Senhor Presidente
Senhores Deputados
Na vida das organizações e das instituições, tal como na de cada um de nós,
exige-se um comportamento ético, de seriedade e de respeito por princípios e
valores.
E essas exigências acrescem no exercício da actividade política, no exercício
de uma actividade que é suposto ser desenvolvida em nome e ao serviço dos nossos
concidadãos, que por isso e para isso nos elegeram.
É tudo isto que está ausente na reviravolta incompreensível, na indesculpável
cambalhota política do Partido Socialista quanto à questão da discriminalização
da interrupção voluntária da gravidez.
É indiferente que a responsabilidade desta condenável alteração do posicionamento
do PS seja atribuível ao seu Secretário-Geral e Primeiro-Ministro, à direcção
da sua bancada parlamentar ou aos "jovens turcos" do Governo.
A responsabilidade deste indigno comportamento é do Partido Socialista!
Não dos seus militantes anónimos. Mas de todos aqueles que em seu nome exercem
funções políticas, e que por acção ou omissão decidiram ou aceitam tal comportamento.
Temos para nós que em política nem tudo é negociável, que em política os fins
não justificam todos os meios. Mas, pelos vistos, há quem se empenhe em querer
demonstrar o contrário.
E esta não é, definitivamente, uma questão menor na grande diferença que existe
entre o PCP e outros partidos, no caso o PS mas também o PSD, na forma de encarar
e exercer a actividade política.
Houve quem tenha querido acusar-nos de ingenuidade ou de resignação por não
termos exigido ao PS a garantia de aprovação na generalidade do nosso projecto
de lei sobre a interrupção voluntária da gravidez, como moeda de troca para
garantirmos a aprovação do projecto do PS. Incapazes de compreenderem que o
PCP se possa reger, acima de tudo, por valores e por um profundo respeito pela
dignidade das mulheres portuguesas.
Em flagrante contraste com a atitude assumida por PS e PSD, que jogam e negoceiam
com um dos maiores dramas que afectam a mulher: o drama de terem de realizar
o aborto clandestinamente, como criminosas que têm de se furtar à justiça e,
na maioria dos casos, sem quaisquer garantias de higiene e segurança.
É ética e politicamente condenável que o PSD e o seu presidente façam a proposta
de negociata que fizeram, não por razões filosóficas ou religiosas, mas por
mesquinhos cálculos politiqueiros e de pretensa afirmação partidária.
E é revoltante que o PS lhe acene com a sua concordância de imediato, tão de
imediato que legitima a ideia de algo premeditado ou pré-acordado.
O que pomos em causa e contestamos não é, naturalmente, a legitimidade de o
PS, ou o PSD, poderem optar, em consciência e por convicção, por um referendo
para decidir sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez.
O que está em causa, o que é indesculpável, são a forma e as razões porque o
PS e o PSD pretendem, ou aparentam pretender, impor esse referendo.
A verdade é que a seguir à rejeição, em Fevereiro do ano passado, dos projectos
de lei do PCP e do PS, nunca o PS ou o PSD reclamaram um referendo sobre a matéria,
isto é, nunca levantaram a hipótese de ser necessário testar essa decisão através
de uma consulta popular.
E toda a gente sabe que se a Assembleia da República tivesse novamente rejeitado
o projecto do PS, nem o PSD estaria a reclamar um referendo nem o PS estaria
a aceitá-lo, com ou sem negócios associados.
É grave o significado e detestáveis as concepções que esta duplicidade de critérios
e atitudes revela. Por detrás dela o que se esconde é a ideia de que a actual
criminalização da mulher e penalização do aborto corresponderiam a uma "ordem
natural das coisas" e a um dado de civilização. De tal forma que só para
a sua anulação é que careceria de se ouvir o povo, mas já a manutenção dessa
alegada "ordem natural" não exigiria uma consulta popular!
Recordando tudo quanto alguns deputados do PS aqui disseram no passado dia 4,
justifica-se que deixe às suas consciências a pergunta sobre se afinal, e renegando
o que então disseram, também partilham a ideia de que a criminalização e a penalização
constantes actualmente do Código Penal são a ordem natural das coisas. Ou se,
pelo contrário, são a injusta ordem jurídica da hipocrisia e da insensibilidade
social para o flagelo do aborto clandestino.
É indesculpável a autêntica farsa de que se reveste o facto de, menos de 24
horas após a aprovação do projecto de lei do PS, quando os aplausos dos deputados
socialistas ainda ecoavam no hemiciclo, o PS ter dado o dito pelo não dito.
Lançando o descrédito sobre o Grupo Parlamentar socialista, sem dúvida, mas
pondo ainda em causa as próprias decisões e a legitimidade da Assembleia da
República.
Após os inflamados discursos de deputados socialistas fundamentando abundantemente
as razões que justificam plenamente a não realização de um referendo sobre as
alterações à lei do aborto e a exigência de ser a Assembleia da República a
"eliminar uma inaceitável intromissão da lei penal no domínio da consciência
individual da mulher", o que é chocante é que o PS venha agora juntar-se
àqueles que, pretextando posições referendárias, de facto apenas querem manter
o actual estado de coisas e impedir que algo se faça para a resolução séria
do problema do aborto clandestino.
É lamentável, mas politicamente significativo, que o PS, a pretexto de um "desafio"
do PSD, corra a aliar-se à direita para congelar inevitável e indefinidamente
a solução que no dia 4 tinha sido conseguida à esquerda.
Mais do que isso. Para garantir a efectiva paralisia do processo legislativo
... e ir prometendo que se vai fazer.
O que não se sabe é quando, como ontem o deixou claro o Ministro Jorge Coelho,
admitindo aquilo que sempre se soube: que o referendo não é passível de ser
realizado no próximo mês de Junho. Cabe perguntar, aliás: por vontade do PS
e do PSD, alguma vez o será? Ou melhor. Não iremos a seguir assistir aos próximos
capítulos desta tragi-comédia, com o PS e o PSD irmanados na vontade de não
fazerem qualquer referendo sobre a IVG mas cada um tentando responsabilizar
o outro pela sua não realização?
Senhor Presidente
Senhores Deputados
Não nos restam dúvidas que a questão mais grave de todo este entendimento entre
o PS e o PSD reside na utilização da dignidade e do sofrimento da mulher como
moeda de troca num negócio politiqueiro.
Mas não podemos deixar de, igualmente, criticar vivamente a inclusão neste pacote
negocial da dignidade institucional do Tribunal Constitucional e o colocar em
causa a própria credibilidade da sua independência.
E identicamente, verberamos a intromissão, política e institucionalmente inaceitável,
que o PS e o PSD fazem no terreno dos poderes exclusivos do Presidente da República,
quando, sem pudor, negoceiam quais os referendos a realizar, as respectivas
datas e a junção ou não de mais que um referendo no mesmo dia.
E, a este respeito, não podemos deixar de manifestar a nossa estranheza e incompreensão
por, perante esta situação totalmente abusiva, o senhor Presidente da República
não se ter ainda pronunciado, delimitando de forma clara e categórica a sua
indelegável e exclusiva competência nesta matéria.
Pela parte do PCP, senhores deputados, podem estar certos que continuaremos
a orientar-nos por convicções, por princípios e por valores. Nunca alienaremos
este património de seriedade e responsabilidade na voragem de um qualquer negócio.
Disse,
|