Partido Comunista Portugu�s
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Alterações à lei eleitoral dos órgãos das autarquias locais
Intervenção de António Filipe
Quinta, 28 Abril 2005

Sr. Presidente, Srs. Deputados:

Os projectos de lei do PSD e do PS, hoje em discussão, propõem que as câmaras municipais deixem de ser eleitas directamente pelo povo.

O projecto do PS propõe que passe a ser o presidente da câmara, eleito com a assembleia municipal, a escolher todos os vereadores do executivo municipal. O projecto do PSD transforma artificialmente as maiorias relativas obtidas nas urnas em maiorias absolutíssimas obtidas na secretaria.

As razões invocadas para esta profunda alteração, sem precedentes, na vida democrática dos municípios, são rotundamente falsas. Reza o preâmbulo do projecto do PS que «são conhecidos os sistemáticos bloqueios na gestão municipal verificados nos casos de maiorias relativas e as consequências perversas decorrentes desse tipo de situações».

Mas quererão os Srs. Deputados, antes de mais, dizer-nos que bloqueios são esses e, já agora, quem são os bloqueadores?

O PS e o PSD falam reiteradamente em bloqueios e em instabilidade, decorrentes da participação de forças políticas diferentes nas câmaras municipais, mas era bom que nos dessem, ao menos, um exemplo, um só exemplo, de algum bloqueio sistemático que tenha conduzido à dissolução de uma câmara municipal e à realização de eleições intercalares.

Os Srs. Deputados não dão um único exemplo, porque não há nenhum exemplo para dar. O argumento das forças de bloqueio nas câmaras municipais desempenha, neste processo de alteração das leis eleitorais autárquicas, exactamente o mesmo papel que as armas de destruição em massa desempenharam na guerra do Iraque.

Dizem que é preciso mudar a lei porque há bloqueios sistemáticos, mas não encontram um único caso de bloqueio que possam dar para amostra.

Na verdade, quantas eleições intercalares para câmaras municipais se realizaram em Portugal nos últimos 20 anos? Exactamente quatro: no Fundão, no mandato 85/89; em Monção, em 1990; em Albufeira, em 1996; e em S. Pedro do Sul, no ano de 2000. Ou seja, foram eleitas, nestes 20 anos, 1883 câmaras municipais, houve eleições intercalares em quatro e, em todas elas, a necessidade de eleições nunca foi imputável às tais minorias de bloqueio mas, única e exclusivamente, a irregularidades ou trapalhadas da responsabilidade do partido maioritário.

Não, Srs. Deputados! A participação das várias forças políticas nas câmaras municipais não é uma força de bloqueio, é uma força da democracia.

É uma força da democracia na medida em que cada força política participa nos executivos municipais não em função de vitórias na secretaria mas em função dos votos que obtém do eleitorado. E não há nada mais democrático do que cada um ser representado em função dos votos que tem.

É uma força da democracia na medida em que, em cada município, o mais importante não é saber quem é poder e quem é oposição. Em cada município, o que é importante é que cada cidadão que seja eleito pelo povo esteja disponível para trabalhar pela resolução dos problemas de todos, independentemente da sua cor partidária, e que o povo julgue, no fim de cada mandato, o trabalho realizado por cada um.

Nas câmaras de maioria CDU, qualquer eleito, de qualquer força política, pode, se assim o entender, assumir responsabilidades executivas. E os eleitos da CDU, em posição de minoria, não se eximem a assumir responsabilidades e a colaborar na gestão municipal, mesmo que isso dê lugar a críticas e a acusações de quem não perfilha a mesma concepção de serviço à comunidade e queira ver as autarquias como um mero palco para guerrilhas político-partidárias.

É uma força da democracia na medida em que constitui, de longe, o instrumento mais eficaz de fiscalização democrática da actividade municipal.

O problema com que o poder local está hoje confrontado não é o de excesso de participação das várias forças políticas, é precisamente o peso excessivo que os presidentes de câmara tendem já a assumir e que transforma a gestão de algumas autarquias em formas quase autocráticas de expressão de poder pessoal.

A este propósito, vou citar um artigo que li no jornal Público, em Abril de 2000, quando o PS apresentou um projecto em tudo semelhante ao que está hoje em discussão. Passo a citar: «Não é preciso grande esforço para ver o que é que isto vai produzir. A câmara desaparecerá como órgão colegial, passando apenas a ser o presidente mais os seus homens de confiança. Com isso desaparece também o controlo endógeno que hoje é proporcionado pela composição plural da câmara municipal. Na maior parte dos casos, o presidente eleito disporá de uma confortável maioria na assembleia. Deste modo, por mais que sejam ampliados os poderes de fiscalização da assembleia, isso de nada valerá, se o presidente dispuser de apoio maioritário na mesma. Não é difícil antever que, nestas condições, existem graves riscos de o actual presidencialismo municipal se transformar a breve trecho num despotismo municipal.».

Continuava o artigo: «Parece evidente que a eleição conjunta do presidente e da assembleia numa mesma lista tenderá a dar aos candidatos a presidente também um poder determinante na escolha dos candidatos à assembleia, assegurando ao chefe do executivo municipal uma assembleia dócil. Se a isso se acrescentar o poder do presidente escolher livremente a sua equipa na câmara e a sua quase imunidade perante a assembleia, que elementos é que faltam para um poder pessoal ilimitado sob a capa de um poder formalmente democrático?»

Quem colocou esta interrogação, quem escreveu isto foi o Prof. Dr. Vital Moreira.

E seria bom que os Srs. Deputados ponderassem atentamente as suas objecções a esta vossa proposta.

É uma evidência que, com os executivos monocolores, as deliberações que são hoje tomadas nas câmaras municipais, em resultado de um debate contraditório entre várias correntes de opinião, passarão a ser impostas unilateralmente pelo presidente, sem qualquer discussão ou participação democrática. O presidente quer, pode e manda!

E é também uma evidência que, com semelhante modelo, os cidadãos passam a não se rever nas decisões de órgãos autárquicos, que deixam de se basear na legitimidade conferida pelo voto popular e passam a basear-se na autoridade conferida pelo legislador ao presidente da câmara.

Mas já que um dos argumentos invocados é o da estabilidade, é preciso dizer que os projectos em discussão se arriscam seriamente a introduzir na governação local uma instabilidade sem precedentes, que bem pode levar à realização de largas dezenas — se não centenas — de eleições intercalares em cada mandato. Basta atentar no mecanismo proposto para a investidura das câmaras municipais.

O presidente da câmara propõe um executivo à assembleia composto por elementos da sua lista (se fosse para propor elementos de várias listas não valia a pena alterar a lei, bastava deixar tudo como está).

Se houver maioria relativa e os eleitos das outras forças políticas se opuserem por duas vezes consecutivas haverá eleições intercalares. Ou seja, em todas as assembleias municipais em que não haja maioria absoluta (são actualmente perto de uma centena) podemos vir a assistir à realização de eleições intercalares sucessivas até que alguém obtenha a maioria absoluta.

Para quem propõe uma nova lei eleitoral em nome da estabilidade a solução dificilmente poderia ser pior.

Mas há mais: a moção de censura prevista no projecto de lei do PS não passa de uma fraude política.

Diz o projecto que a assembleia municipal pode aprovar moções de censura ao executivo municipal, forçando assim a sua remodelação, desde que o faça por maioria de dois terços dos eleitos directos. Contudo, os Srs. Deputados não ignoram, porventura, que dos 308 municípios existentes só em quatro a soma doseleitos em listas não maioritárias consegue atingir tangencialmente a maioria de dois terços.

O que resulta, obviamente, de tudo isto é que nem o PS nem o PSD estão preocupados em melhorar o funcionamento democrático dos órgãos municipais ou em garantir a sua estabilidade. O seu real interesse, e que motiva realmente estas propostas, é assegurar artificialmente a «bipartidarização» dos órgãos autárquicos em Portugal. Ao polarizar a escolha dos eleitores no presidente da câmara e ao reduzir as câmaras municipais a um só partido o que se pretende é retirar aos eleitores o direito a uma escolha plural.

A lógica dos executivos homogéneos proposta pelo PS, ou dos executivos quase homogéneos proposta pelo PSD, não contém em si nenhuma novidade política. É a mesma lógica que preside à proposta dos círculos uninominais para a Assembleia da República.

Trata-se de coagir os eleitores a pensar que a sua participação em eleições democráticas se tem de limitar a escolher, em cada momento, entre um dos dois partidos do bloco central.

Este processo legislativo ameaça, sim, ser mais um dos artigos dessa espécie de Tratado de Tordesilhas com que o PS e o PSD pretendem repartir entre si a vida política portuguesa, numa espécie de regresso a um rotativismo que já deu no passado as mais tristes provas e que no presente não promete nada de bom para a democracia.

Contarão com a oposição do PCP e, seguramente, de muitos outros democratas que não se conformam com esta adulteração da democraticidade do poder local.