu programa, a democracia tem quatro vertentes  inseparáveis – política, económica, social e cultural. A democracia cultural integra, assim, a democracia avançada que o PCP propõe ao povo português. Tal como as outras componentes e a própria democracia avançada que as integra, a democracia cultural não é apenas um estado de coisas a atingir, mas um estádio do desenvolvimento económico-social e um processo de democratização revolucionária, que recolhe tudo o que de mais progressista a Constituição da República Portuguesa acolheu. Em suma, também na cultura e com a cultura, este processo  de democratização revolucionária visa e projecta o futuro socialista de Portugal.

3.1. No quadro da interdependência das várias esferas da vida social a democratização cultural depende do grau de desenvolvimento e profundidade que atinja a democracia política, económica e social. Depende designadamente da correlação das forças sociais e de classe, nos planos social e político, dos recursos económico-financeiros mobilizáveis e mobilizados para o desenvolvimento e democratização culturais.

Mas, se a democratização cultural depende da criação de condições materiais para a sua efectivação, também os avanços que consigamos na democratização da cultura produzirão efeitos na economia, no desenvolvimento e na modernização económico-social, porque aquela representa a qualificação do trabalho que é a principal força produtiva. A democratização da cultura é um factor da democratização da sociedade, porque proporcionará uma participação e intervenção crescentes dos trabalhadores, das classes e grupos sociais mais vitalmente interessadas na democracia, no conjunto da vida social e política.

3.2. Finalmente, a democratização da cultura  é ainda um factor de soberania nacional, porque coopera na formação da identidade nacional num processo de interacção aberta e dinâmica com a cultura mundial.

3.3. O neo-liberalismo e a política cultural de direita; a rendição social-democrata. A política cultural do actual governo é marcada por traços essenciais comuns e de continuidade das políticas de direita para esta área. De entre eles, há um que, sendo objectivamente observável, é em si revelador. Depois de o PS no seu Programa Eleitoral criticar a “asfixia financeira” desta área, eis que o seu governo se situa na continuidade dessa orientação política – a magreza, quando não o emagrecimento da dotação orçamental para a cultura – o que condiciona devastadoramente as políticas concretas e, sobretudo, revela como seu cego objectivo a desresponsabilização do Estado em  relação às suas funções sociais e culturais. A obsessão com o défice, se condena a economia à estagnação, condena a cultura à asfixia.

3.3.1. Sinal inequívoco da falta de vontade política que marca a atitude de sucessivos governos em relação ao princípio constitucional da democratização da cultura é o continuado incumprimento de uma recomendação da Unesco que coloca como princípio orientador para países com o tipo de desenvolvimento do nosso que as verbas a gastar com a cultura deveriam representar 1% do P.I.B. É um objectivo que é sistematicamente anunciado, mas sempre em vão.

O orçamento para 2006 estava praticamente ao nível do de 2003 (corrigida a inflação) e foi ainda inferior aos de 2004 e 2005. A asfixia PS não se diferencia da asfixia PSD/PP, antes a acentua, como foi visível, nomeadamente, nos apoios pontuais concedidos nas áreas tuteladas pelo IA. Não apenas os apoios concedidos foram claramente insuficientes, como a percentagem de projectos apoiados foi muito baixa, excluindo, em várias áreas, propostas de grande qualidade. O orçamento para 2007 confirma a orientação de cedência em toda a linha ao neo-liberalismo, e agrava a injustiça fiscal ao aumentar de novo, agora para 65%, a percentagem dos rendimentos da propriedade intelectual ou artística que é tributável para efeitos de IRS. E isso da parte de um governo que, tal como governos anteriores, continua a taxar como de luxo instrumentos e materiais necessários à criação artística e cujos custos são suportados pelos profissionais de várias artes (instrumentos musicais, adereços e acessórios para a dança, materiais para as artes plásticas, etc.).

A tendência, de há muito identificada, de crescimento do peso do Administração Local no financiamento público das actividades culturais ao mesmo tempo que se reduzia o da Administração Central sofre um perigoso agravamento com a Lei das Finanças Locais aprovada pelo PS e promulgada pelo PR. O violento corte nos meios financeiros do Poder Local agravará, no plano local, a situação de penúria e desinvestimento cultural que decorre das políticas do actual Governo.

Mas não é apenas a política orçamental que é negativa no MC. São-no também os indícios que a sua reestruturação orgânica comporta; as perspectivas de aprofundamento da crise em todas as áreas da actividade cultural; a tendência, característica deste governo, de preencher o vazio de iniciativa política consistente com uma agenda de anúncios de intenções, algumas das quais eram enunciadas no já longínquo, esquecido e insuficiente programa eleitoral do PS, mas outras, na sua maioria, ditadas por prioridades que pouco têm a ver com ele, que traduzem uma orientação errática e uma concepção de política cultural indigente.

3.3.2. Um outro  sinal de continuidade das políticas de direita e do seu “ambiente” comum, neo-liberal, é a repetida hesitação perante um falso dilema: apoiar o património histórico ou a criação contemporânea? O dilema é falso porque os apoios a fornecer não são alternativos, antes podem ser até certo ponto complementares. Será escasso e desequilibrado o apoio e não haverá efectiva apropriação social do património cultural, entendido como parte da nossa memória como povo, sem a formação de investigadores e sem o apoio à criação contemporânea que, sendo a nossa participação na configuração das imagens do mundo em que vivemos, comporta em maior ou menor medida a reactivação dessa memória.

Por outro lado, ambos os apoios são componentes indeclináveis da democratização da cultura. Esta democratização, que deve ser pensada como um processo, exige crescentemente a consideração de um apoio social e profissional  a vários sectores dos trabalhadores artísticos, quer individualmente considerados, quer tendo em conta as estruturas em que se integram. Para além disso, a própria noção de acesso democrático implica uma distinção fundamental entre massificação e democratização.
A massificação pode ser mera aculturação, mais acesso a um consumo pouco diversificado ou a formas por vezes incipientes e outras vezes degradadas da cultura mediática de massas. A democratização, por seu turno, implica uma forma de massificação, enquanto momento de generalização num processo de universalização tendencial, mas implica simultaneamente a diferenciação social dos públicos, a abertura do leque de escolhas e implica de forma decisiva a prática da participação e da auto-reflexão sobre ela.

3.3.3. Na convergência do economicismo neo-liberal e da incapacidade histórica das classes dirigentes em Portugal, o Governo do PS permanece prisioneiro de concepções da cultura que a tomam como monumentalização do poder e ornamentação da vida “social” das suas frágeis elites; como protecção de uma reserva para o consumo elitário e como reprodução ideológica que se apoia e delega no mercado uma massificação populista e sem efectiva democratização.

Um governo com tais concepções e tais práticas representa mais um passo na rendição da social-democracia. Depois de um período de “cedências tácticas” à direita, depois de uma outra fase em que a cultura era apresentada como uma significativa diferença entre a social-democraia e a direita, eis que esta última “barreira”é saldada e que a social-democracia se rende ao “pragmatismo” que consiste em aceitar o capitalismo como a melhor, mais “racional” e última forma de organização da produção e da vida social. Este governo social-democrata é e será incapaz de compreender a diferença entre massificação e democratização; é e será incapaz de potenciar o papel da educação e do ensino, assim como do serviço público de comunicação social na democratização da cultura artística; é e será incapaz de planear a médio e longo prazo as acções e programas de formação de profissionais e de públicos que são indispensáveis, mas de escassa “visibilidade” em tempo  que anteceda eleições.

3.3.4. A situação actual nos vários sectores da cultura exige de forma crescente um programa diversificado e profundo de desenvolvimento do ensino artístico, da educação pela arte e da difusão animação ou intermediação culturais. Em contiguidade com estas exigências surge a questão dita da “formação de públicos”. Essa formação não deve ser entendida como padronização de valores a impor a indivíduos passivos, meros espectadores, antes deve solicitar a sua participação como agentes da sua própria formação. Por outro lado, se a democratização do acesso à fruição cultural tem um caracter básico e urgente, ela própria não deve deixar de ter em atenção o acesso à produção e as ligações que entre ambas (a fruição e a produção) se podem estabelecer.

Numa área tão vital como a da rede do Ensino Artístico (geral e especializado) acentua-se a situação de crise, em resultado da ausência de apoios públicos, da precariedade e da instabilidade contratual de docentes e monitores, da ausência de coordenação. Em vez de uma política que apoie, amplie e diversifique esta rede, as crescentes dificuldades encaminham o sector para a inviabilização. Não existe qualquer coordenação de políticas e iniciativas entre o Ministério da Cultura e o Ministério da Educação, salvo em que ambos parecem apostados em afundar os respectivos sectores numa crise sem saída. O papel formador e transformador da cultura, o papel da cultura na formação integral de indivíduos activos e conscientes são indiferentes para este Governo e para esta política.

3.3.5. Os efeitos na cultura das políticas seguidas para a Educação e o Ensino ameaçam ser devastadores se não os conseguirmos travar. Nos ensinos Básico e Secundário as áreas da formação artística, há longo tempo subalternizadas, tendem a diluir-se por completo, num modelo de ensino voltado para uma formação elementar, “prática” e esvaziada dos valores da expressividade humana, da cultura e do pensamento reflexivo. Alterações curriculares e certas “inovações” como a da TLEBS representam um emagrecimento inaceitável das “humanidades”, com reduções na obrigatoriedade de disciplinas e matérias como a Filosofia, a História e a Literatura Portuguesa.No Ensino Superior o bloqueio e a asfixia financeira das Universidades, a precipitação e a falta de rigor nas escolhas feitas, por adaptação a Bolonha, tendem para a adopção de um modelo anglo-saxónico, transplantado sem as condições que existem nos países onde nasceu e se desenvolveu, no abandono de uma tradição universitária humanista que, em condições diferenciadas, marcou positivamente o continente europeu. Os grandes traços comuns a tudo o que de profundamente errado está a ser feito pelos Ministérios envolvidos são o economicismo e um acentuado elitismo de classe.

No que diz respeito à reestruturação orgânica do MC, no quadro do PRACE, são desde já evidentes aspectos preocupantes. Em primeiro lugar, e segundo o testemunho da própria Ministra, trata-se de uma reestruturação que obedece a um padrão comum definido para toda a Administração Central. Significa isto que, para os burocratas que a concebem, e para a Sr.ª Ministra, a estrutura de um Ministério da Cultura, ou da Justiça, ou do Ambiente, ou qualquer outro, podem ser idênticas.

A este absurdo, junta-se aquilo que é o traço comum das políticas deste Governo (e dos que o antecederam) nesta matéria: a coberto de anunciados objectivos de simplificação, racionalização, desburocratização, descentralização, o que efectivamente está em marcha é um processo, orientado por critérios economicistas, de eliminação de serviços que asseguram o cumprimento de incumbências e responsabilidades do Estado. Numa área em que deveria ser exigido um elevado grau de profissionalização, eficiência, capacidade técnica, e adequação dos serviços a uma dinâmica efectiva e descentralizada de defesa e salvaguarda do património e de apoio à criação artística e ao desenvolvimento cultural, o MC concentra institutos, precariza e despede trabalhadores e aliena responsabilidades, nomeadamente através da multiplicação de Fundações e da transformação dos Teatros Nacionais em empresas públicas.

É certo que existiam justos motivos de crítica acerca da estrutura do MC montada por anteriores governos do PS e do PSD/CDS-PP, nomeadamente dos institutos na sua dependência. Mas o que está em curso não é, manifestamente, uma correcção das falhas existentes. Depois da habitual assalto às cadeiras, que durou cerca de um ano, o que está em curso é um MC com uma estrutura menor, para um papel político menor.

O MC não tem apenas um orçamento insignificante. Também gasta e compromete os poucos recursos disponíveis em prioridades injustificáveis, como sucede no que diz respeito ao acordo estabelecido à cerca da Colecção Berardo. Acordo leonino que onera pesadamente o Estado e que é francamente ligeiro para o titular, da colecção. Que resolve vários problemas ao titular, e cria significativos constrangimentos ao Estado. Que hipoteca a diversidade programática da actividade do CCB na área das exposições, e a amarra ao programa estético e às opções de mercado de que esta colecção é edificante exemplo.

Os porta-vozes da política de direita conduzem sistemáticamente uma campanha pela desresponsabilização do Estado no apoio à criação e à iniciativa cultural, nomeadamente através da caricatura à cerca do que chamam “subsídio-dependência”. Trata-se de uma questão tão falsa quanto desprovida de significado. Se é certo que têm sido por vezes discutíveis critérios e opções, a realidade é a de um quadro em que os parcos apoios implicam a exclusão sistematica de um largo número de propostas e projectos valiosos, que deste modo são irremediavelmente inviabilizados. Os apoios do Estado devem ser entendidos não apenas como um elemento essencial de uma política de crescimento cultural, mas também como um factor de garantia da liberdade de criação, que o mercado capitalista não garante nem quer.

Agravou-se a situação social e profissional de muitos trabalhadores artísticos, em particular na área dos trabalhadores do espectáculo. Generalizaram-se a instabilidade, precariedade e a insegurança, tanto nos trabalhadores individuais como nas estruturas em que se integram. Seguindo o exemplo de sucessivos Governos, grandes instituições eliminam estruturas fundamentais, como sucedeu com o Ballet Gulbenkian.

O que se pretende instituir como normal é a instabilidade, a precariedade, o curto prazo, a actividade pontual e intermitente. Esta situação não é apenas social e humanamente gravosa e inaceitável. Ela representa também a negação do exercício da liberdade de criação artística para estes profissionais. Nem o Governo nem outras instituições responsáveis parecem entender assim a questão. Mas o PCP atribui-lhe a maior importância. E, nesse sentido, empreendeu as iniciativas adequadas, nomeadamente no plano da Assembleia de República, onde apresentou um projecto de lei.

A política cultural do actual governo é uma política medíocre, sem projecto nem responsabilidade perante os enormes atrasos e insuficiências que haveria a superar. Política que se traduz na adopção de uma interpretação mínima do papel do Estado na promoção de políticas culturais; na utilização dos recursos, meios e equipamentos do Estado em benefício de interesses privados e clientelas elitárias.

4. É necessário romper com esta política

É necessário romper com esta política. E quanto mais cedo, melhor. O PCP reafirma: a política cultural, que é necessária e urgente, não é separável de uma verdadeira política de ruptura com políticas e concepções de direita, terá que ter a democratização cultural como eixo central, e deverá ser definida e levada a cabo com a indispensável participação dos trabalhadores da cultura. A democratização no acesso à fruição e a democratização no acesso à criação exigem uma decidida e clara prioridade orçamental e política, e uma responsabilização determinante do Estado. Exigem uma política de profissionalização e, em simultâneo, um largo apelo a uma participação militante na aventura cultural.

4.1. Seis orientações para a democracia cultural.

Tendo em conta o longo e sustentado património de estudo e reflexão, de experiência e proposta que é o nosso, considerando necessário prosseguir e ampliar o debate com aqueles que connosco querem debater, o PCP propõe as seguintes grandes linhas de orientação para uma democracia cultural:

1º - O acesso generalizado das populações à fruição dos bens e das actividades culturais é o objectivo básico fundamental de qualquer política de democratização cultural. Se ao Estado cabe um papel insubstituível, este objectivo é e deve ser uma preocupação crescente e cada vez mais qualificada do movimento associativo e popular, do movimento sindical e das Autarquias. Enquanto estruturas e orgãos de representação popular, mais próximas dos trabalhadores e das populações, elas têm um papel insubstituível na iniciativa cultural própria e na entreajuda às iniciativas culturais, na reivindicação e no protesto em face das omissões do poder central. Tendo em conta a sua especificidade própria poderão desempenhar um papel na recepção, intermediação e produção populares da cultura. Poderão por exemplo ter um papel na construção de uma rede popular de ensino artístico e de formação de públicos.

2º - O apoio das diversas estruturas do Poder Central ao desenvolvimento da criação, produção e difusão culturais, com a rejeição da sua subordinação a critérios mercantilistas e no respeito pela controvérsia e pela pluralidade das opções estéticas. O poder central mantém um papel insubstituível na protecção activa dos direitos culturais à fruição e à criação culturais. Tendo em conta a situação a que se chegou, a falta de continuidade histórica das instituições e estruturas culturais em geral, torna-se imperioso criar uma estrutura governativa que promova de forma sustentada os necessários enlaces do Ministério da Cultura com os ministérios que lidem com outras esferas da cultura, designadamente, a educação e o ensino, a ciência e a investigação científica, a formação profissional, o serviço público de comuicação social. Uma tal estrutura não  deve substituir-se aos trabalhadores culturais, nem, como tem sucedido, gerar clientelas dependentes, mas apenas concentrar esforços, coordenar planos, avaliar resultados e eliminar desperdícios provenientes da actual descoordenação.

3º - A valorização da função social dos criadores e dos trabalhadores da área cultural e das suas estruturas e a melhoria constante da sua formação e condições de trabalho. A situação dos Jovens Criadores é merecedora de atenções especiais, de modo a combater o que actualmente são ameaças que condicionam a qualidade e a independência do seu trabalho. Sem pôr em causa a flexibilidade das estruturas em que se agrupam, devem eliminar-se os riscos de uma precarização das relações de trabalho que os torne dependentes das entidades que os apoiam. A formação deve procurar acompanhar o aparecimento de novas artes ou práticas artísticas nos territórios de fronteira entre as artes já consagradas, ou devidos justamente a interações entre elas. No reconhecimemnto do seu papel insubstituível e do direito constitucional de todos os trabalhadores, também os trabalhadores da cultura e as suas organizações representativas devem participar na definição das políticas que lhes digam respeito.

4º - A defesa, o estudo e a divulgação do património cultural nacional, regional e local, erudito e popular, tradicional ou actual, como forma de salvaguarda da identidade e da independência nacional. É necessário reconhecer que somos fiéis depositários de um legado destinado a outros que virão depois, legado perante o qual temos uma fidelidade activa. Reconhecer que nesse legado e naquilo  que nós próprios fizermos vão em parte os traços do nosso rosto e os gestos das nossas mãos, é participarmos activamente no processo histórico da nossa identidade. A identidade nacional não é uma unidade mística, nem a independência nacional tem que ignorar a interdependência entre estados e entre povos; mas sem identidade e não independentes teríamos muito reduzidos os meios de resistência e de defesa de um projecto colectivo transformador e de progresso, num mundo de igualdade entre os indivíduos e entre os diferentes povos.

5º - O intercâmbio com os outros povos da Europa e do mundo, a abertura aos grandes valores da cultura da humanidade e a sua apropriação criadora, o combate à colonização cultural e a promoção internacional da cultura e da língua portuguesas, em estreita cooperação com os outros países que a usam.  Contra o afunilamento das nossas relações culturais, potenciando a singularidade da nossa História e o facto de a língua portuguesa ter sido adoptada como sua por várias literaturas nacionais, em outros continentes, Portugal pode e deve desempenhar um papel mais activo, rigoroso e sustentado no diálogo das culturas. Esta é aliás uma das respostas possíveis ao domínio quase exclusivo do cinema, das séries de televisão e da música anglo-saxónicas e, em especial, norte-americanas, nos respectivos mercados em Portugal. Não se trata de contestar ou de pretender elidir o contributo da cultura americana para a cultura da humanidade, mas tão só o poder hegemónico asfixiante das indústrias norte-americanas que padronizam hábitos e preferências de consumo,  exportam “clandestinamente” os valores que legitimam e naturalizam a sua própria hegemonia, enquanto proscrevem outras maneiras de produzir imagens, sons e narrativas do mundo.

6º - A democratização da cultura, entendida e praticada enquanto factor de emancipação. Este entendimento e esta prática fazem a diferença, são uma das componentes indeclináveis da diferença comunista. Social e individual, a emancipação supõe o enriquecimento das relações colectivas, o equilíbrio entre as relações de pertença, o reconhecimento da singularidade própria e da dignidade de cada um, uma consciência crescente da nossa posição na sociedade e no mundo.

Em 1978, a encerrar a 1ª Assembleia de Artes e Letras, que decorrera sob a palavra de ordem “Com a arte para transformar a vida”, Álvaro Cunhal dizia: “Os valores culturais estão presentes em todos os domínios da vida social e têm de ser defendidos em todas as frentes de actividade.

A defesa dos valores  culturais e artísticos é tarefa dos artistas mas é também tarefa comum da classe operária, dos trabalhadores, de todos os democratas.

Cultura e arte são elemento e factor de desenvolvimento social. Integram a preparação para o trabalho e para a vida. Constituem parte essencial da formação harmoniosa da personalidade. Os artistas são criadores de beleza e a beleza faz parte integrante da felicidade do homem.

Os comunistas defendem a cultura e a arte com a mesma firmeza, a mesma convicção, a mesma paixão com que defendem as liberdades, a Reforma Agrária, as nacionalizações e as outras grandes realizações e objectivos da Revolução portuguesa”.

Sobre estas palavras, assim como sobre estas linhas de orientação, o PCP reitera o seu compromisso de sempre. Não se trata apenas de propor. O PCP tudo fará, pela sua acção política e institucional, e pelo apelo e apoio à mobilização do mundo da cultura, para que seja posto fim, tão cedo quanto possível, ao rumo por que se orienta a actual política. É outro o caminho e são outras as políticas necessárias. É um Portugal democrático e com futuro que as reclama.

Comissão Nacional do PCP para a Área da Cultura