"O Partido Comunista: da "reorganização" dos anos 40 ao 25 de Abril"
é o tema que me foi atribuído no convite para fazer esta conferência.
É um tema aliciante. Exige porém duas observações prévias.
A primeira: numa curta conferência, falar de um quarto de século de
vida de um partido que como o PCP desenvolveu ininterruptamente uma
intensa e acidentada actividade ao longo desses anos não é tarefa
fácil. Não será possível ir além de algumas anotações referentes a
aspectos selecionados. Perdoem pois as mil e uma omissões de factos e
ideias de que se esperava talvez ouvir falar.
A segunda: na história de um partido cada momento tem sempre um passado
que contribui para explicá-lo e precede um futuro que o confirma ou
desmente. Perdoem-se pois, no decurso da minha exposição, algumas
referências, embora fugidias, a actividades anteriores ou posteriores
ao período referido no tema que me foi atribuído.
1. Breve referência a anos anteriores
Desde logo não se pode falar da reorganização do PCP nos anos
1940/41 se não tivermos em conta alguns importantes momentos anteriores
da sua vida e actividade. Lembremos: a fundação em 1921, a actividade
legal até ao golpe militar de 28 de Maio de 1926, a efectiva
organização na clandestinidade a partir de 1929 com Bento Gonçalves,
secretário-geral, a luta do Partido, da classe operária e de amplos
sectores sociais nas condições da estruturação fascista do Estado nos
anos 1933 e seguintes, a influência crescente nos sindicatos até à sua
ilegalização em 1933/34, a luta ideológica contra o anarco-sindicalismo
e o reviralhismo e os sucessivos e profundos golpes da repressão que
conduziram à grande crise do Partido nos anos 1938/40 tornando
necessária a reorganização de 1940/41.
No movimento comunista, são de referir nessa época a construção
da sociedade nova na União Soviética, grandes progressos dos partidos
comunistas, a realização do VII e último Congresso da Internacional
Comunista (Agosto de 1935), a vitória das frentes populares em França e
Espanha, as revoluções em marcha no continente asiático e
sul-americano.
Na vida internacional, sobressaiem ainda, como acontecimentos
maiores, a subida de Hitler ao poder em 1933, a guerra da Itália
fascista para a conquista da Abissínia, agressões do militarismo
japonês no Extremo Oriente, o golpe fascista em Espanha seguido da
guerra civil (1936/39). Finalmente o início da 2ª Guerra Mundial.
Só tendo em conta estes antecedentes do período imediatamente
anterior ao que esta conferência respeita (desde a reorganização de
1940/41 até ao 25 de Abril) é que se pode avaliar correctamente o que
representou a reorganização do PCP nos anos 40/41, a transformação do
PCP num grande partido nacional, a sua luta ininterrupta que se seguiu
ao longo de mais de 30 anos e a contribuição do PCP para o derrubamento
do fascismo e a instauração da democracia com o 25 de Abril.
2. Significativo o momento da reorganização
É particularmente significativo que essa reorganização do PCP tenha
sido empreendida num momento em que parecia que o terror fascista ía
ganhar todo o mundo e a ditadura em Portugal, terminada a fascização do
Estado, estava no aparente apogeu do seu poder.
A guerra civil espanhola terminara com a derrota da República e
a instauração da ditadura de Franco, cujo golpe foi militarmente
apoiado pela Alemanha de Hitler e a Itália de Mussolini e contou com o
activo apoio de Salazar. Os exércitos nazis tinham varrido e ocupado a
Europa continental, chegavam aos Pirineús e avançavam até às portas de
Moscovo, de Leninegrado e de Stalinegrado. O Japão militarista
conquistava o Oriente.
O que então apregoavam os fascistas, faz lembrar o que hoje apregoam alguns: que o comunismo tinha morrido.
O governo declarava que o PCP estava definitivamente liquidado e
tanta confiança mostrava em que com a derrota da URSS na guerra o
comunismo seria uma causa definitivamente perdida que libertou em 1940
do Tarrafal e de outras prisões vários membros responsáveis do Partido.
Em tais circunstâncias, empreendendo a reorganização, creio
poder dizer-se que o PCP mostrava como os comunistas compreendem os
seus deveres para com o povo e para com o país, como não recuam ante
obstáculos e dificuldades, como não se deixam intimidar pela mais
brutal repressão e como a sua visão da história e da sociedade os não
faz perder a confiança no futuro.
3. Brevíssimo índice de mais de 30 anos de luta
É
impossível, nos poucos minutos disponíveis para o efeito, dar uma nota
cronológica, mesmo brevíssima, da actividade do PCP nos 33 anos
considerados nesta conferência. Podemos entretanto, como pontos de
referência para melhor entendimento, considerar quatro períodos:
De 1940 a 1949, nos anos da 2ª Guerra Mundial e após a derrota
hitleriana, a vitória da URSS e Aliados e a instauração de novos
regimes democráticos - a transformação do PCP num grande partido
nacional ligado às massas. Sobressaiem neste período a criação de uma
organização nacional partidária, a realização dos III e IV Congressos
do Partido (1943 e 1946), a publicação regular do "Avante!" e outra
imprensa clandestina, o impetuoso fluxo do movimento operário com
grandes greves e outras lutas de massas, a criação e organização de
amplos movimentos unitários antifascistas, a batalha da Oposição pela
primeira vez no terreno eleitoral da ditadura (1945 e 1949).
De 1950 a 1959 - o PCP nos anos da guerra fria. Sobressaiem,
neste período de refluxo revolucionário, a realização do V Congresso
sob o impacto do desvendar do culto da personalidade de Staline no XX
Congresso do PCUS, grandes lutas de massas e novas lutas no terreno
eleitoral fascista, com relevo para a campanha do General Humberto
Delgado nas eleições presidenciais de 1958.
De 1960 a 1967 - a luta revolucionária na situação de crise
geral da ditadura fascista. Sobressaiem neste período o novo fluxo
revolucionário de 1961/62, o ascenso geral da luta popular, a luta
contra a guerra colonial e a realização do VI Congresso que aprovou o
Programa do PCP para a revolução antifascista como revolução
democrática e nacional e traçou a orientação para o levantamento
nacional armado.
De 1968 a 1974 - a luta no período de agonia da ditadura.
Sobressaiem neste período o desenvolvimento geral da luta democrática
em todas as frentes (luta operária, luta sindical, luta dos estudantes,
luta contra a guerra colonial, lutas nas forças armadas) aproximando-se
a crise revolucionária que conduziu ao 25 de Abril, ao derrubamento da
ditadura, à revolução democrática e à instauração da democracia
portuguesa.
Este brevíssimo enunciado não pretende constituir a arrumação
do que poderia considerar-se etapas da situação nacional e da
actividade do PCP, mas apenas uma indicação geral que melhor facilite a
compreensão do que a seguir será dito acerca da natureza, dos
objectivos e do Programa do PCP, das suas formas de intervenção e de
luta, da sua contribuição para a derrota da ditadura e para a conquista
da liberdade e da democracia pelo povo português.
4. Porquê o PCP o único a sobreviver e a reforçar-se sob a repressão
É útil relembrar que na maior parte desses anos o PCP foi o único
partido que resistiu à repressão fascista e não só sobreviveu nas
condições de clandestinidade como se tornou um influente partido
nacional.
Os partidos existentes à data do golpe de 1926 cessaram praticamente a
sua actividade e acabaram por desaparecer completamente da cena
política. O Partido Socialista cessou a sua actividade na Conferência
Nacional que foi autorizado a realizar em 1933 e só 40 anos mais tarde
(em 1973) foi criado o Partido Socialista actual.
Neste intervalo, houve sem dúvida correntes de opinião e
personalidades destacadas assumindo posições políticas diversas ,
formaram-se grupos, realizaram-se reuniões de que sairam declarações de
intenção. Há siglas que desapareceram com a mesma rapidez como
apareceram. Em movimentos unitários participaram democratas
representando formalmente partidos como é o caso do Partido Socialista
Português e do Partido Repúblicano. Mas com excepção da União
Socialista, do Directório Democrático Social (nos anos 60), da ASP, PS
e FAP já no período de crise final do regime nenhuma outra corrente
política teve expressão organizada ao longo dos 34 anos considerados
nesta intervenção.
É por isso legítimo perguntar o que tornou possível ao PCP, ao
contrário do sucedido com outros partidos e correntes, resistir e
conduzir uma luta ininterrupta durante essas dezenas de anos.
Podem apresentar-se algumas causas fundamentais.
A primeira, a existência de objectivos de luta correspondendo a
aspirações profundas do povo português e a convicção de serem
objectivos justos e merecedores de todos os sacrifícios.
A segunda, a existência de um colectivo de homens e mulheres
firmemente decididos a travar a luta contra o fascismo nas condições de
acção clandestina e de vida clandestina e dispostos a todas as provas,
incluindo dar a vida se tal se impusesse, como em muitos casos de facto
se impôs.
A terceira, a criação de elementos logísticos clandestinos
essenciais: instalações, tipografias, imprensa clandestina, sistemas de
ligação e transportes, bem como uma direcção experimentada e capaz, uma
organização estruturada e os chamados métodos conspirativos de trabalho
capazes de assegurar a defesa da repressão fascista.
A quarta, a ligação estreita do Partido aos trabalhadores e às
massas e (através da luta) a criação de uma sólida e permanente base de
apoio e fonte e reserva de quadros, de inspiração e de energias
revolucionárias.
Cabe dizer que a reorganização de 1940/41 pecou inicialmente
por partir de uma conclusão não provada segundo a qual a causa
fundamental das sucessivas prisões que atingiam a direcção do Partido
se deviam necessariamente a provocação policial instalada entre os
quadros dirigentes. Substimaram-se as insuficiências dos métodos de
defesa numa tão severa clandestinidade e o resultado foi que já depois
da reorganização novos golpes atingiram a direcção até que a partir de
1942 se realizou uma transformação radical desses métodos.
Estas características explicam que, ao contrário de numerosos
grupos políticos que se formaram neste período e tiveram curta
existência, o PCP tenha desenvolvido com permanência a sua actividade,
tenha dado uma contribuição determinante para a criação de condições
que conduziram à vitória do 25 de Abril de 1974 e tenha aparecido com o
25 de Abril com força organizada, base de apoio e capacidade de
intervenção imediatas e operativas que então faltaram a outros sectores
políticos.
5. Vida clandestina e constante preocupação democrática
Forçado a actuar numa rigorosa clandestinidade, sujeito a uma
violenta repressão, o Partido era forçado à centralização de tarefas
essenciais e a medidas de cuidadosa defesa. Mas embora com soluções
diferentes em momento diferentes, procurava-se assegurar um
funcionamento democrático compatível com tal situação.
Tal como praticamente todos os partidos comunistas do mundo,
por influência do PCUS e da Internacional Comunista, o PCP sempre
afirmou ter uma estrutura e um funcionamento fundamentados no
centralismo democrático. Mantendo-se esta expressão, os conceitos e a
prática sofreram entretanto através dos anos modificações importantes.
A defesa contra a repressão nas condições de clandestinidade a
que o PCP era obrigado, exigia compartimentação de organizações,
militantes e tarefas, secretismo de numerosos dados, forte
centralização de competências de direcção e rigorosa disciplina. Mas
apesar de erros cometidos em alguns momentos de centralismo excessivo,
foi constante a preocupação de, mesmo em tais condições, assegurar
métodos democráticos de trabalho.
Em qualquer dos Congressos realizados nessa época (III em 1943,
IV em 1946, V em 1957 e VI em 1965) a par de competências
centralizadas, de disciplina, de unidade, foram sublinhados princípios
democráticos como a eleição de todos os organismos de direcção (embora
de impossível generalização nas condições de clandestinidade) a
prestação de contas e direitos fundamentais dos membros do Partido: de
defenderem as suas opiniões, de discordarem dos organismos superiores,
de crítica, de participação na discussão ampla e democrática de toda a
actividade partidária e na elaboração das directrizes gerais do
Partido.
O IV Congresso sublinhou a necessidade e o dever de adoptar formas
democráticas "sempre que não colidam com o trabalho conspirativo". O V
Congresso procedeu a uma severa crítica ao exagero do centralismo e a
métodos autoritários de direcção e aprovou Estatutos do Partido. O VI
Congresso insistiu nos princípios democráticos e no trabalho colectivo.
Tanto concepções centralistas como outras depois caracterizadas como
"anarco-liberais" foram ultrapassadas.
Tanto a experiência nacional, como a internacional mostraram
que, com o enunciado de princípios do centralismo democrático, foi
possível instaurar de facto situações extremamente diferenciadas, com
numerosos casos de desrespeito pelos princípios relativos à democracia
interna e a acentuação dos princípios do centralismo, levando em alguns
partidos a situações de autoritarismo e mesmo despotismo de um núcleo
dirigente.
No PCP, além de um crescente respeito pelas opiniões
diferenciadas, a democracia interna ganhou novos valores e
aprofundou-se progressivamente através do conceito e da prática do
trabalho colectivo. Foi uma experiência extremamente útil o facto de
não ter havido praticamente secretário-geral do Partido durante 26
anos. Bento Gonçalves preso em 1935, morreu no Tarrafal em 1942. Depois
da sua morte, durante mais 19 anos, não houve secretário-geral. Só em
1961 foi designado novo secretário-geral, o que não alterou nem os
princípios nem a prática de direcção colectiva e do trabalho colectivo
que se tinham anteriormente adoptado nos organismos mais responsáveis e
se foram alargando no Partido, como uma das características essenciais
da democracia interna.
Não consideramos que a admissão de tendências, de campanhas e
de lutas entre dirigentes com as suas plataformas próprias, reduzindo o
resto do partido a apoiantes e votantes, seja uma afirmação de
democracia superior ao conceito e à prática do PCP que se compreende a
si próprio como um grande colectivo que determina a orientação e a
acção.
Assim, de 1940 a 1974, o PCP conseguiu por um lado, com severas
normas de funcionamento defender-se no essencial da repressão, mas
conseguiu também, com preocupações, métodos, prática e critérios
democráticos, criar um colectivo fraterno, coeso, ligado por fortes
laços de solidariedade e confiança.
Estes dois aspectos complementares contam-se entre os factores da
capacidade de resistência e de intervenção do PCP ao longo de tantos
anos de duras provas.
6. O regime fascista - ditadura do capital monopolista
A ditadura que tiranizou Portugal durante 48 anos anos liquidou as
mais elementares liberdades dos cidadãos, apesar de as inscrever no
artº 8º de um arremedo de Constituição. Censura, perseguições, prisões,
torturas (por vezes até à morte), condenações por tribunais especiais,
"medidas de segurança", cidadãos presos até mais de 20 anos, polícia
política omnipresente, legião fascista, partido fascista, organização
fascista da mocidade - em tal situação viveu o povo português quase
meio século.
Um tal regime para quê? para servir quem? um tal regime apenas para servir um homem, um ditador, e lhe fazer a vontade?
Com frequência se fala da ditadura de Salazar. De certa forma
essa designação é correcta porque Salazar exerceu de facto um poder
pessoal. Daí o interesse em conhecer não só o que fez mas também o que
pensava e dizia, além do mais porque o seu pensamento e a sua fala
também fizeram parte da sua acção.
Assim é de lembrar que Salazar proclamou um regime que nas suas
próprias palavras era declaradamente antidemocrático , defendia
abertamente a liquidação das liberdades dos cidadãos ("liberdade
possível, autoridade necessária"), enaltecia as torturas (por vezes até
à morte) infligidas pela polícia aos presos políticos com a cínica
expressão de "alguns safanões a tempo". No plano externo, considerava a
vitória de Franco e a instauração da ditadura fascista em Espanha como
vitória sua; vangloriava a expansão alemã antes da guerra gabando a
ditadura fascista hitleriana como sinónimo de "civilização"; gabava o
acordo de Munique e a contribuição que dizia ter-lhe dado o "génio
político" de Mussolini cujo retrato tinha na sua secretária, de cuja
ditadura enaltecia "as formidáveis alavancas espirituais" e da qual
dizia "aproximar-se" a sua ditadura, dele, Salazar. Ao findar a 2ª
Guerra Mundial decretou luto nacional pela morte de Hitler e considerou
que o maior erro de Hitler foi ter perdido a guerra ... Esta uma
pequena amostra.
Seria porém insuficiente e deformador da realidade histórica
caracterizar a ditadura como uma ditadura pessoal, sem considerar as
forças sociais que dominavam o país, ao serviço das quais actuava a
ditadura, a quem servia a liquidação das liberdades e a repressão
fascista.
A este respeito, a análise do PCP distinguia-se da opinião de outras forças políticas.
No nosso entender, um aspecto essencial da política da ditadura,
nomeadamente após a 2ª Guerra Mundial, foi a rápida formação de grandes
grupos monopolistas dominantes da economia nacional, o que, num país
atrasado como era Portugal, não poderia ter acontecido apenas pela
centralização e concentração de capitais decorrente da concorrência
(lei do desenvolvimento do capitalismo), mas que só foi possível pela
intervenção do Estado obrigando à concentração industrial e bancária, à
formação do capital financeiro, ao domínio pelos grupos monopolistas
dos sectores fundamentais da economia portuguesa.
Os casos dos Melos da CUF, dos Espírito Santo da banca, dos
Champalimaud dos cimentos, alargando o seu domínio aos mais variados
sectores e empresas e constituíndo grandes impérios económicos,
contam-se entre os mais significativos.
Certamente esses senhores e seus clãs, aos quais actualmente
estão de novo a serem entregues empresas de importância estratégica na
economia portuguesa, não gostarão que se citem os seus nomes. Mas se
seria inevitável falar deles se estivessemos fazendo uma conferência
sobre o presente Portugal democrático, mais se justifica que o façamos
ao falar da história da ditadura fascista na qual foram protagonistas e
senhores.
Se tivermos em conta que os grupos monopolistas estavam
intimamente associados ao capital estrangeiro e que os proprietários
dos latifúndios e os capitalistas na agricultura se entrelaçavam e
fundiam cada vez mais estreitamente com a banca e a indústria torna-se
claro o fundamento do PCP quando definiu o regime fascista como a
ditadura terrorista dos monopólios (associados ao imperialismo
estrangeiro) e dos latifundiários.
E se tivermos em conta que os grupos monopolistas portugueses
estavam também associados ao imperialismo estrangeiro na exploração e
opressão nas colónias portuguesas e que o sistema colonial não só
estava chegando mundialmenteao seu fim como era um factor de opressão
do próprio povo português, melhor se compreende que, entre os
objectivos definidos pelo PCP para a revolução antifascista, tenham
sido inscritos a liquidação do poder dos monopólios, a reforma agrária,
a libertação de Portugal do imperialismo e o direito dos povos das
colónias portuguesas à independência.
Esta foi sempre uma diferença básica entre o PCP e outros
sectores antifascistas. Estes consideravam a necessidade de instaurar
um regime democrático, mas não punham em causa a continuação do poder
económico e o efectivo domínio do país pelos grandes grupos
monopolistas e pelos latifundiários. Tal posição explica que, já numa
fase avançada da crise da ditadura e particularmente quando ela entrou
na sua agonia, tenha não só havido dificuldades e divergências no
movimento antifascista, mas que com vista a um acordo para pôr fim à
ditadura fascista tenha também havido contactos entre algumas forças da
Oposição e alguns dos mais poderosos grupos capitalistas, que sentiam
que o fascismo deixava de estar em condições de defender e garantir os
seus interesses e temiam uma explosão revolucionária.
7. O Programa do PCP para a revolução antifascista
Quando se examinam as propostas que faziam as diversas forças
políticas para o regime que deveria suceder à ditadura, não pode deixar
de ter-se em conta que desde a 2ª Guerra Mundial (1939/45) ao 25 de
Abril de 1974, quase 30 anos, se registaram radicais alterações na
situação internacional, significativas alterações na situação nacional
e uma evolução das organizações e do pensamento político da Oposição
determinando importantes mudanças programáticas.
Se em relação ao PCP, em linhas gerais e simplificadas,
quisermos definir o essencial dessas mudanças, podemos dizer que, na
medida em que o Partido aprofundou a análise da realidade portuguesa,
foi-se precisando a necessária complementaridade das vertentes
política, económica, social e cultural da revolução antifascista, da
revolução democrática, no quadro da independência e soberania
nacionais.
Manteve-se entretanto sempre, como objectivo e tarefa central,
como eixo da luta antifascista, a liquidação da ditadura fascista, a
conquista da liberdade política, a instauração de um regime
democrático.
Logo em Março de 1943 (pouco tempo portanto após a
reorganização, ainda grassava a 2ª Guerra Mundial) nos "9
pontos-Programa para a Unidade Nacional", aprovados no III Congresso
(1943) e confirmados no IV Congresso (1946) se propunha a instauração
da liberdade de palavra, de imprensa, de reunião, de associação, de
crenças e cultos religiosos, a legalização das organizações operárias e
progressistas" e a constituição de um Governo Provisório até que o povo
português escolhesse os seus governantes através de eleições em
sufrágio directo e em escrutínio secreto de uma Assembleia
Constituinte.
O IV Congresso realizado em 1946, portanto já depois do fim da
guerra, insistindo nos objectivos centrais das liberdades democráticas
lançou a consigna de um Governo de Concentração Nacional para proceder
à realização de eleições livres.
O V Congresso (1957), o Programa aprovado, a par de objectivos
de carácter social, de objectivos relativos às estruturas
socioeconómicas (nacionalização das empresas monopolistas e reforma
agrária com a expropriação dos latifúndios), e do reconhecimento do
direito dos povos das colónias portuguesas de África à imediata e
completa independência, apontou como objectivo político central a
instauração das liberdades e direitos dos cidadãos e de um regime
verdadeiramente democrático.
O VI Congresso (1965) realizado já num período de crise da
ditadura e guerra colonial, aprovou o "Programa do PCP para a revolução
democrática e nacional" definindo 8 pontos ou objectivos fundamentais
largamente desenvolvidos: 1º Destruir o Estado fascista e instaurar um
regime democrático; 2º Liquidar o poder dos monopólios e promover o
desenvolvimento económico geral; 3º Realizar a Reforma Agrária
entregando a terra a quem a trabalha; 4º Elevar o nível de vida das
classes trabalhadoras e do povo em geral; 5º Democratizar a instrução e
a cultura; 6º Libertar Portugal do imperialismo; 7º Reconhecer e
assegurar aos povos das colónias portuguesas o direito à imediata
independência; e 8º Seguir uma política de paz e amizade com todos os
povos.
O 1º objectivo foi definido como o "objectivo central" da
revolução antifascista. Apontou-se a dissolução dos órgãos e
instrumentos do poder fascista, a instauração e garantia das liberdades
sindical, de palavra, de imprensa, de associação, de reunião, de greve
e de manifestação; a liberdade de consciência, de divulgação das
crenças e da prática do culto; a igualdade de direitos para todos os
cidadãos independentemente do sexo, grau de instrução e situação
económica.
Adiantou-se como objectivo "uma organização democrática do
Estado, uma câmara legislativa única eleita em sufrágio directo,
universal e secreto para todos os cidadãos maiores de 18 anos, a
designação do Governo pelo Parlamento e a sua responsabilidade perante
este, eleições livres para todos os órgãos de administração local; a
reorganização das forças armadas, a democratização da justiça.
Este breve enunciado permite aferir da importância central que
no programa do PCP assumiu (como sempre assumiu ao longo dos 71 anos da
sua história) a democracia política.
Isto relativamente ao programa. Mas são também oportunas algumas palavras relativas à acção.
Dando alta avaliação à luta antifascista de outras tendências, é
uma verdade histórica que ao longo de dezenas de anos de ditadura,
nenhum outro partido ou força política lutou com mais dedicação e
coragem do que o PCP pela liberdade e a democracia. Muitos comunistas
deram a vida e milhares de comunistas deram a sua liberdade para que
finalmente o povo português alcançasse a sua. No VII Congresso
realizado já na legalidade alcançada com o 25 de Abril foi divulgada
uma informação concludente. O total dos anos passados na prisão pelos
então 36 membros do Comité Central ultrapassou os 300 anos. Ninguém
mais que os comunistas, porque foram mais cruelmente privados dela,
conhecem o valor da liberdade. Esse valor foi ganho na luta, no
sofrimento, na esperança, no sonho, no objectivo concreto das batalhas
travadas.
Não é apenas uma afirmação programática mas um valor e um
sentimento ganho na vida o facto de a política nacional que propomos
ter como elemento determinante um regime de liberdade no qual o povo
decida efectivamente o seu destino.
Através dos anos, pelas lições da própria actividade e pela
cada vez mais atenta análise de experiências negativas noutros países,
este aspecto central da nossa política e da nossa acção foi sendo cada
vez mais afirmativo e convicto.
A democracia, para o PCP, tem (repito) quatro vertentes
inseparáveis (a económica, a política, a social e a cultural). No que
respeita à democracia política (com conceitos cada vez mais precisos e
mais explicitados) o PCP sempre a inscreveu entre os seus objectivos
essenciais, não só para um regime político a instaurar após o
derrubamento da ditadura mas como um valor intrínseco e parte
integrante e inalienável na sociedade socialista que propõe para o
futuro de Portugal.
Não cabe no âmbito do tema que me foi proposto para esta
conferência tratar da acção do PCP no 25 de Abril e após o 25 de Abril.
Não se pode entretanto deixar de referir a contribuição em muitos
aspectos determinante dada pelo PCP para a intervenção popular na
liquidação do regime fascista e na conquista das liberdades
democráticas, para a instauração e institucionalização do novo regime
democrático, para a elaboração pela Assembleia Constituinte da
Constituição da República que aí foi aprovada por todos os partidos,
com excepção do CDS.
E não se pode tão pouco deixar de referir que na actualidade,
quando tantas ofensivas são desenvolvidas contra liberdades e direitos
dos cidadãos e contra elementos básicos da democracia política, o PCP
trava a luta em sua defesa e propõe ao povo português uma política em
que a democracia política é não só assegurada, como é aprofundada
simultaneamente nas suas vertentes representativa e participativa.
8. Enriquecimento do projecto de sociedade socialista
Através dos 71 anos de existência, num mundo marcado nesses anos por
grandes transformações, o projecto político do PCP foi-se corrigindo e
enriquecendo e precisando com a experiência própria e as experiências
alheias.
Os objectivos da sociedade socialista foram durante anos
definidos na base dos escritos de Marx, de Engels, de Lénine, e das
realizações da primeira grande experiência histórica da construção do
socialismo na URSS.
A própria criação do PCP teve a determiná-la por um lado a
consciência política da classe operária portuguesa ganha pela sua
própria luta e por outro lado o impacto da revolução russa de 1917,
dando o exemplo da conquista do poder pelos trabalhadores e do
empreendimento da construção de uma nova sociedade com a abolição da
exploração e opressão capitalista e com a criação dos sovietes e de
formas novas de democracia participativa.
Nos anos que se seguiram à 2ª Guerra Mundial, o papel
mundialmente reconhecido desempenhado pelo povo soviético sob a
bandeira do socialismo e apoiando-se nas realizações do socialismo para
a derrota da Alemanha nazi e a libertação do mundo do terror e da
barbárie fascista confirmou por um lado os extraordinários êxitos
também mundialmente reconhecidos alcançados pela URSS na construção do
socialismo e levou, por outro lado, a uma avaliação insuficiente,
estreita, unilateral e demasiado confiante da política e da acção do
PCUS e de Stáline, considerado então como um dirigente genial.
As grandes transformações e conquistas revolucionárias na União
Soviética (no domínio económico, social e cultural) foram tomadas como
experiências e exemplos quase de validade universal e integraram embora
apenas em termos muitos gerais o projecto político do PCP de uma
sociedade socialista para Portugal.
Nesses anos, a par da falta de conhecimento profundo e completo
da realidade soviética apesar das relações estreitas com o PCUS,
faltou-nos uma posição crítica aberta a aspectos que começamos a
analisar na base da experiência e do pensamento próprio do nosso
Partido.
O tempo, as próprias análises do Partido, designadamente da
sociedade portuguesa, as experiências directas da própria luta, o juízo
crítico de aspectos negativos que íamos apreciando na realidade da URSS
e outros países socialistas foram afastando o PCP de quaisquer
"modelos" e enriquecendo, modificando, dando nova configuração ao seu
Programa.
É certo que no Programa aprovado no VI Congresso (1965) se
identifica a revolução socialista como "a conquista do poder pelo
proletariado" e a "ditadura do proletariado" expressões que actualmente
nos parecem ideologicamente ultrapassadas e que foram riscadas do
Programa do PCP no VII Congresso (extraordinário) realizado em Outubro
de 1974.
Importa porém sublinhar que a par das grandes vertentes
económica, social e cultural da sociedade socialista então prefigurados
(abolição da exploração do homem pelo homem, propriedade social sobre
os principais meios de produção, desenvolvimento harmonioso de todos os
sectores e recursos da economia nacional, intervenção da pequena
produção na produção socialista, desenvolvimento contínuo da produção,
elevação constante do bem-estar material e espiritual dos
trabalhadores, fim da miséria, do desemprego, da desigualdade social,
princípio a cada um segundo o seu trabalho, cultura como património e
instrumento das amplas massas populares) - a par dessas vertentes - a
vertente da democracia política foi claramente sublinhada.
Desde logo a luta pela revolução democrática e nacional (com
todos os seus objectivos respeitantes às liberdades e direitos dos
cidadãos) é considerada como "parte constitutiva da luta pelo
socialismo". Insiste-se em que "as liberdades democráticas serão
asseguradas" e admite-se "um sistema pluripartidário". Define-se o
regime que se projecta como um "novo tipo de democracia
incomparavelmente superior a todos os tipos actualmente existentes",
afirmando-se que "o Estado socialista estabelecerá a mais ampla forma
de democracia, garantindo a participação das massas trabalhadoras no
Governo e na direcção da vida política e económica do país através dos
órgãos do Estado e das organizações de classe, sindicais, políticas e
outras".
O XIII Congresso (extraordinário) do PCP realizado em 1990
apontou como causas da derrocada dos regimes existentes nos países do
leste da Europa situações e soluções que representaram não os ideais
dos comunistas mas o afastamento desses ideais, como sejam o poder dos
trabalhadores e do povo e a sua participação criativa em toda a vida da
sociedade, a democracia política associada à democracia económica,
social e cultural, o desenvolvimento impetuoso das forças produtivas
resultante das novas estruturas socioeconómicas, o melhoramento radical
das condições de vida, um partido indissoluvelmente ligado às massas e
uma teoria dialéctica capacitada para responder às novas realidades e
para ser um guia para a acção. Ao apontar tal causa do fracasso do
"modelo" que se instalou nesses países, o PCP reafirmou assim
características essenciais dos ideais comunistas, tal como os
comunistas portugueses os compreenderam, os foram aperfeiçoando,
definindo e traduzindo na luta de todos os dias através dos anos.
A luta de 71 anos do PCP, constituiu uma longa aprendizagem. Se
o PCP tivesse ficado cristalizado e imóvel no pensamento e na acção
ante as grandes transformações que se operaram ao longo do século, há
muito teria morrido. O PCP respondeu às novas situações que foi
defrontando, aprendeu com a vida, enriqueceu conceitos. Manteve
simultaneamente valores essenciais que são a razão da sua própria
existência.
Esses valores não são produto de ideias concebidas em
abstracto, elaborados em gabinetes isolados da vida, no terreno da
teoria separada da prática. São a substância da própria existência e da
própria luta, cimentada nas convicções e na acção de gerações de
comunistas.
Qualquer estudioso que se dê ao trabalho de examinar
atentamente os objectivos da acção concreta do PCP através dos anos e
as lutas conduzidas pelo PCP - designadamente nos anos que constituem o
tema desta conferência - poderá verificar que, com fins imediatos muito
variados, as posições assumidas e as lutas travadas se podem arrumar em
cinco grandes objectivos gerais, constantes, unificadores em que todas
as lutas (apesar dos fins específicos de cada uma) se inscreveram: a
luta pela liberdade e a democracia, eixo político central da luta do
Partido ao longo de toda a sua existência; a luta em defesa dos
interesses dos trabalhadores e do povo em geral, pela melhoria das suas
condições de vida; a luta pelo desenvolvimento do país inseparável do
progresso social e da vertente social; a luta em defesa da
independência nacional; e a solidariedade internacionalista para com as
forças revolucionárias, os trabalhadores e os povos dos outros países.
Estes objectivos inspiradores da luta convicta, dedicada e
apaixonada dos comunistas através dos anos inseriram-se não apenas na
consciência e na sensibilidade ganhas na luta, mas como valores do
Programa do PCP, tanto para o regime democrático a instaurar após o
derrubamento da ditadura, como para a sociedade socialista que o PCP
como seu último objectivo sempre teve no horizonte do Portugal futuro.
A nossa reflexão na actualidade é certamente diferente daquela que foi
em anos passados. Cremos que assim sucede com o pensamento e a acção
que se movem com o tempo. Por isso seria altamente instrutivo que
partidos e indivíduos que têm a sua história a contar trouxessem à
memória e procedessem à reflexão (como nós fazemos) acerca do que
noutras épocas pensaram, afirmaram, defenderam e fizeram.
9. Sempre voltado para as massas
Não é exacta a ideia por vezes avançada de que o PCP nos anos
sombrios de clandestinidade se caracterizava por ser um núcleo político
fechado, mergulhado numa existência conspirativa e secreta, afastado da
vida, do povo, das massas. Tal ideia não corresponde à realidade.
Sem dúvida que, durante os 48 anos de ditadura, o PCP foi a
força política que, pelos métodos de organização e acção adoptados, se
revelou mais capaz de actuar nas condições de uma severa
clandestinidade. Mas, ao mesmo tempo, mais que nenhuma outra força
política estabeleceu, manteve e aprofundou nesses anos a ligação com a
classe operária, com o povo, com a vida social, política e cultural do
país. Quem esteja interessado em investigar esta matéria, encontra
valiosos elementos informativos nos jornais clandestinos publicados
regularmente (nomeadamente o "Avante!", "O Militante", "O Têxtil", "O
Corticeiro", "O Camponês","A Terra" e outros) e poderá tomar contacto
com uma informação viva de situações, de problemas e de lutas mostrando
essa profunda ligação. Ligação diária, ligação constante.
Diferentemente do PCP e de alguns outros sectores democráticos
manifestaram-se nesses anos duas atitudes extremas. A daqueles que
recorrendo apenas muito limitadamente e de forma insipiente a métodos
clandestinos intervinham quase exclusivamente quando a ditadura abria
campo a actividades legais e semi-legais. E a daqueles que
menosprezando e condenando a criação e aproveitamento de possibilidades
de acção legal e semi-legal defendiam a exclusividade da organização e
acção clandestina.
O PCP por seu lado, como meio indispensável para chegar às
massas, informá-las, influenciá-las, esclarece-las, estimulá-las,
organizá-las para a luta, não só aproveitava as possibilidades de acção
legal e semi-legal que se pudessem oferecer, como tomava a iniciativa
de criá-las. São exemplos de particular significado a actividade nos
Sindicatos Nacionais integrantes da organização corporativa
desenvolvida particularmente a partir de 1945, de forma a
transformá-los em instrumentos de defesa dos interesses dos
trabalhadores, actividade que acabou por conduzir à criação da
Intersindical; a criação e acção das Comissões de Unidade nas empresas
que com o apoio dos trabalhadores acabaram em muitos casos por ser
reconhecidas; a acção da juventude nas Associações de Estudantes em que
se apoiaram grandes movimentações, com especial referência para
1941-42, 1961-62 e 1969; e a concorrência às eleições fascistas que
permitiu conduzir grandes campanhas políticas em unidade com outras
forças democráticas (eleições para a Assembleia Nacional a partir de
1945 e eleições para a Presidência da República nomeadamente de 1949,
1951 e 1958.
De sublinhar, em relação com este aspecto específico da luta
antifascista, o papel dos intelectuais (escritores, artistas plásticos,
músicos, cantores, actores, professores) não só participando nas formas
gerais da luta antifascista, mas dando também uma ímpar contribuição
para a cultura e a defesa de valores democráticos com a sua obra
específica.
A íntima ligação com a classe operária, os trabalhadores em
geral, os intelectuais, a juventude, e o aproveitamento ou criação de
formas de organização legal e semi-legal, eram indissociáveis de uma
concepção fundamental do PCP: que a luta popular de massas constituia
uma frente de luta determinante e um motor do desenvolvimento do
processo que conduziria à revolução antifascista.
A luta do PCP contra a ditadura não se resumia ao
desmascaramento da política fascista e ao protesto contra ela. A luta
foi conduzida de forma a suscitar, promover e organizar a luta popular
com objectivos concretos e imediatos. A experiência mostrou que o
interesse directo numa luta que se trava (e o êxito alcançado ou
possível) é um factor que pode ser determinante para o esclarecimento
dos problemas gerais e globais. No caso concreto do período considerado
nesta conferência, para o reforço da consciência antifascista e do
carácter imperioso do derrubamento da ditadura.
Será uma inadvertência de qualquer estudioso da resistência
antifascista dar menos atenção e menosprezar o que foram e o que
significaram as lutas de massas no tempo da ditadura. Apesar das
perseguições e da repressão fascista, a história da resistência é uma
história de greves, de manifestações, de concentrações, de campanhas
políticas, em muitos casos de extraordinária amplitude, grandeza, nível
de organização e heroísmo, que não só constituiram uma demonstração de
elevada consciência e combatividade do povo português (com particular
relevo da classe operária, dos intelectuais e da juventude), não só
incapacitaram o fascismo de criar uma verdadeira base de massas, como
constituiram uma valiosíssima escola que acabou por conduzir o regime
ao progressivo isolamento e o povo a objectivos gerais de liberdade que
vieram a ter exaltante expressão no levantamento popular que se seguiu
imediatamente ao levantamento militar do 25 de Abril e ao derrubamento
do governo fascista e que, em aliança com os militares do MFA, acabou
por determinar as grandes transformações democráticas então verificadas
e a instauração e institucionalização do regime democrático.
Neste Seminário "Para a história da Oposição ao Estado Novo", é
correcto que sejam referidos os méritos e deméritos dos partidos e
outras forças políticas. É porém também necessário referir, como grande
protagonista da Oposição, o povo português, que justificou com a sua
luta a confiança daqueles que nele confiavam e justificará certamente
no futuro a confiança daqueles que nele confiam.
10. A luta pela unidade antifascista
Será difícil contestar que nos anos decorridos de 1940 ao 25 de
Abril o PCP desempenhou um papel de primacial importância na
concretização da unidade das forças antifascistas.
Já antes do período a que respeita esta conferência, sob a
influência da criação, vitórias eleitorais e formação de governos das
Frentes Populares com comunistas e socialistas em França e Espanha
(1935/36) - também em Portugal, por iniciativa do PCP, se deram nesses
anos passos positivos para a criação de uma Frente Popular (1936/38).
Com a vitória de Franco na guerra civil e o início da 2ª Guerra Mundial esse processo foi interrompido.
Assim, quando da reorganização de 1940-41, as forças
antifascistas encontravam-se divididas, dispersas, sem acordos nem
acção comum.
Foi por iniciativa do PCP e sob o impacto das grandes greves
operárias de Julho/Agosto de 1942 e Outubro/Novembro de 1943 (que
tiveram ainda nova expressão em 8 e 9 de Maio de 1944) da unidade e
combatividade da classe operária e da influência do PCP nelas
reveladas, que se constituiu em Dezembro de 1943 na clandestinidade o
Conselho Nacional de Unidade Anti-Fascista. Num "Comunicado ao Povo
Português", o Conselho declarou ser objectivo do Movimento de Unidade
Nacional Anti-Fascista (MUNAF) a instauração de um governo em que
estivessem representadas todas as correntes da oposição e que desse ao
povo português "a possibilidade de escolher, em eleições
verdadeiramente livres, os seus governantes".
O Conselho Nacional, que teve como Presidente Norton de Matos e
contou na sua composição mais de 40 membros, conseguiu unir à sua volta
praticamente todos os sectores da oposição antifascista, esteve aberto
a grupos militares e a correntes católicas e formou Comités de Unidade
Nacional por todo o país. É certo que muitos dos membros do Conselho
Nacional representavam formalmente partidos praticamente inexistentes
como tal. Mas, alguns representavam correntes políticas com influência
não desprezível.
Ao terminar a guerra, aproveitando em profundidade a manobra
pseudo-democrática de Salazar, o MUNAF lançou um vastíssimo e dinâmico
movimento político de massas que impôs temporariamente a sua actuação
legal e semi-legal (o MUD) e que nos anos seguintes (fazendo frente à
repressão) promoveu uma intensa actuação política.
A luta do PCP pela unidade antifascista continuou sendo uma
constante da sua orientação e teve, ao longo dos anos expressões
diferenciadas em termos de composição e organização, como foram o
Movimento Nacional Democrático (MND) com Ruy Luis Gomes, as Juntas de
Acção Patriótica (JAP), a Frente Patriótica de Libertação Nacional
(FPLN), as Comissões Democráticas Eleitorais (CDE), os Congressos da
Oposição Democrática (Aveiro), o MUD Juvenil e o Movimento da Juventude
Trabalhadora (MJT), o Movimento Democrático das Mulheres (MDM) e
outras.
Em 1949 a campanha eleitoral de Norton de Matos e em 1958 as
campanhas eleitorais de Arlindo Vicente e Humberto Delgado fundindo-se
finalmente na deste último mereceram o entendimento e a acção comum de
praticamente todos os sectores democráticos confluindo numa vigorosa
acção política de massas.
A constituição em fins de 1962 da Frente Patriótica de
Libertação Nacional (de que vieram a fazer parte com o PCP entre outros
Humberto Delgado e Ruy Luis Gomes) representou nos anos seguintes até à
sua divisão interna ainda na década 60 um importante papel na
aglutinação e dinamização da luta contra a ditadura.
A unidade antifascista na luta contra a ditadura teve
magníficas expressões de que os democratas portugueses se podem
justamente orgulhar. Era porém inevitável que a existência de
diferenças de pontos de vista entre sectores sociais e políticos tão
diversos provocasse dificuldades e contradições ao processo de unidade.
As diferenças mais sérias tanto na luta imediata contra a
ditadura como nos objectivos definidos para o regime democrático a
conquistar respeitavam a quatro principais questões: a estrutura
socioeconómica (nomeadamente monopólios e latifúndios), as posições
dominantes do imperialismo estrangeiro sobre Portugal, o direito dos
povos das colónias portuguesas à autodeterminação e independência e a
chamada via para pôr termo à ditadura. Deve sublinhar-se que essas
diferenças de pontos de vista continuaram após o 25 de Abril, ainda de
forma mais aguda naturalmente, porque se tratou então de concretizar ou
não na vida as políticas que se propunham.
Nos últimos anos do fascismo, por um lado as tendências para um
compromisso com o regime com vista à sua "liberalização" e ilusões
voltadas para os "dissidentes" e por outro lado um verbalismo radical
pseudo-revolucionário apregoando a acção directa e o terrorismo com
vista a uma revolução imediata que apelidavam de proletária e
socialista constituiram factores negativos para a unidade dos
antifascistas. Apesar porém dessas dificuldades, em numerosos aspectos
houve acções paralelas e acções convergentes.Um processo unificador
implicou naturalmente não apenas diferentes opiniões, diferentes
programas, diferentes objectivos, mas contradições e polémicas mais ou
menos agudas e, em certos momentos, conflitos e rupturas.
Entretanto, mesmo quando separados, todos acabávamos por
convergir no objectivo primeiro, fundamental e comum de pôr fim à
ditadura, conquistar a liberdade, instaurar um regime democrático. Este
grande objectivo comum acabou por ser alcançado e por isso, quando o
foi, em dias grandes da história do povo português e de Portugal - a
revolução de Abril de 1974 - todos os antifascistas se encontraram
unidos, por momentos infelizmente breves, na conquista e instauração
das liberdades e de um regime por que haviam sonhado gerações e
gerações submetidas à tirania fascista.
Porque o tema da conferência que fui convidado a fazer termina
precisamente no 25 de Abril, acho preferível não me alargar nas
divergências, conflitos e polémicas, nem anteriores nem posteriores,
antes abordando a questão da unidade terminar este ponto da minha
exposição nesse momento histórico em que os antifascistas concluímos
unidos, na alegria da liberdade conquistada, a nossa longa luta contra
a ditadura.
11. Como derrubar a ditadura?
Um problema maior que se colocou ao povo português, aos democratas,
ao PCP, logo desde 28 de Maio de 1926, foi como pôr fim à ditadura.
Antes da 2ª Guerra Mundial, enquanto a efectiva hegemonia da
resistência coube a círculos republicanos vindos da República de 1910,
a ideia predominante era a de que o único caminho seria um putch - um
golpe militar. Algumas tentativas, das quais a principal foi logo em 7
de Fevereiro de 1927, foram dominadas militarmente. Depuradas as forças
armadas pela ditadura, a ideia do golpe militar (do então chamado
"reviralho") além de iniciativas esporádicas logo abafadas, passou a
ser um pretexto para justificar e defender a passividade de sectores
antifascistas aos quais faltavam determinação, organização e mesmo
coragem para travar a luta dia a dia e para enfrentar dia a dia a
repressão.
O PCP deu combate político e ideológico ao reviralhismo mas só
quando, já nos anos 40, adquiriu força e capacidade para promover e
dirigir, mesmo nas condições do fascismo, a luta política e social de
massas, só então começaram a surgir outras perspectivas no pensamento e
na actividade da Oposição.
Talvez nenhuma outra questão tenha dado lugar no campo
antifascista a tão profundas divergências e tenha influenciado tão
profundamente a orientação política, as linhas programáticas e as
formas de intervenção.
De uma maneira talvez simplista podem considerar-se dois grandes blocos de tendências, a que o PCP fez frente simultaneamente.
Por um lado, as vacilações e ilusões do que chamámos a "burguesia liberal".
A ideia ilusória de que o fim da ditadura e a instauração da
democracia viria de factores externos (por pressão da Inglaterra quando
da derrota da Alemanha na guerra, por exemplo). A ideia igualmente
ilusória, mas que renascia ao longo dos anos de que seria possível uma
vitória nas eleições fascistas elegendo deputados da Oposição e
facilitando assim o caminho para uma solução pacífica (1957). A ideia
de que o fim da ditadura resultaria da desagregação automática e
irreversível da própria ditadura (tendência particularmente forte nos
anos 60). A ideia de que a única saída seria um compromisso com o
próprio regime, da ala mais moderada da Oposição que assim alcançaria
discriminada autorização para actuar legalmente (esta tendência foi
muito viva no período do marcelismo). Esta não era apenas uma atitude
pragmática de alguns. Grassavam especulações teóricas segundo as quais,
ao contrário do salazarismo, que teria sido inspirado pelo "capital
agrário", o marcelismo seria o desbloquear do desenvolvimento, a
política do capital progressista a que chamavam "neo-capitalismo",
interessado na liberalização e na democratização do país.
Noutro bloco, a impaciência do que chamámos o radicalismo
pequeno-burguês, que, particularmente após o desencadeamento das
guerras coloniais, portanto já na década de 60, considerava inúteis a
acção política e as lutas de massas e, em alguns círculos, por
influência directa do maoismo de então, defendia a precipitação, como
forma prioritária, exclusiva e imediata, de acções armadas em diversas
modalidades: desde a acção guerrilheira ao terrorismo.
Propagandistas exaltados do lançamento imediato de tais acções, sem
darem um passo para a sua realização, reclamavam que o PCP as
empreedesse, mostrando estarem firmemente decididos a sacrificar-se até
à morte... do último comunista.
Também no PCP esta questão da via para o derrubamento da ditadura deu lugar a debates e vacilações.
No fim da 2ª Guerra Mundial, dada a aliança dos Estados Unidos e
Inglaterra com a União Soviética, generalizou-se em largos círculos a
crença de que a aliança no tempo de guerra poderia ter nova e duradoura
expressão no tempo de paz. Isto naturalmente antes do célebre discurso
de Fulton, de Churchill (5 de Março de 1946), que reacendeu a guerra
fria contra a União Soviética. Difundiu-se a ideia de que o
imperalialismo tinha mudado de natureza e de que os Estados Unidos,
além da Inglaterra, passariam a ter um papel progressista na libertação
dos trabalhadores e dos povos do mundo. No próprio movimento comunista
apareceram tais ideias, como foi o caso do "browderismo", - de Browder,
Secretário-geral do Partido Comunista dos Estados Unidos, depois
afastado do partido.
No PCP, tais concepções não vingaram, mas não deixaram de
manifestar-se da parte de alguns camaradas (reunião do Comité Central
de Maio de 1945) e na opinião de alguns outros que à data se
encontravam no Campo de Concentração do Tarrafal e defenderam a então
chamada "política de transição".
O caminho insurrecional, o levantamento nacional armado foi a
linha definida pelo III Congresso (1º ilegal) realizado em Novembro de
1943 e confirmada no IV Congresso realizado em 1946.
Mas em 1956/57, as conclusões do XX Congresso do PCUS, não
tanto pela revelação e condenação do culto da personalidade de Stáline
como pela perspectiva apontada da coexistência e competição pacífica,
da breve ultrapassagem pacífica do capitalismo pelo socialismo em
termos mundiais, da solução pacífica como caminho universal para o fim
das ditaduras e para revoluções socialistas, tiveram também eco no PCP.
O V Congresso realizado em 1957, sem se afastar da sua linha de massas,
colocou entretanto como objectivo "desejável e possível" (inserto no
que foi depois considerado "o desvio de direita" dos anos 1956/59) "a
solução pacífica do problema político português", associada à crença
numa "desagregação contínua" e "irreversível" da ditadura. Expressão
significativa desta tendência foi a palavra lançada de uma "jornada
nacional pacífica para a demissão de Salazar" (1959) com a esperança de
que poderia conduzir a tal resultado.
Em 1961 foi retomada a linha do levantamento nacional armado
(reunião de Março do Comité Central). A necessidade do recurso à força,
de uma solução violenta para pôr fim à ditadura resultava da recusa do
governo fascista abrir caminho a uma solução pacífica do problema
político português, da insistência na farsa das eleições, do uso
sistemático da repressão fascista para manter a ditadura como regime
imutável e intocável.
O levantamento nacional, definido (nomeadamente no VI Congresso
realizado em 1965) como insurreição popular, luta armada do povo e de
militares revolucionários, foi apontado pelo PCP, não como um acto
voluntarista, como consequência de apelos ou de iniciativa de uma
vanguarda empreendendo isolada o combate, mas exigindo a existência de
uma situação revolucionária, em que à crise do regime se somasse a
preparação, disposição e determinação das forças revolucionárias.
12. Crise e derrota da ditadura fascista
O extraordinário agravamento das contradições económicas e sociais
resultantes do processo específico do desenvolvimento do capitalismo no
tempo da ditadura, a amplitude e vigor da luta popular e democrática, a
redução radical da base social e política de apoio do fascismo, a luta
armada dos povos das colónias conduziram a uma crise geral e
irreversível do regime.
O vigoroso ascenso da luta popular em todas as frentes, a
guerra colonial sem saída militar, a deterioração da situação
económica, o crescente isolamento interno, as dissidências nas hostes
fascistas ("os dissidentes do regime"), as contradições nas Forças
Armadas que há muito tinham deixado de ser (na frase de Salazar) "a
garantia e o penhor da Revolução Nacional" e a formação de um movimento
militar organizado (o MFA), o surgir de tendências antifascistas e
progressistas no clero e nos meios católicos e o isolamento
internacional - são os aspectos mais significativos da crise do regime
que entrou na sua agonia com a manobra liberalizante de Marcelo
Caetano.
O fluxo do movimento operário com poderosas lutas de massas e a
formação a partir dos sindicatos fascistas de um movimento sindical
independente (a Intersindical), o movimento democrático com redobrada
vitalidade na grande campanha em torno das eleições para a Assembleia
Nacional fascista, um movimento juvenil nomeadamente dos estudantes, a
luta contra a guerra colonial nas suas variadas formas e tendo
expressão em acções violentas contra o aparelho militar da guerra
colonial e crescentes acções de resistência nas Forças Armadas,
anunciavam a aproximação da crise revolucionária.
Ao longo dos anos, tendo em conta que a ditadura dispunha de um
Estado fortemente centralizado e militarista, o PCP sempre considerou
que o levantamento nacional teria que contar com a participação e a
neutralização de parte considerável das forças armadas. Com a crise do
regime fascista aprofundada com a guerra colonial, a resistência nas
forças armadas e a radicalização política de soldados e sectores da
oficialidade, o elemento militar ganhou cada vez mais peso na
perspectiva apontada.
Assim admitia-se não só uma insurreição popular e militar
simultânea, como a possibilidade de uma acção militar preceder o
levantamento popular. O 25 de Abril veio a comprovar tal previsão.
Insistindo numa ideia já atrás referida, na história das
sociedades cada momento foi vida tendo atrás um antes e tendo à frente
um depois.
Daí a dificuldade, para não dizer impossibilidade, falando de
um partido com 71 anos de existência, de falar de uns tantos anos sem
referir o que os precedeu e o que se seguiu.
Este seminário dedica-se à "história da Oposição ao Estado
Novo" . A luta contra a ditadura fascista teve um objectivo último
central e fundamental: a conquista da liberdade e da democracia.
Alcançado esse objectivo é legítimo questionar, não só o que se pensou
e fez antes, mas como se concretizou na vida nacional a luta travada
pelo PCP, pelo povo português, pelos democratas portugueses durante
esses 48 anos de ditadura.
A questão sugere naturalmente o tema de um outro Seminário que
seria interessante realizar sobre o 25 de Abril, a revolução
democrática e os anos que se seguiram até hoje. É um tema válido num
mestrado de história, porque sendo da história recente, não deixa de
ser já história. História que por vezes erradamente alguns julgam estar
escrevendo por si próprios mas que acaba por ser escrita nas linhas
fundamentais pela vontade dos povos.