Importância da
Indústria no Desenvolvimento
Intervenção de José Nunes
No discurso de direita, já leva muitos anos a moda de
desvalorizar a importância da indústria no desenvolvimento. E dizer
desvalorizar é dizer pouco, na medida que é fácil encontrar formulações onde se
vai ao ponto de dizer que reivindicar indústria não passa de demonstração de
apego a perspectivas já obsoletas do desenvolvimento económico e social.
Querem convencer-nos de que a indústria teve importância estratégica mas
apenas nos tempos da revolução industrial, e, em particular, em Inglaterra.
Hoje, apregoam, além de mais já estamos em sociedades pós-industriais, pelo
que, a levar em conta, à indústria mais não caberá do que um papel menor na
panóplia das políticas e medidas que importará realizar em ordem a prosseguir o
desenvolvimento. Mais, pretende-se tanto que esse papel seja visto como
meramente acessório que até a palavra indústria eliminam em textos e discursos
referentes a tais políticas, substituindo-a, por exemplo, pela palavra tecnologia
ou dissolvendo-a na expressão tida por mais neutra de actividades económicas.
Não querendo maçar os presentes com citações, sempre lembramos ou
observamos a quem anda distraído do que vimos denunciando que note que já nem
há ministério da indústria, sequer existe uma simples direcção-geral da
indústria. E não só em Portugal.
Ora como, por outro lado, também não é preciso ser-se especialista nas
engenharias da produção de mercadorias para perceber que, se elas existem, é
porque em algum sítio, por alguém, a partir de certos recursos, são fabricadas.
E, sendo crescente a nível mundial a quantidade de mercadorias produzida, fácil
é de intuir que a indústria é, afinal, uma actividade económica em expansão nos
dias de hoje.
Porém, a pressão ideológica de classe sobre este tema é tão constante,
intensa e multímoda, que não é difícil encontrar mesmo na esquerda quem se
deixe enredar nas malhas da manobra, confundindo conceitos de fundo com
análises conjunturais ou parciais, ainda que estas sejam irrepreensíveis do
ponto de vista metodológico.
Quantos desses, embora que sem simpatia pelos arautos da nova que
desvaloriza a indústria, não deixam de se interrogar:
- Indústria haverá, mas não é uma evidência que, pelo menos nos países
economicamente mais evoluídos, a percentagem da mão-de-obra que emprega vem
diminuindo e é hoje inferior ao que já foi?
- Não é verdade que há fábricas que laboram hoje com muito menos
trabalhadores do que já albergaram no passado, e produzindo a mesma quantidade
de artigos?
- Não é por outro lado uma evidência que actividades englobadas na
categoria de serviços, como o turismo, são hoje capazes de empregar muitos
milhares de trabalhadores, logo mais importantes para o bem-estar social?
- Não é verdade, ainda, que no plano internacional temos hoje um quadro
muito mais complexo de trocas de mercadorias, em que está esbatido o paradigma
simplista da metrópole simultaneamente importadora de matérias-primas e
exportadora de produtos acabados? Não há quem hoje considere a China a fábrica
do mundo?
As perguntas fazem sentido e, na verdade, tal como as coisas são
apresentadas pelas forças dominantes, podem ser formuladas por qualquer de nós.
Justifica-se, por isso, que nos debrucemos com maior profundidade sobre o tema.
...
Muitas são as formas de indústria, mas pouco erraremos se dissermos que,
mercê dos equipamentos, energia, organização e trabalho que nelas mobilizamos,
por seu intermédio conseguimos, em contraste com a produção artesanal, produzir
bens materiais em quantidade, e com qualidade e custo absolutamente imbatíveis.
Ou seja, antes mesmo de considerarmos a produção de objectos que só
apareceram após o advento da revolução industrial - a indústria, aliás, por si
própria gera a necessidade de parte importantes desses novos objectos, sob a
forma de máquinas e equipamentos os mais diversos -, importa sublinhar um traço
muito negligenciado nestas discussões, por óbvio que seja: a produção
industrial é a forma historicamente superior da produção material, não por
acaso na sequência do Renascimento.
Se é verdade que o fenómeno industrial ocorre em capitalismo, que de resto
estimulou e fez crescer, daí a categoria do capitalismo industrial, isso não
nos deve fazer esquecer que, antes de tudo, através da indústria as sociedades
historicamente mais evoluídas lograram uma forma de produção para satisfazer em
grande escala necessidades e desejos ancestrais do ser humano, aplicando
saberes antigos mas, também, e em ritmo tendencialmente crescente, saberes
novos trazidos pelo desenvolvimento científico.
Isto é, a indústria moderna, sendo historicamente uma expressão
sócio-económica do capitalismo, é, por sua vez, uma conquista humana de enorme
envergadura, porquanto, indo ao encontro da satisfação de aspirações
ancestrais, ela própria se constitui como um desafio à capacidade inventiva do
ser humano, à superação deste, afinal. Asserção válida tanto em relação ao
domínio do conhecimento mais fundamental no terreno das ciências físicas como
às aplicações das aquisições mais firmes das ciências sociais, para além do
também prodigioso aperfeiçoamento no plano meramente técnico. Por isso se diz,
e bem, que a história da indústria integra, também, muito da história da
inovação científica e tecnológica. Inovação nos processos propriamente ditos de
transformação material, mas inovação também nos artigos produzidos bem como na
organização das fases de produção intermédia entre a obtenção das
matérias-primas naturais e os produtos acabados integrantes de objectos, desde
os simples clips aos complexos aviões.
Por outras palavras, se a indústria não se realiza sem meios materiais,
dela pouco entende quem a reduz a simples colecções de fábricas, vistas e
geridas como simples barracões alojadores de máquinas e homens onde, meramente,
se transformam materiais. Ou que se não inibe, mesmo que ao abrigo de conceitos
sociológicos de limitado interesse como os respeitantes às alegadas primeira,
segunda e não sei quantas mais revoluções industriais, de contrapor novas tecnologias
à indústria, como se esta fosse indiferente às novas tecnologias ou estas
fossem sempre possíveis sem o desenvolvimento da indústria.
Assim sendo, como se pode aceitar a visão de que a indústria vai deixar de
interessar ao desenvolvimento de sociedades mais evoluídas? Será que, por
enorme, mais cómoda e eficiente que seja a produção material de hoje, já
estamos a satisfazer todos os seres humanos? Será que nos podemos dar por
satisfeitos com o ambiente de trabalho ou com os rendimentos de transformação
de matérias-primas ou de produtos intermédios de todos os ramos industriais?
Não temos, ainda, inúmeros problemas por resolver no campo dos resíduos
industriais, sejam sólidos, sejam líquidos ou gasosos? Não teremos novos
problemas destes quando lograrmos novas tecnologias? Não temos já hoje a
exaustão de recursos, a começar pela combustíveis fósseis, a ameaçar
fundamentos sobre os quais se construiu e constrói muito do mundo industrial
actual?
Podíamos alongar o leque de interrogações, mas a ilação é inevitável. Na
perspectiva do desenvolvimento, só por conveniência, ou por rotundo
desconhecimento do que está em causa, se pode conceber que haja quem
desvalorize a indústria.
Quanto à ignorância, todos sabemos como combatê-la. Estimulem-se, em
particular os mais afectados, a que se interessem por penetrar na matéria, em
ordem a apreender ao menos o essencial do que está em causa.
Quanto ao mundo dos interesses, a luta pelo esclarecimento e mobilização é
o caminho.
Se a indústria foi, ainda é, via de afirmação do capitalismo, ela não
deixou de facilitar, mormente na fase do aparecimento de grandes complexos
industriais, que tendencialmente integravam muitos processos e fases de
fabrico, a criação de condições para uma melhor percepção pelos trabalhadores
da sua condição de classe explorada que Marx tão brilhantemente detectou e
estudou.
A afirmação de sindicatos de classe e a luta pela emancipação social e
política encontrou na concentração industrial terreno fértil. Não nos
admiremos, então, com o facto de que, ainda no tempo da União Soviética, já
tivessem começado as preocupações em torno desta questão por parte dos
estrategos do capitalismo avançado. A decisão de quebrar a espinha ao movimento
sindical, e tudo o que se lhe associava, foi bastante bem dissimulada deitando
mão da promoção de novas formas de organização da produção industrial,
designadamente reduzindo os grandes complexos industriais sob comando único,
com o álibi de que, assim, se iria produzir mais eficientemente. De resto, o
sistema capitalista dava sinais de esgotamento, pelo que encetar uma
reestruturação significativa sempre alimentava a esperança no seu
rejuvenescimento.
Assistimos, por isso, nas últimas décadas a uma profunda reestruturação
industrial, não sem muitas decisões e investimentos ineficientes, mas ainda
assim não impedindo a propagandeada visão de que tudo tem, globalmente,
decorrido bem, porque os capitalistas, enquanto classe, melhoraram a sua
situação. Só que, na verdade, isso aconteceu à custa da degradação relativa e
em muitos casos absoluta da situação dos trabalhadores. Está claro que um tão
complexo e demorado processo de reestruturação industrial haveria de gerar
também desenvolvimentos tecnológicos realmente positivos no sentido da eficácia
e eficiência industriais.
A nosso ver, está aqui a chave do enquadramento "teórico" para a moda da
desvalorização da indústria, moda que se tornou numa ferramenta indispensável
ao arsenal dos esforços que tiveram de ser desenvolvidos para minorar os
estragos causados à imagem do sistema capitalista, que, de facto, para se
manter, não conseguiu evitar a tomada de decisões gravosas para milhões de
trabalhadores e aos olhos de milhões de pessoas.
Como se recordarão os mais velhos, tudo isto se acelerou com a implosão da
União Soviética e o alastramento da globalização capitalista. A regressão
social aí está em muitos campos e não parece indiferente a razões estruturais
deste tipo.
Por outro lado, o desenvolvimento económico e social atingido nas últimas
décadas bem como o nível da acumulação capitalista, que atingiu proporções
enormes, careceu obviamente do desenvolvimento de outras actividades
económicas, englobáveis nos serviços. Com esta evolução eram inevitáveis
alterações profundas na composição da população activa segundo os 3 sectores
clássicos da economia, mas isso não reduz a importância da indústria, só prova
que, em face de actividades ditas de serviços socialmente úteis, a indústria
deixa de ser a única nova actividade a suportar o desenvolvimento económico e
social.
Actividade que, como percebemos, o capitalismo enquanto sistema continua a
não dispensar, embora segundo novos figurinos em relação aos perfilhados
décadas atrás.
Será então caso para perguntar por que entre nós, e entre nós mesmo o PS
quando no Governo se esmera em tentar prolongar o capitalismo, se desconsidera
tão contraditoriamente a indústria, sabido que estamos ainda longe do estádio
de desenvolvimento dos países centrais do sistema?
Os estudiosos da questão apontam muito frequentemente como explicação para
o facto motivos de ordem histórica e mesmo cultural. Na verdade, é preciso
recuarmos ao maçon Marquês de Pombal para encontrarmos um Governo que,
de facto, tomou um conjunto muito importante de medidas consentâneas com a
relevância que à indústria convinha dar. Mas a visão da indústria, na acepção
que vimos há pouco de actividade multímoda nos planos económico, técnico,
científico, logo social, não fez escola no país.
E não esqueçamos a concepção anti-indústria do
salazarismo, só em parte ultrapassada com algum estímulo no pós-guerra aos
grupos monopolistas existentes à data do 25 de Abril.
A falta de escola sobre indústria é tal que mesmo o
celebrado fomento industrial decorrente do acordo com a EFTA não escapou a
iniciativas pobres do ponto de vista da produção industrial, incluindo
produções à façon.
Fosse outro e elevado o sentido patriótico da generalidade
dos Governos pós-Abril e teríamos decerto, senão ultrapassado, pelo menos
corrigido em elevado grau a insuficiente e deficiente abordagem que as questões
industriais têm frequentemente merecido entre nós. Diversamente, numa
impressionante demonstração de apego a fórmulas de capitalismo dependente, a
indústria tem sido tolerada no essencial no que e quanto os centros (sobretudo
estrangeiros) de decisão capitalista aceitam ou lhes interessa que aqui exista.
E como se não fora toda esta leviandade já bastante, aí temos os movimentos
ambientalistas internos a atacar tudo que é indústria, com boas ou menos boas
razões. E fazem-no sem, na maior parte das vezes, o assumirem; pelo contrário,
tais senhores até aceitariam a indústria, mas sempre com outra tecnologia,
mesmo que essa outra, se existir, tenha sido realizada apenas no papel. A
desfaçatez é tanta, que já se consegue mobilizar populações carentes de emprego
contra a instalação por perto de novos estabelecimentos industriais.
O PSD, por seu lado, defender-se-á do que vimos descrevendo invocando os
PEDIP, planos especiais de desenvolvimento da indústria portuguesa apoiados por
Bruxelas. Mas, se nem tudo foi em vão com os PEDIP, veja também o PSD, desde
logo, a que conduziu a sua estratégia de iniciar as privatizações.
Vamos no sexto ano de divergência com o resto da União Europeia e temos
agora um Governo PS a pretender relançar a economia com o grande aeroporto na
Ota, os TGV e muitas mais camas para o turismo, mesmo que esses grandes
investimentos ameacem ser pouco reprodutivos ou que seja necessário mandar às
urtigas muito das Rede Natura, RAN ou REN de que os nossos filhos e netos podem
vir a precisar de forma imperiosa.
Veremos como irá o nosso país sair deste impasse. A nossa
convicção é a de que, caso queiramos manter altas as expectativas do
desenvolvimento económico, ambiental e social a que o povo português tem
direito, importante e insubstituível papel cabe à indústria nessa direcção, na
ampla acepção do conceito que vimos de expor e pelas razões aduzidas.
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