Saara Ocidental - A luta de um povo que não desarma

Entrevista a Adda Brahim,Representante da Frente POLISARIO em Portugal
Avante Edição N.º 1800, 29-05-2008

Em Portugal há cerca de três meses, Adda Brahim é o representante no nosso país da Frente POLISARIO. Em entrevista ao Avante! o dirigente da organização que luta pela autodeterminação do Saara Ocidental falou-nos da situação no território, do curso das negociações com Marrocos, dos interesses capitalistas e do futuro do povo que, acredita, vai alcançar a independência e construir uma pátria moderna, democrática e livre.
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Avante!: Nos últimos meses decorreram encontros entre a Frente POLISARIO e o governo de Marrocos em Manhasset, Nova Iorque, mediados pelas Nações Unidas. Qual é a situação resultante desse processo?

Adda Brahim: Há uma resolução do Conselho de Segurança da ONU que apela à intensificação das negociações entre a POLISARIO e Marrocos. Estamos de acordo com a resolução e continuamos dispostos a manter o diálogo centrado no direito do povo saaráui à autodeterminação. A última palavra sobre a independência tem de pertencer ao povo saaráui, o que importa é que seja o povo a decidir o futuro do seu país.
Se o conteúdo das negociações respeita este direito, nós prosseguimos; se, pelo contrário, pretenderem entrar por outro caminho, então não estamos dispostos a prolongar encontros que não respeitam as resoluções do CS das Nações Unidas e a vontade do povo saaráui.

E qual tem sido a postura de Marrocos nas negociações?

Depois da resolução do CS das Nações Unidas [de Outubro de 2007] já decorreram quatro rondas negociais. Desde então, Marrocos, com o apoio dos seus amigos, apresentou uma solução que consiste na incorporação do Saara Ocidental como região autónoma de Marrocos. Nós discordamos e colocámos em cima da mesa outra proposta: a da realização de um referendo.
São duas posturas distintas. A POLISARIO pretende que o povo saaráui se pronuncie e, posteriormente, que se respeite a sua vontade. Marrocos insiste na autonomia, o que nós rechaçamos categoricamente.
Quem tem que ter a última palavra em todo este processo de opção entre independência ou autonomia, insisto, são os saaráuis. Se as Nações Unidas pretendem apresentar ambas as propostas a uma consulta, nós não colocamos obstáculos. Pois que deixem o povo pronunciar-se.
O conflito no Saara Ocidental é o que mais resoluções das Nações Unidas motivou, por isso entendemos que, ao exigirmos uma consulta popular, estamos de acordo com as deliberações do CS da ONU. Até há dez anos, a cada seis meses o Conselho aprovava uma resolução sobre o Saara Ocidental. Todas elas reconhecem o direito à autodeterminação.
Ontem [20 de Maio], comemorámos o 35.º aniversário da fundação da Frente POLISARIO. O presidente declarou que estamos preparados para qualquer solução, qualquer negociação que respeite o direito do povo saaráui à autodeterminação, mas também vincou que qualquer manobra no sentido contrário não contará com a participação da POLISARIO.

O caminho é a luta

Se a POLISARIO está disposta a vincular-se a qualquer processo que respeite o direito do povo saaráui, e se Marrocos e as Nações Unidas, ao invés, não continuarem as negociações nesse âmbito, o que é que tencionam fazer?

Desde 1991 que estamos envolvidos no processo patrocinado pelas Nações Unidas. Em Dezembro do ano passado, realizámos o 11.º Congresso da Frente POLISARIO e os militantes foram claros ao dizerem Basta!. Com isto mandataram a direcção da POLISARIO para, através das negociações em curso, alcançar uma solução definitiva para o conflito.
Se tal não for conseguido, os saaráuis não vão ficar de braços cruzados, não vão ficar para sempre no exílio ou dispersos por territórios ocupados e libertados, não vão esperar que a solução chegue por si. Alguma iniciativa vão tomar para impor o seu direito e conquistar a independência do país. Neste contexto, não se pode descartar nenhuma linha de acção.

Isso quer dizer que a POLISARIO encara a possibilidade de pôr fim ao cessar-fogo e regressar à luta armada?

Como disse, nenhuma forma de luta foi descartada porque o povo saaráui está a lutar pela autodeterminação.
Desde o início da ocupação marroquina, a 31 de Outubro de 1975, até 1990, houve uma guerra. Depois da intervenção da ONU acordou-se um cessar-fogo com a promessa de que se realizaria um referendo sobre o estatuto político do território. Dezassete anos depois continuamos à espera.
A verdade é que a ONU mentiu ao povo saaráui. Mentiu e os interesses no CS minam a credibilidade da organização, por exemplo, quando aprova resoluções a favor de um referendo e depois permite que a França trave a sua aplicação.
Neste contexto, o povo saaráui debateu com profundidade e empenho a questão no Congresso da POLISARIO. Da discussão da situação concreta emergiu a tendência maioritária de romper com o processo negocial. Só no último momento de um duro debate foi dada à direcção da POLISARIO alguma latitude para prolongar o diálogo mediado pela ONU.
O tempo parece ter esgotado essa solução e assim o presidente Abdelaziz reiterou que a Frente não vai participar em mais nenhuma ronda que não respeite quer o Direito Internacional quer o direito do povo saaráui à autodeterminação. É o início da aplicação das resoluções do Congresso realizado no final do ano passado.
Eu interpreto estas declarações em resposta à posição pública do responsável das Nações Unidas, Peter Van Walsum, o qual disse claramente que a independência do Saara Ocidental era impossível. Ora a POLISARIO entende que, com esta declaração, o mediador principal deixou de ser neutro, já não reúne condições para intermediar o diálogo na medida em que se alinha do lado de uma das partes, do lado de Marrocos.

Um projecto de liberdade e soberania

Qual é a relação dos saaráuis com a população marroquina nos territórios ocupados?

Marrocos é uma feroz ditadura e na Europa nunca ninguém refere esse facto. Na Constituição marroquina há três coisas sobre as quais o povo está proibido de falar: do rei, da religião e do Saara Ocidental. Não podem discordar.
Abraham Serfaty, dirigente marxista-leninista de um partido muito forte nos anos 70 em Marrocos, ousou defender a causa saaráui e por isso cumpriu 17 anos de prisão e, posteriormente, foi exilado em França. Actualmente só o antigo Partido Comunista de Marrocos tem relações connosco.
Claro, se falas com qualquer marroquino na rua, num café, mesmo com algumas personalidades próximas do poder, apercebes-te que consideram a ocupação do Saara Ocidental uma barbaridade. A maioria dos marroquinos nos territórios ocupados estão contra o governo. Mesmo os que dependem alimentarmente do exército, comunidades inteiras que vivem em guetos fortemente militarizados, mesmo esse povo, apesar do governo os acicatar para o conflito contra os saaráuis, recusa-se a tomar parte e pura e simplesmente não intervêm nas batalhas diárias entre a polícia e os manifestantes saaráuis.

Qual é o projecto social e político que a POLISARIO defende para um Saara Ocidental independente?

Temos um projecto de Constituição, aprovado no último Congresso, que define um pouco o que pretendemos. Um Estado democrático, isto é, uma democracia verdadeira cujos pilares fundamentais são os direitos sociais do povo, a liberdade de expressão, associação e movimentos, a liberdade de imprensa, o multipartidarismo.
Cremos também que para começar a construir um país do zero, do nada, um povo que nunca teve um Estado próprio, desde 1540 quando o primeiro português chegou ao Saara, em termos económicos, temos que atrair investimento.
Estamos preparados, e nos territórios libertados há formas de administração e participação, como câmaras municipais ou governos regionais, que instruíram o povo e a POLISARIO. Temos ainda experiência nas áreas da saúde, da educação, da assistência social, da construção da igualdade entre géneros, e por isso temos uma geração preparada para o futuro num país moderno, democrático e livre.

Exploração capitalista
trava autodeterminação

Referiste a posição da França quanto à autodeterminação do Saara Ocidental. E o Estado espanhol, a antiga potência colonizadora, qual é a posição?

Enquanto antigo país colonizador, Espanha tem particulares responsabilidades sobre a situação no Saara Ocidental. As Nações Unidas são claras quando dizem que os ex-ocupantes são responsáveis pelo processo de descolonização, o que no caso de Espanha não aconteceu. Depois, importa frisar que historicamente Espanha tem sustentado, com contradições e recuos vários, a posição do governo marroquino. Actualmente verificamos que a posição do governo de Zapatero é ambígua sobre esta matéria. Não se entende o que dizem e muitas vezes alinham com Marrocos.
Percebemos que têm interesses comerciais e de relações externas com Marrocos, isso não é um problema, não nos diz respeito. Muitos países que reconhecem a República Árabe Saaráui Democrática (RASD) e a POLISARIO têm relações com Marrocos. Agora Espanha não pode continuar a trair o povo saaráui.

Que interesses económicos são esses da Espanha e da França?

São os mesmos que levaram Marrocos a invadir o Saara em 1975: os nossos recursos naturais.
A situação é igual em qualquer parte do mundo. Fala-se muito de Direito Internacional, de Democracia, de Direitos Humanos. Falam, mas onde param o Direito Internacional e os Direitos Humanos para um povo que foi invadido?
Espanha deveria fazer o mesmo que fez Portugal a respeito de Timor: defender a sua antiga colónia, mas o que verificamos é que adoptam um discurso sobre o Saara Ocidental na oposição para captar o voto dos espanhóis, e mudam de discurso quando chegam ao poder. Espanha, isto é, os governos de Espanha, porque nós sabemos que os povos de Espanha estão ao lado do povo saaráui, de outra forma não seria possível que a POLISARIO e a RASD tivessem tamanha implantação em todas as regiões; que todos os anos cerca de dez mil crianças saaráuis fossem acolhidas por famílias espanholas; que diversas câmaras municipais estejam geminadas com localidades saaráuis.

Falaste-nos dos apoios que a POLISARIO tem nos territórios espanhóis, mas o Saara Ocidental é reconhecido por muitos outros países e povos. Qual a importância desse reconhecimento e o que esperas conseguir em Portugal?

O governo da RASD tem representação em mais de 80 países do mundo e é membro fundador da União Africana. De maneira nenhuma estamos isolados e jamais esqueceremos o apoio internacionalista ao povo saaráui, logo porque centenas de milhares de pessoas que vivem em acampamentos dependem desse mesmo apoio.
Quanto a Portugal, entendemos que tem um importante papel a desempenhar. Em primeiro lugar pela sua posição geopolítica, depois porque imaginamos que Lisboa não se vai deixar ficar para trás face a Madrid ou Paris no que ao estreitamento de relações com o Magreb diz respeito.
Portugal tem relações com a Argélia, Mauritânia, Líbia, entre outros países do Norte de África, e porque faz parte da UE tem que ter peso na definição do relacionamento com Marrocos e sobre a questão do Saara Ocidental.
Por outro lado, confiamos nos partidos e movimentos políticos e sociais de esquerda portugueses e sabemos que mantêm acesa a causa saaráui. Sabemos, ainda, que no parlamento podem confrontar o governo quanto à política externa nesta matéria.

Resposta firme à repressão

Milhares de saaráuis vivem em acampamentos. Relatos recentes confirmavam que as condições de vida dos refugiados estão a deteriorar-se. Qual é a situação neste momento?

No início do mês, o Crescente Vermelho saaráui lançou um apelo internacional para que se tomem medidas urgentes quanto à situação alimentar que vivem os refugiados. Alguns países responderam, mas a raiz do problema mantém-se.
Apesar da gratidão que temos para com quem nos ajuda, apesar de estarmos conscientes de que sem esse auxílio não sobreviveríamos, temos que sublinhar que solução não está nos donativos, na caridade de emergência. A resolução das carências do povo saaráui só virá com um desenlace definitivo para o conflito político com Marrocos, com a conquista de um Estado independente e soberano.
O povo saaráui não pode ficar eternamente agarrado à emergência humanitária, e assim apelamos também ao apoio político, à solidariedade para com o nosso projecto.

As movimentações de massas nos territórios ocupados têm sido muito fortes nos últimos meses. A repressão tem aumentado em consequência dos protestos?

Hoje [21 de Maio] celebramos o terceiro aniversário da Intifada nos territórios ocupados. Esta forma de luta resulta de uma grande vitória do povo saaráui, que foi conseguir anular na prática a política de absorção do governo de Marrocos.
A revolta no interior dos territórios ocupados sempre foi forte ao longo dos últimos 30 anos, mas a partir do início da Intifada, em 2006, que o Estado marroquino apertou a repressão, a tortura, a detenção e a perseguição dos independentistas.
Porque é que não querem que a imprensa internacional, a Comissão dos Direitos Humanos da ONU, as delegações de parlamentares de vários países visitem os territórios ocupados? Porque não os deixam falar livremente com os saaráuis?

E na capital ocupada, El Aiun, mantém-se a greve de fome dos prisioneiros políticos?

Sim, mantém, e nós estamos a tentar que a MINURSO (Missão das Nações Unidas para a aplicação do Referendo no Saara Ocidental) intervenha e visite não só o «cárcere negro» de El Aiun, mas também outros semelhantes no Norte de Marrocos. A ONU não pode continuar sem fazer nada face às denúncias de torturas, de violações permanentes, de maus-tratos, tem de proteger os saaráuis.
Recentemente, quatro activistas dos direitos humanos franceses foram expulsos de El Aiun; um grupo de advogados espanhóis protestou com relatórios e provas sobre situações concretas vividas por saaráuis nos territórios ocupados. Era importante que em Portugal alguns advogados pudessem colaborar connosco. Vamos ver se é possível.

Um direito legítimo

Com a mistificação em torno da «luta contra o terrorismo» e das «organizações terroristas» a POLISARIO não teme que regressando à luta armada venha a ser apelidada de «terrorista»?

Quem é que se pode arrogar a dizer quem é e quem não é terrorista? São terroristas os que ameaçam o domínio e a exploração das empresas francesas em Marrocos? Se os saaráuis lutarem pelo direito legítimo à sua pátria, à independência do seu país e contra a ocupação marroquina passam a ser considerados terroristas? Estamos a lutar por direitos fundamentais de qualquer ser humano e a POLISARIO é há décadas a organização política que conduz essa batalha.
Durante todo este tempo os serviços secretos franceses e marroquinos nunca conseguiram manchar a nossa luta com acusações de «terrorismo». Nunca! E não foi por não tentarem. Campanhas nos jornais, como uma ainda fresca que afirmava que tínhamos reféns, incluindo portugueses, falharam e falharão sempre porque são mentirosas.
Agora, eu reafirmo que nós nunca vamos deixar de lutar pelo direito do povo saaráui à sua independência, chamem-nos os nomes que entenderem.

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