Intervenção de Sérgio Ribeiro, Economista, Seminário «O Euro e a União Económica e Monetária. Constrangimentos e Rupturas»

A criação de uma moeda única

Isolar o facto (por mais relevante historicamente que ele seja) do processo em que o facto se tem de inserir, quer no tempo, quer no espaço, é como retirar o texto do contexto, é como fazer omeletes sem ovos, estudar ovos ignorando galinhas.

A criação de uma moeda única para a integração económica no continente europeu não surgiu porque um conjunto de cabeças privilegiadas (ou de tal encarregadas) assim o resolveu, mas construiu-se em sessões várias de compromissos e consensos. Em que também houve oposição, sem capacidade para a impedir, dada a correlação de forças sociais, das classes, nos níveis nacionais então prevalecentes, tendo os Estados-membros a sua reserva de soberania.

Temporalmente, refere-se o após Tratado de Maastrich, que veio crismar como União Europeia este processo de integração regional a passar de 12 para 15 Estados-membros (e não 16 porque o povo norueguês não o quis… como agora desistiu o governo da Islândia), associação de Estados a preparar-se para, no quadro de um assalto dito de globalização, absorver países do centro e leste europeu.

Mas poder-se-ia, ainda temporalmente, recuar duas décadas e meia e referir o ensaio falhado do Plano Werner de criação de uma moeda única para os 6 Estados fundadores. De que resultou a substituição do A de aprofundamento pelo A de alargamento, com a entrada da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido (e a primeira nega do povo norueguês), parecendo então necessário configurar uma outra estratégia, ou um adiamento estratégico, face a uma explosão de “crise” no sistema capitalista, a do começo dos anos 70, num contexto de confronto real, ao nível de Estados, com o socialismo.

Espacialmente, nos anos 90, a passagem de um tempo a outro – para além da mudança de designação de Comunidades para União Europeia e da alteração de número de Estados-membros – revela a deshomogeneização do espaço em integração e a constituição de uma periferia, cumprindo-se a dinâmica prenunciada, por exemplo, no relatório Tindemans, de 75. E teria de reflectir, também, a mudança na correlação de forças inter-classes, em resultado do desaparecimento da União Soviética e dos países socialistas europeus, aliás intérpretes de um processo de integração económica, o COMECON, de 49, anterior à CECA e à CEE e Eurátomo.

Nessa década de 90, o sistema capitalista – ou os seus próceres… – arroga-se sistema mundial (e pensamento) único e final da História, com a insistência na globalização que substituiria o confronto de sistemas, e o imperialismo em cuja fase se dizia que estava. E permanece…

O terreno parecia liberto de constrangimentos maiores e, no espaço em integração, possibilitava juntar uma periferia leste à que, a sul (mais a Irlanda), já se formatava. O que ainda mais teria exigido uma dinâmica de transferências para cumprimento do princípio, afirmado no Acto Único Europeu de 86, de coesão económica e social, que a prioridade para o mercado interno vinha secundarizando até o apagar na prática (e no léxico), assim se agudizando a assimetria da interdependência, formulação adoptada, anos antes, em Cimeira dos países não-alinhados.

Foi, entretanto, na sequência do mercado interno que se continuou a dar prioridade às vertentes económica e monetária, sobretudo a esta após a decidida ou determinada opção ideológica neo-liberal e monetarista da 2ª metade dos anos 70.

Dessa opção, com efeitos relevantes relativamente à alternativa de coexistência pacífica, derivou uma Conferência Inter-Governamental dedicada à criação da União Económica e Monetária, a par de uma outra para os passos seguintes, necessários a uma União Política.

Assim, com a criação da UEM, o capitalismo procurava superar, no âmbito da integração europeia, uma crise larvar que vinha desde a declaração unilateral da inconvertibilidade do dólar (Nixon, 15.08.71), e para que a unidade de contaécu fora remedeio e não remédio.

Se passo em frente num descaminho, não se poderia esperar que o euro, tal como criado e enquanto instrumento, superasse a crise larvar. Não só o euro. Também o Banco Central Europeu, enquanto instituição criada com seus objectivos e competências, e à margem de qualquer resquício de democraticidade. Tratava-se de mecanismos, instrumento e instituição, impostos com pendor federal, sem controlo das soberanias nacionais ou de outras instituições comunitárias com vínculos (ainda que indirectos) aos povos dos Estados-membros. Mas, evidentemente, com controlo directo e submissão ao capital financeiro transnacional…

Esta foi a leitura feita na busca permanente de coerência com uma leitura da História. Com ela teria de ser coerente quer a participação no processo de criação da UEM – muito monetária e pouco ou nada económica –, quer a sua votação, ainda que aparentemente mero ritual homologatório. Essa leitura teria de se inserir no tempo em História, que transcende o tempo do facto ou dos factos.

A criação da moeda única e do BCE é um momento numa fase de sistema que procura, pela via da especulação, sobreviver ao contrariar o que resulta da sua própria dinâmica, com leis tendenciais que impedem a acumulação de capital material como fruto – e único alimento real – de uma relação social que o define como sistema.

Teve o maior significado, como frente de luta, a participação no processo de criação e nos acto formais de adopção. Se, na existente correlação de forças, se entendia a UEM como uma imposição de classe como via de precária superação da crise larvar, embora agravando contradições intrínsecas, quer a participação, quer a votação só podiam ser, também, uma resposta de classe.

O voto do PCP no Parlamento Europeu foi a expressão de uma posição sobre o modo como o projecto foi conduzido e os interesses que servia. Como está na declaração de voto de 2 de Maio de 98, não foi um voto contra a estabilidade de preços, o equilíbrio orçamental, o controlo da dívida; foi, sim, um voto contra a futura utilização de instrumentos e instituições para impor estratégias que prosseguiriam e agravariam a concentração de riqueza, aumentariam e tornariam estrutural o desemprego, agudizariam assimetrias e desigualdades, criariam maior e nova pobreza e exclusão sociais, diminuiriam as soberanias nacionais e acresceriam défices democráticos. Agravariam as condições que tornam evidente a crise larvar e provocam explosões periódicas.

Foi sublinhado, também, que se tratou de um voto que prevenia o decorrente privilégio de zonas geográfico-monetárias e a partilha de influência entre grandes famílias partidárias, numa evidente polarização do poder que viria a condicionar todas as políticas dos Estados-enquanto Estados-membros.
Foi essa, então, a posição dos deputados do PCP no Parlamento Europeu, em representação dos interesses nacionais. Nesse voto contra, foram acompanhados por 10 membros do grupo que integravam e mais 52 outros, com mais 24 abstenções (das quais, 6 do grupo).

Hoje, passada década e meia, muitos mais se juntariam a esse NÃO à moeda única, entre eles alguns que festejaram euforicamente o que chamaram (cito) “acontecimento singular”, orgulhosamente colocando Portugal “na primeira fila dos países fundadores” (do euro), só agora descobrindo – e denunciando escandalizados… – o que etiquetaram e anatematizaram como presságios de mau augúrio, que a realidade veio, afinal, confirmar. Com todos os gravíssimos danos sociais, humanitários, que se confrontam.

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