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Sessão Comemorativa do 50º Aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem - Intervenção de João Amaral
Quinta, 10 Dezembro 1998

Senhor Presidente da Assembleia da República,

Há cinquenta anos, enquanto a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovava a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em Portugal, Salazar reforçava uma ditadura que ainda iria durar mais um quarto de século, intensificava a repressão sobre o país e em particular sobre os opositores, adiava as esperanças de liberdade e democracia que o fim da guerra e a derrota do nazi-fascismo tinham feito nascer no coração de milhões de portugueses.

Poucos meses antes da aprovação da Declaração, um sórdido decreto expulsava da Universidade vinte-e-um professores de alta craveira, só por serem democratas empenhados, nomes como Francisco Pulido Valente, Fernando da Fonseca, Celestino da Costa, Luís Dias Amado ou Manuel Valadares.

No Tribunal Plenário, o tribunal de excepção onde o regime mandava condenar os opositores, voltavam os julgamentos em grupo, como o que ficou conhecido como o julgamento dos 109. No começo desse ano, o Movimento de Unidade Democrática, o MUD, que tão profundamente marcou esses tempos, era ilegalizado por acto de puro arbítrio da ditadura. Voltavam também as vagas de prisões, entre elas a de Álvaro Cunhal, que passaria por duras torturas e um período de isolamento de anos, e Militão Ribeiro, que morreria um ano depois na cadeia, ambos dirigentes do PCP, o único partido organizado que nessa altura enfrentava a ditadura. Muitas outras prisões foram feitas, sendo justo referir, por se encontrar nesta sala, o nome do dr. Mário Soares, que viria a ser depois do 25 de Abril Presidente da República Portuguesa.

Recordando-se, ainda que muito sumariamente, a repressão que nesses anos ocorria em Portugal (e só com referência à vida política, sem descrever a repressão que enchia as fábricas e os campos), mostra-se como os democratas portugueses se empenharam nesse tempo na conquista da liberdade, dos direitos do Homem que a Declaração Universal estava a consagrar.

Esta foi a contribuição portuguesa para esse acto de progresso e civilização, uma contribuição de luta e de dor, perante a qual todos devemos uma expressão pública de reconhecimento e homenagem que aqui presto sentidamente.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem tem o significado maior de centrar os valores do progresso no cidadão. Por isso, a Declaração deveria ter sido a derrota da geoestratégia. Seja onde for que esteja um Ser Humano está alguém portador deste complexo de direitos de natureza múltipla, direitos civis, políticos, sociais, culturais, económicos. Seja qual for o seu país, o seu bloco, a sua ideologia, a sua condição social, o seu sexo, a sua cor, ali está o nosso Universo, o ser humano.

Mas, em Portugal, na data da Declaração e nas condições difíceis da ditadura, foi esse também o tempo do primeiro Acordo de Defesa com os Estados Unidos, preparando a entrada do Portugal de Salazar como membro fundador da Aliança Atlântica. Afinal a geoestratégia estava bem actuante. Voraz, comandou e comanda muitas opções que sacrificam povos inteiros às degradantes condições da guerra, da ditadura, da miséria, da fome, da doença, do analfabetismo.

A Declaração Universal é a condenação disso mesmo. Ela representa a aguda consciência que se foi criando de que em nenhuma sociedade pode haver progresso e justiça sem respeito dos direitos do Homem. Nenhum espírito de bloco pode ser travão à sua afirmação. Nenhuma intenção, por maior que seja a generosidade que a enforma, nenhum projecto, por mais sedutor que pareça, merece ou justifica o sacrifício dos valores da cidadania. Estes valores são um fim em si mesmos. Não são valores instrumentais, negociáveis em nome seja do que for, ou de quem for.

A Declaração Universal projecta essa afirmação com alto sentido inovador. Por um lado, toma o cidadão na sua complexidade e diversidade. Não há respeito pelos direitos do Homem que não contenha o respeito pelos direitos civis e políticos, mas também não há cidadania integral sem respeito com igual valor pelos direitos sociais, económicos e culturais.

Por outro lado, a Declaração assume a cidadania como instância autónoma universal. Não se é portador de direitos humanos por se ser cidadão de um país. Mas por essa realidade superior que é qualidade de ser humano.

Este programa de cidadania cumpriu-se?

Nestes cinquenta anos, ocorreram avanços científicos e técnicos jamais vistos. As transformações foram vertiginosas. Os abalos políticos foram imensos. As possibilidades do progresso são assim maiores que nunca. Mas os direitos humanos estão muito, muito longe de ser um património universal. Aqui e ali regrediram. Novas ameaças se perfilam, por formas que por vezes permanecem ocultas.

Todos nós conhecemos muitas mudanças de sentido positivo. As ditaduras que foram derrubadas. Os novos indicadores de esperança de vida, de saúde, de ensino. As liberdades que se afirmaram. Não há pois nenhuma opção pelo pessimismo nesta constatação de que muitos milhões e milhões de seres humanos estão hoje condenados à opressão, à exploração e à miséria mais revoltante.

Ainda há dois dias foram divulgados os impressionantes números sobre o analfabetismo no Mundo. Nós vemos por exemplo os progressos que foram feitos na afirmação e protecção dos direitos da criança. Mas depois, quantas crianças sem escola e sem saúde. Quantas crianças vítimas das minas pessoais espalhadas pelos negócios da guerra. Quantas crianças trabalhando duramente. Meninos que nunca brincaram.

Nós conhecemos os formidáveis progressos na era da informática e das telecomunicações, a INTERNET, os novos direitos, as convenções internacionais sobre toda a gama de direitos fundamentais, mas depois interrogamo-nos: como é possível tanto desemprego, tanta pobreza, tanta desesperança?

Se hoje se quiser olhar para a Declaração Universal dos Direitos do Homem para lhe dar um novo impulso tem de ser assumido, não tanto o seu património de realizações, que se louva, mas antes o enorme remorso e tristeza que vêm do muito que falta fazer, do que não foi feito, dos passos atrás que foram dados. E assumir esse remorso e tristeza com a firme determinação de irradicar as causas dessas violações do direitos do Homem. Com a determinação dos combatentes.

Os Direitos do Homem não são para ser contemplados, estão aí para serem conquistados.

Neste mundo do findar do século, onde os interesses tomaram conta dos valores, onde o sucesso a todo o custo arrasou a ética, onde a desregulação feita lei da política e da economia sacrificou a solidariedade, assumir o encargo de concretizar esta Declaração Universal dos Direitos do Homem e de a aprofundar em novas direcções é assumir o compromisso de ir contra-corrente. É ter a coragem de dizer não.

Não ao enfraquecimento do papel do Estado, como garante último da universalidade do exercício dos direitos, particularmente dos direitos sociais, e como regulador da economia.

Não, ao desaparecimento do Estado social de progresso, ou Estado-Providência, como quiserem, que é o Estado de justiça. Não, à submissão da vida política e social ao poder económico, ao poder cego dos grandes grupos e das multinacionais, actuando à escala global sem limites.

Não, à desregulação do trabalho e à desvalorização do insubstituível papel social que desempenha, e à liquidação da vida democrática dentro da empresa.

Não, à uniformização de padrões informativos e culturais feita a partir do poder dos mega-negócios das indústrias do espectáculo. Diria o poeta que florescerá nesta coragem uma nova utopia. Prosaicamente, enraizar-se-à aí, de certeza, o combate para a universalidade dos direitos humanos, uma cultura de solidariedade e progresso.

Enquanto houver seres humanos com direitos limitados e espezinhados, a nossa consciência de seres humanos solidários não terá tranquilidade, o nosso combate não esmorecerá. O nosso combate de democratas, de homens e mulheres de esquerda, de comunistas.

Esse é o nosso compromisso.

Evocamos aqui todos os seres humanos, todos os povos do mundo, em luta pelos seus direitos. Evocamos o povo de Timor-Leste, perante o qual Portugal tem particulares responsabilidades históricas e jurídicas.

Permitam-me que termine com uma história.

Faz agora 50 anos, conta-nos um velho jornal clandestino, o Camponês, que um grupo de 75 trabalhadores agrícolas de Aguiar fez uma marcha de 8 quilómetros até à sede do Concelho, onde se lhe juntaram mais 150 trabalhadores, dirigiram-se à Casa do Povo e reclamaram trabalho e pão. Esta história é simples. É uma história sem história. É uma história de "Levantados do Chão", como a que José Saramago nos conta.

Mas quanta coragem estava nesses actos simples.

Liberdade, direitos, emprego, solidariedade.

Que palavras tão belas, que programa político de tanta ambição e humanismo!

Disse.

 

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