Projecto de Resolução N.º 1256 /XII/4.ª

Programa nacional de valorização e alargamento da rede pública do ensino artístico especializado

Programa nacional de valorização e alargamento da rede pública do ensino artístico especializado

A Constituição da República Portuguesa (CRP) consagra como dever do Estado “garantir a todos os cidadãos, segundo as suas capacidades, o acesso aos graus mais elevados do ensino, da investigação científica e da criação artística” (artigo 74.º).

Com efeito, a Revolução de Abril abriu lugar à criação de condições de desenvolvimento do potencial cultural do povo português, tendo proporcionado, nomeadamente, o florescimento de numerosas iniciativas de âmbito associativo, que viriam a contribuir para a construção de um ambiente cultural nacional de crescente envolvimento das populações nos processos de produção e fruição culturais.

Rompendo com a aridez violenta do Canto Coral, Abril abriu portas, também no plano da Educação, à criação de condições para a entrada das artes na vida das escolas, obrigando o Estado a implementar estruturas mínimas de resposta a esta dimensão essencial da democracia – a dimensão cultural. Refira-se, a este propósito, o contributo dado pela gestão escolar democrática à expansão de iniciativas culturais em ambiente educativo, quer na mobilização de professores e alunos, quer no acolhimento de criadores – músicos, atores, escritores, artistas plásticos, etc. – no espaço e vivência escolares, numa intenção educativa hoje quase completamente extinta às mãos da burocratização da Escola e da ditadura das “lideranças fortes”.

Não obstante, a indiferença ou as dificuldades criadas por sucessivas governações, desvalorizadoras do papel da Arte na educação, a procura do ensino artístico por um número crescente de cidadãos “forçou” o surgimento de respostas educativas, não raro à revelia da iniciativa estatal. Esta ausência do desempenho estatal é, de resto, tristemente ilustrada pela presença de apenas uma dezena de escolas públicas numa rede de ensino artístico especializado de cerca de uma centena de estabelecimentos de ensino.

A imposição e aprofundamento de políticas de desinvestimento público de apoio à fruição e criação culturais, levadas a cabo por sucessivos governos PS, PSD e CDS, têm contribuído para a desfiguração e descredibilização da Escola Pública, de elitização do acesso ao conhecimento e à cultura. Neste quadro, o Ensino Artístico Especializado vem sendo sujeito ao mesmo conjunto de constrangimentos que o Ensino dito regular.

A política de recusa de investimento público no Ensino Artístico Especializado traduz-se: na degradação do património de saberes acumulado ao longo de gerações; na incapacidade de intervenção local e regional das escolas; na limitação e degradação da qualidade do ensino pela via da ausência de formação contínua dos profissionais envolvidos; no desperdício do numeroso contingente de quadros detentores de formação artística de nível superior; no empobrecimento da vivência e exigência culturais das populações. Só a constituição de uma rede pública de escolas do Ensino Artístico Especializado que cubra a totalidade do território nacional poderá constituir-se elemento efetivo do desenvolvimento das capacidades artísticas da nossa população escolar, impulsionando a ampliação da formação precoce, da diversidade de oferta e do consequente encaminhamento e acompanhamento dos jovens nos planos da formação profissional e da formação académica.

Conforme à época foi assinalado pelo PCP, a implementação de um plano de “refundação” do Ensino Artístico Especializado, concebido pelo anterior Governo PS, poderia e deveria ter consolidado práticas educativas que vinham contribuindo de forma decisiva para a formação da geração de artistas que hoje povoam a vida cultural do país. Diferentemente do que se impunha, as medidas tomadas no quadro da “refundação” negligenciaram intencionalmente o alargamento da rede pública do ensino artístico especializado, estreitaram as opções de frequência até então disponíveis – no quadro de uma artificial oposição entre as modalidades de frequência supletiva e articulada/integrada – e, finalmente, criaram condições, no plano legislativo, para o financiamento deste tipo de ensino por mecanismos que não os do Orçamento do Estado.

Ainda a propósito da diferenciação de regimes de frequência, importa sublinhar que a supressão gradual do regime supletivo impede, na prática, a frequência do ensino artístico especializado por crianças e jovens que habitem e estudem em escolas de ensino regular fora da área geográfica de influência direta das escolas artísticas, naquilo que constitui uma efetiva violação do princípio da igualdade de oportunidades no acesso à educação. A solução para um tal constrangimento residirá na oferta, em correspondência às necessidades específicas dos alunos, dos diversos regimes de frequência, sustentada indiferenciadamente por financiamento público.

Trata-se, afinal, de optar pela inversão de processos de erosão da qualidade e diversidade da educação especializada, de fomentar a estimulação do potencial criativo dos cidadãos, de fortalecer a sua relação com a Arte e a Cultura. Trata-se de recusar o encerramento de escolas às mãos do subfinanciamento, de impedir o encerramento de projetos de vida de um número crescente de jovens; de inverter o rumo da desvalorização socio laboral ou do despedimento puro e simples de um número considerável de profissionais; de apostar, também na esfera artística, no desenvolvimento cultural do país.

A reduzida expressão territorial da oferta educativa pública condiciona objetivamente, como já foi referido, o desenvolvimento artístico das populações escolares, em particular, e em geral as comunidades que, invariavelmente, beneficiam da implantação no seu seio de estruturas de ensino artístico. Com efeito, a existência no território nacional continental de apenas sete escolas públicas de ensino artístico especializado de Música e/ou de Dança – Instituto Gregoriano de Lisboa, Escola de Música do Conservatório Nacional, Conservatório de Música de Coimbra, Conservatório de Música do Porto, Conservatório de Música Calouste Gulbenkian de Braga, Conservatório de Música de Aveiro de Calouste Gulbenkian e Escola de Dança do Conservatório Nacional – a que se somam a Escola Artística António Arroio e Escola Artística Soares dos Reis, todas distribuídas pelo Litoral e acima do Tejo, constitui um obstáculo à concretização de uma política de democratização do ensino das artes.

Paralelamente às questões aqui levantadas, referentes às realidades do ensino artístico especializado, urge exigir do Estado o cumprimento das tarefas da educação artística de âmbito generalista, legalmente consagradas, e na prática (deficientemente) enquadrada nas chamadas atividades de enriquecimento curricular (AEC). Efetivamente, um dos principais problemas com que o país se confronta é o da quase inexistência da educação artística nas escolas – e, quando existente, pedagogicamente desvalorizada – numa prática continuada de desempenho acessório – sem estratégia, sem objetivo, sem recursos.

Importa, a este propósito, evidenciar o inscrito na Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE), que prevê uma formação obrigatória e generalizada (massificada) acessível a todos os alunos do ensino básico, inclusive nos domínios da música, da dança e das artes plásticas. Até hoje, porém, nenhum Governo cumpriu esse desígnio legalmente consagrado. Nenhum Governo dotou as escolas do ensino básico dos professores coadjuvantes capazes de permitir o acesso precoce à educação artística, válida por si só, mas – não menos importante – fator de encaminhamento para a frequência do ensino artístico especializado. E se o desrespeito pela Lei é evidente no que se refere à educação a nível do 1º ciclo EB, não é menos grave o que se verifica no que concerne à (falta de) oferta formativa artística, generalista e/ou especializada, nos 2.º e 3.º ciclo EB e ensino secundário.

No lugar de optar por uma oferta educativa programada e universal, a opção governativa tem sido a de gerar uma oferta facultativa, através das AEC, mobilizando professores/animadores particularmente desvalorizados – em estatuto profissional e em responsabilização educativa. Uma tal prática tem vindo a revelar-se desadequada relativamente àquilo que deveria ser o esforço de formação artística, genérica e especializada, das populações escolares.

Refere a Declaração Universal dos Direitos do Homem, no seu artigo 27º, que “toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam”. Do mesmo modo, o PCP considera essencial que, em determinada altura das suas vidas, os cidadãos possam ter contato com o vocabulário e as ferramentas da criação artística, elemento relevante e determinante da formação integral do indivíduo tal como a definia Bento de Jesus Caraça, traduzida na concretização do direito à criação e fruição culturais e artísticas, tal como o determinado na Constituição da República Portuguesa.

O PCP considera fundamental a adoção de medidas destinadas a ultrapassar a realidade atual de abandono e/ou degradação da educação artística e do ensino artístico especializado em Portugal: introdução da educação artística no ensino pré-escolar; lecionação de componentes artísticas curriculares obrigatórias no 1.º ciclo do ensino básico com recurso a professores coadjuvantes; reforço do investimento público na atual rede de ensino artístico especializado; alargamento da rede pública do ensino artístico especializado a, pelo menos e a curto prazo, uma escola por capital de distrito; valorização do trabalho e da carreira dos professores do ensino artístico, reforçando a sua integração na carreira docente; capacitação das escolas de ensino especializado para uma articulação efetiva e permanente com os estabelecimentos de ensino regular.

Assim, nos termos legais e regimentais previstos, os deputados abaixo assinados do Grupo Parlamentar do PCP apresentam o seguinte:

Projeto de Resolução

A Assembleia da República resolve, nos termos da alínea b) do art.º 156.º da Constituição da República Portuguesa, recomendar ao Governo que:

1- Assegure de imediato o pagamento de todas as transferências em dívida às academias e conservatórios de música e dança particulares e cooperativos/associativos, referentes a contratos de cooperação e verbas do POPH.

2- Crie um programa nacional de valorização e alargamento da rede pública do ensino artístico especializado, cobrindo todo o território nacional;

3- Tendo por base um calendário de execução, assegure o investimento público destinado à dotação dos necessários meios materiais e humanos adequados à concretização da referida rede;

4- Introduza componentes artísticas curriculares obrigatórias no 1.º ciclo do ensino básico, através da monodocência coadjuvada;

5- Valorize o trabalho e a carreira dos professores do ensino artístico, através do reforço da sua integração nos quadros das escolas;

6- Capacite as escolas de ensino especializado para uma articulação efetiva e sustentada com os estabelecimentos de ensino regular;

7- Assegure o direito à frequência dos vários regimes de frequência, modalidades e tipologias de ensino;

8- Valorize a prova de aptidão artística, tendo em conta a especificidade deste tipo de ensino;

9- Assegure igualdade de tratamento, para efeitos de acesso ao ensino superior, entre os alunos do ensino artístico especializado e os alunos do ramo cientifico-humanístico;

10- Promova a criação de um grupo de trabalho, com representação democrática alargada, no sentido da promoção de soluções de acesso ao ensino superior baseadas na gradual extinção da avaliação sumativa externa e na valorização da avaliação contínua do processo de formação.

Assembleia da República, em 6 de fevereiro de 2015

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