Vítor Dias, Membro da Comissão Política do Comité
Central do PCP
Camaradas:
O passado dia 18 – data em que a Assembleia da República
aprovou a pergunta para um referendo em torno da chamada “Constituição
Europeia” – podia ter sido um dia positivo e digno na vida
e na história do Parlamento desde o 25 de Abril. Mas foi apenas
um dia sombrio e negativo que merece ficar como um símbolo da arrogância
e desonestidade de algumas forças políticas e da sua ostensiva
falta de respeito pelos portugueses.
Podia ter sido uma data a recordar com apreço se tivesse significado
a aprovação de uma pergunta clara, transparente e isenta
a respeito da “Constituição Europeia”, assim
interrompendo, ao menos episodicamente, a opacidade, a política
de factos consumados e de continuada recusa da realização
de qualquer referendo sobre passos cruciais (por exemplo, Maastricht e
a moeda única) da evolução do processo de integração
europeia que, desde 1985, são prosseguidas e impostas pelo PSD
e pelo PS.
Mas não foi nada disso que aconteceu porque, como é sabido,
PSD, CDS e PS negociaram entre si e aprovaram, debaixo do indignado protesto
e voto contra do nosso Partido, uma pergunta aos eleitores sobre se concordam
«com a Carta de Direitos Fundamentais, a regra das votações
por maioria qualificada e o novo quadro institucional da União
Europeia, nos termos constantes da Constituição para a Europa
?».
Para além de ser incompreensível para a maioria dos cidadãos,
o que sumariamente caracteriza esta pergunta (votada na AR poucas horas
depois de ser apresentada, ou seja, propositadamente sem dar tempo para
qualquer debate público) é impor a mesma resposta às
três diferentes questões que comporta (e a que os eleitores
podem querer responder de forma diferente); é escolher certas questões
em detrimento de outras seguramente mais importantes e decisivas no novo
Tratado (como a supremacia da Constituição Europeia sobre
a Constituição Portuguesa, como o agravamento das soluções
federalistas ou a descarada consagração das políticas
neo-liberais); é incluir – e logo à cabeça
- a inócua e quase irrelevante Carta dos Direitos Fundamentais
como doce isco para a ingestão do restante cianeto. E é
sobretudo a fuga à pergunta mais clara, mais decente e mais simples
que verdadeiramente se impõe e que o PCP propôs e defendeu:
ou seja, se os portugueses concordam «com a vinculação
de Portugal ao novo Tratado que institui uma Constituição
para a União Europeia».
É certo que muitos sustentam que a Constituição
não permite esta pergunta porque, na revisão de 1997, PSD
e PS impuseram que os referendos só possam incidir sobre «questões
de relevante interesse nacional» a regular em leis ou em convenções
internacionais e o fizeram premeditadamente para ficarem com margem de
manobra para, em caso de uma vitória do não, isso não
representar imediata e inequivocamente a não ratificação
por Portugal de um tratado.
Mas, a este respeito, é preciso lembrar aquilo que muitos querem
esquecer. Concretamente que nas revisões constitucionais de 1992,
1997, de 2001 e de Abril deste ano (já portanto a pensar na Constituição
Europeia) o PCP repetidamente propôs que passasse a ser constitucionalmente
possível referendar, em termos globais, a vinculação
de Portugal a tratados da integração europeia e que o PS,
o PSD ( e também o CDS na revisão deste ano) a isso sempre
se opuseram terminantemente.
Por uma vez, camaradas, não precisamos de nenhum esforço
especial para encontrar os termos justos para qualificar a pergunta saída
da aliança dita «europeísta» entre o PS, o PSD
e o CDS : basta-nos lembrar que outras vozes, de diversos e até
insuspeitos quadrantes políticos, já disseram que era uma
pergunta capciosa, enganosa e enganadora, uma habilidade pacóvia,
um insulto à inteligência dos portugueses, um intolerável
truque para fazer do referendo um mero pró-forma e uma passeata
triunfal para a vitória do «sim».
Acresce que decorreu mais de um ano entre o momento em que se começou
a discutir mais seriamente este referendo e o momento em que a pergunta
foi aprovada e, em todo esse tempo e até hoje, ninguém do
PS, do PSD e do CDS foi capaz de dizer e assumir com clareza qual é
a finalidade concreta deste referendo e designadamente qual é a
consequência lógica de uma vitória do «não».
Como infelizmente acontece noutras matérias, também em
todo este processo não é possível ignorar a triste
figura feita pelo PS e as destacadas responsabilidades que assume nesta
moscambilha.
Com efeito, foi o PS que se recusou a uma revisão constitucional
cirúrgica que permitisse a pergunta que se impõe, pois o
PSD, talvez porque sabia que o PS a recusava, até manifestou abertura
para ela. Foi o PS que inventou a armadilha da inclusão da Carta
dos Direitos Fundamentais na pergunta. É o PS que parece estar
com mais pressa na realização do referendo, talvez porque
precisa que nas autárquicas de Outubro já ninguém
se lembre que, em Abril, fez bloco com a direita no referendo sobre a
Constituição europeia. E, como agora até o governo
PSD-CDS já se distanciou da pergunta, é o PS que fica como
o único grande defensor de uma pergunta que só enxovalha
a vida democrática do país. Mas, como diz uma canção,
é preciso ter calma: mais algum tempo, e ainda vamos ver a pergunta
manhosa a ficar orfã de pai e mãe.
Camaradas:
Num referendo com a pergunta indispensável e necessária,
a nossa campanha, combatendo falsificações, mentiras e inaceitáveis
argumentos de coacção, só pode ser pelo «não»
à subordinação de Portugal à Constituição
Europeia, em nome dos interesses e da soberania nacionais e de uma profunda
mudança de rumo para o processo de integração europeia.
E precisamos de, desde já, inscrever essa mais que provável
e próxima batalha eleitoral entre as nossas mais urgentes preocupações
e tarefas políticas.
Mas, sem nenhuma hesitação, o nosso combate mais imediato
tem ainda de ser uma forte mobilização contra a pergunta
celerada para uma farsa de referendo, sendo de lembrar a este respeito
que, seja qual for a apreciação do Tribunal Constitucional,
o Presidente da República tem sempre a possibilidade política
de não convocar um referendo com tal pergunta e que, se viesse
a tomar tal decisão, prestaria um bom serviço à democracia.
Uma coisa é certa: o PCP cumprirá os seus deveres e, por
comparação com outros, marcará a diferença
da coerência, da integridade política, da coragem e da verticalidade.