Início arrow Documentos
Importância da Indústria no Desenvolvimento - Intervenção de José Nunes
Terça, 19 Junho 2007

Importância da Indústria no Desenvolvimento
Intervenção de José Nunes

 

No discurso de direita, já leva muitos anos a moda de desvalorizar a importância da indústria no desenvolvimento. E dizer desvalorizar é dizer pouco, na medida que é fácil encontrar formulações onde se vai ao ponto de dizer que reivindicar indústria não passa de demonstração de apego a perspectivas já obsoletas do desenvolvimento económico e social.

 

Querem convencer-nos de que a indústria teve importância estratégica mas apenas nos tempos da revolução industrial, e, em particular, em Inglaterra. Hoje, apregoam, além de mais já estamos em sociedades pós-industriais, pelo que, a levar em conta, à indústria mais não caberá do que um papel menor na panóplia das políticas e medidas que importará realizar em ordem a prosseguir o desenvolvimento. Mais, pretende-se tanto que esse papel seja visto como meramente acessório que até a palavra indústria eliminam em textos e discursos referentes a tais políticas, substituindo-a, por exemplo, pela palavra tecnologia ou dissolvendo-a na expressão tida por mais neutra de actividades económicas.

 

Não querendo maçar os presentes com citações, sempre lembramos ou observamos a quem anda distraído do que vimos denunciando que note que já nem há ministério da indústria, sequer existe uma simples direcção-geral da indústria. E não só em Portugal.

 

Ora como, por outro lado, também não é preciso ser-se especialista nas engenharias da produção de mercadorias para perceber que, se elas existem, é porque em algum sítio, por alguém, a partir de certos recursos, são fabricadas. E, sendo crescente a nível mundial a quantidade de mercadorias produzida, fácil é de intuir que a indústria é, afinal, uma actividade económica em expansão nos dias de hoje.

 

Porém, a pressão ideológica de classe sobre este tema é tão constante, intensa e multímoda, que não é difícil encontrar mesmo na esquerda quem se deixe enredar nas malhas da manobra, confundindo conceitos de fundo com análises conjunturais ou parciais, ainda que estas sejam irrepreensíveis do ponto de vista metodológico.

 

Quantos desses, embora que sem simpatia pelos arautos da nova que desvaloriza a indústria, não deixam de se interrogar:

 

- Indústria haverá, mas não é uma evidência que, pelo menos nos países economicamente mais evoluídos, a percentagem da mão-de-obra que emprega vem diminuindo e é hoje inferior ao que já foi?

 

- Não é verdade que há fábricas que laboram hoje com muito menos trabalhadores do que já albergaram no passado, e produzindo a mesma quantidade de artigos?

 

- Não é por outro lado uma evidência que actividades englobadas na categoria de serviços, como o turismo, são hoje capazes de empregar muitos milhares de trabalhadores, logo mais importantes para o bem-estar social?

 

- Não é verdade, ainda, que no plano internacional temos hoje um quadro muito mais complexo de trocas de mercadorias, em que está esbatido o paradigma simplista da metrópole simultaneamente importadora de matérias-primas e exportadora de produtos acabados? Não há quem hoje considere a China a fábrica do mundo?

 

As perguntas fazem sentido e, na verdade, tal como as coisas são apresentadas pelas forças dominantes, podem ser formuladas por qualquer de nós. Justifica-se, por isso, que nos debrucemos com maior profundidade sobre o tema.

 

                                                       ...

 

Muitas são as formas de indústria, mas pouco erraremos se dissermos que, mercê dos equipamentos, energia, organização e trabalho que nelas mobilizamos, por seu intermédio conseguimos, em contraste com a produção artesanal, produzir bens materiais em quantidade, e com qualidade e custo absolutamente imbatíveis.

 

Ou seja, antes mesmo de considerarmos a produção de objectos que só apareceram após o advento da revolução industrial - a indústria, aliás, por si própria gera a necessidade de parte importantes desses novos objectos, sob a forma de máquinas e equipamentos os mais diversos -, importa sublinhar um traço muito negligenciado nestas discussões, por óbvio que seja: a produção industrial é a forma historicamente superior da produção material, não por acaso na sequência do Renascimento.

 

Se é verdade que o fenómeno industrial ocorre em capitalismo, que de resto estimulou e fez crescer, daí a categoria do capitalismo industrial, isso não nos deve fazer esquecer que, antes de tudo, através da indústria as sociedades historicamente mais evoluídas lograram uma forma de produção para satisfazer em grande escala necessidades e desejos ancestrais do ser humano, aplicando saberes antigos mas, também, e em ritmo tendencialmente crescente, saberes novos trazidos pelo desenvolvimento científico.

 

Isto é, a indústria moderna, sendo historicamente uma expressão sócio-económica do capitalismo, é, por sua vez, uma conquista humana de enorme envergadura, porquanto, indo ao encontro da satisfação de aspirações ancestrais, ela própria se constitui como um desafio à capacidade inventiva do ser humano, à superação deste, afinal. Asserção válida tanto em relação ao domínio do conhecimento mais fundamental no terreno das ciências físicas como às aplicações das aquisições mais firmes das ciências sociais, para além do também prodigioso aperfeiçoamento no plano meramente técnico. Por isso se diz, e bem, que a história da indústria integra, também, muito da história da inovação científica e tecnológica. Inovação nos processos propriamente ditos de transformação material, mas inovação também nos artigos produzidos bem como na organização das fases de produção intermédia entre a obtenção das matérias-primas naturais e os produtos acabados integrantes de objectos, desde os simples clips aos complexos aviões.

 

Por outras palavras, se a indústria não se realiza sem meios materiais, dela pouco entende quem a reduz a simples colecções de fábricas, vistas e geridas como simples barracões alojadores de máquinas e homens onde, meramente, se transformam materiais. Ou que se não inibe, mesmo que ao abrigo de conceitos sociológicos de limitado interesse como os respeitantes às alegadas primeira, segunda e não sei quantas mais revoluções industriais, de contrapor novas tecnologias à indústria, como se esta fosse indiferente às novas tecnologias ou estas fossem sempre possíveis sem o desenvolvimento da indústria.

 

Assim sendo, como se pode aceitar a visão de que a indústria vai deixar de interessar ao desenvolvimento de sociedades mais evoluídas? Será que, por enorme, mais cómoda e eficiente que seja a produção material de hoje, já estamos a satisfazer todos os seres humanos? Será que nos podemos dar por satisfeitos com o ambiente de trabalho ou com os rendimentos de transformação de matérias-primas ou de produtos intermédios de todos os ramos industriais? Não temos, ainda, inúmeros problemas por resolver no campo dos resíduos industriais, sejam sólidos, sejam líquidos ou gasosos? Não teremos novos problemas destes quando lograrmos novas tecnologias? Não temos já hoje a exaustão de recursos, a começar pela combustíveis fósseis, a ameaçar fundamentos sobre os quais se construiu e constrói muito do mundo industrial actual?

 

Podíamos alongar o leque de interrogações, mas a ilação é inevitável. Na perspectiva do desenvolvimento, só por conveniência, ou por rotundo desconhecimento do que está em causa, se pode conceber que haja quem desvalorize a indústria.

 

Quanto à ignorância, todos sabemos como combatê-la. Estimulem-se, em particular os mais afectados, a que se interessem por penetrar na matéria, em ordem a apreender ao menos o essencial do que está em causa.

 

Quanto ao mundo dos interesses, a luta pelo esclarecimento e mobilização é o caminho.

 

Se a indústria foi, ainda é, via de afirmação do capitalismo, ela não deixou de facilitar, mormente na fase do aparecimento de grandes complexos industriais, que tendencialmente integravam muitos processos e fases de fabrico, a criação de condições para uma melhor percepção pelos trabalhadores da sua condição de classe explorada que Marx tão brilhantemente detectou e estudou.

 

A afirmação de sindicatos de classe e a luta pela emancipação social e política encontrou na concentração industrial terreno fértil. Não nos admiremos, então, com o facto de que, ainda no tempo da União Soviética, já tivessem começado as preocupações em torno desta questão por parte dos estrategos do capitalismo avançado. A decisão de quebrar a espinha ao movimento sindical, e tudo o que se lhe associava, foi bastante bem dissimulada deitando mão da promoção de novas formas de organização da produção industrial, designadamente reduzindo os grandes complexos industriais sob comando único, com o álibi de que, assim, se iria produzir mais eficientemente. De resto, o sistema capitalista dava sinais de esgotamento, pelo que encetar uma reestruturação significativa sempre alimentava a esperança no seu rejuvenescimento.

 

Assistimos, por isso, nas últimas décadas a uma profunda reestruturação industrial, não sem muitas decisões e investimentos ineficientes, mas ainda assim não impedindo a propagandeada visão de que tudo tem, globalmente, decorrido bem, porque os capitalistas, enquanto classe, melhoraram a sua situação. Só que, na verdade, isso aconteceu à custa da degradação relativa e em muitos casos absoluta da situação dos trabalhadores. Está claro que um tão complexo e demorado processo de reestruturação industrial haveria de gerar também desenvolvimentos tecnológicos realmente positivos no sentido da eficácia e eficiência industriais.

 

A nosso ver, está aqui a chave do enquadramento "teórico" para a moda da desvalorização da indústria, moda que se tornou numa ferramenta indispensável ao arsenal dos esforços que tiveram de ser desenvolvidos para minorar os estragos causados à imagem do sistema capitalista, que, de facto, para se manter, não conseguiu evitar a tomada de decisões gravosas para milhões de trabalhadores e aos olhos de milhões de pessoas.

 

Como se recordarão os mais velhos, tudo isto se acelerou com a implosão da União Soviética e o alastramento da globalização capitalista. A regressão social aí está em muitos campos e não parece indiferente a razões estruturais deste tipo.

 

Por outro lado, o desenvolvimento económico e social atingido nas últimas décadas bem como o nível da acumulação capitalista, que atingiu proporções enormes, careceu obviamente do desenvolvimento de outras actividades económicas, englobáveis nos serviços. Com esta evolução eram inevitáveis alterações profundas na composição da população activa segundo os 3 sectores clássicos da economia, mas isso não reduz a importância da indústria, só prova que, em face de actividades ditas de serviços socialmente úteis, a indústria deixa de ser a única nova actividade a suportar o desenvolvimento económico e social.

 

Actividade que, como percebemos, o capitalismo enquanto sistema continua a não dispensar, embora segundo novos figurinos em relação aos perfilhados décadas atrás.

 

Será então caso para perguntar por que entre nós, e entre nós mesmo o PS quando no Governo se esmera em tentar prolongar o capitalismo, se desconsidera tão contraditoriamente a indústria, sabido que estamos ainda longe do estádio de desenvolvimento dos países centrais do sistema?

 

Os estudiosos da questão apontam muito frequentemente como explicação para o facto motivos de ordem histórica e mesmo cultural. Na verdade, é preciso recuarmos ao maçon Marquês de Pombal para encontrarmos um Governo que, de facto, tomou um conjunto muito importante de medidas consentâneas com a relevância que à indústria convinha dar. Mas a visão da indústria, na acepção que vimos há pouco de actividade multímoda nos planos económico, técnico, científico, logo social, não fez escola no país.

E não esqueçamos a concepção anti-indústria do salazarismo, só em parte ultrapassada com algum estímulo no pós-guerra aos grupos monopolistas existentes à data do 25 de Abril.

A falta de escola sobre indústria é tal que mesmo o celebrado fomento industrial decorrente do acordo com a EFTA não escapou a iniciativas pobres do ponto de vista da produção industrial, incluindo produções à façon.

 

Fosse outro e elevado o sentido patriótico da generalidade dos Governos pós-Abril e teríamos decerto, senão ultrapassado, pelo menos corrigido em elevado grau a insuficiente e deficiente abordagem que as questões industriais têm frequentemente merecido entre nós. Diversamente, numa impressionante demonstração de apego a fórmulas de capitalismo dependente, a indústria tem sido tolerada no essencial no que e quanto os centros (sobretudo estrangeiros) de decisão capitalista aceitam ou lhes interessa que aqui exista.

 

E como se não fora toda esta leviandade já bastante, aí temos os movimentos ambientalistas internos a atacar tudo que é indústria, com boas ou menos boas razões. E fazem-no sem, na maior parte das vezes, o assumirem; pelo contrário, tais senhores até aceitariam a indústria, mas sempre com outra tecnologia, mesmo que essa outra, se existir, tenha sido realizada apenas no papel. A desfaçatez é tanta, que já se consegue mobilizar populações carentes de emprego contra a instalação por perto de novos estabelecimentos industriais.

  

O PSD, por seu lado, defender-se-á do que vimos descrevendo invocando os PEDIP, planos especiais de desenvolvimento da indústria portuguesa apoiados por Bruxelas. Mas, se nem tudo foi em vão com os PEDIP, veja também o PSD, desde logo, a que conduziu a sua estratégia de iniciar as privatizações.

 

Vamos no sexto ano de divergência com o resto da União Europeia e temos agora um Governo PS a pretender relançar a economia com o grande aeroporto na Ota, os TGV e muitas mais camas para o turismo, mesmo que esses grandes investimentos ameacem ser pouco reprodutivos ou que seja necessário mandar às urtigas muito das Rede Natura, RAN ou REN de que os nossos filhos e netos podem vir a precisar de forma imperiosa.

 

Veremos como irá o nosso país sair deste impasse. A nossa convicção é a de que, caso queiramos manter altas as expectativas do desenvolvimento económico, ambiental e social a que o povo português tem direito, importante e insubstituível papel cabe à indústria nessa direcção, na ampla acepção do conceito que vimos de expor e pelas razões aduzidas.