Início arrow Documentos
Balanço da acção governativa na área da C&T
Terça, 15 Maio 2007


Documento apresentado no Encontro
«Por uma Política de Ciência e Tecnologia ao serviço do povo e do País» 


Na área das actividades de Ciência e Tecnologia em Portugal, como em diversas outras áreas — saúde, educação, segurança das populações, defesa do meio ambiente, entre outras — aprofunda-se hoje a disparidade entre uma imagem, artificial e falsa, da situação que se vive no País, em que se verificaria uma pretensa evolução positiva atribuída a “corajosas reformas” do governo, e a que é a situação real dos trabalhadores e do povo: crescente desemprego e precariedade do emprego; progressiva degradação do serviço público, com encerramentos e entrega ao sector privado de serviços fundamentais, que, a todos afectando, afectam em especial as regiões interiores mais deprimidas e a população não activa — crianças, jovens que não atingiram ainda a idade mínima legal para trabalhar, população idosa. Ao mesmo tempo assiste-se na Bolsa ao espectáculo da economia de casino que não gera riqueza, enquanto o grande capital que comanda a banca, os seguros e outros sectores altamente lucrativos, não mostra apetência para o investimento produtivo de que o país precisa e prossegue uma obscena acumulação de lucros.

O governo e a corte que gira à sua volta, são exímios na propaganda de imaginários feitos, no discurso publicitário e demagógico que uma comunicação social convenientemente controlada, constantemente ecoa ainda que com fífias ocasionais.

Perante esta situação, cresce a indignação e a revolta cívica de muitos mas também o desencanto e o sentimento de impotência. Importa — é fundamental — desmontar a máquina de propaganda do governo, atribuir correctamente responsabilidades e pôr a nu os mecanismos montados pelo grande capital para extorquir a riqueza criada no país e alcançar uma cada vez maior desigualdade na distribuição dessa riqueza.

Esta “democracia” que se diz ser “o governo do povo pelo povo e para o povo” é na verdade, no quadro do neoliberalismo dominante, “o governo do povo pelo mercado e para o mercado”. Assim é também no que à ciência e à tecnologia diz respeito, em geral e, em particular, no quadro da União Europeia.

 

Recursos humanos e emprego científico



A qualificação dos recursos humanos que, em si mesmo, constituem a maior riqueza do País, depende da existência de um sistema educativo eficaz e abrangente que contrarie as elevadíssimas taxas de insucesso escolar dos jovens quer no percurso correspondente à escolaridade obrigatória quer, para além dele, no ensino secundário e no ensino superior. Depende também da existência de condições que tornem possível aos trabalhadores no activo melhorar a sua formação geral, aperfeiçoar ou adquirir novas competências profissionais, sem pôr em causa a segurança do emprego ou os rendimentos auferidos.
Sem uma política sustentada que vise estes resultados será impossível reverter a progressiva divergência dos principais indicadores económicos e sociais do País que se vem verificando em relação à média europeia.
Com efeito, o baixo nível de escolaridade da população empregada portuguesa constitui uma das causas mais importantes do atraso do País e será muito difícil, para não dizer mesmo impossível, aproximarmo-nos dos países mais desenvolvidos da União Europeia sem antes resolver este grave problema nacional. Cerca de ¾ da população empregada portuguesa não possui mais do que o ensino básico e muitas vezes nem isso, ao passo que na UE, já em 2002, em média, apenas cerca de 1/3 da força de trabalho se encontrava em igual situação. No mesmo ano, a população empregada em Portugal com o ensino secundário, representava apenas 14,6% da população total empregada, quando a média na União Europeia era de 42,9% (2,9 vezes mais do que em Portugal), e a que possuía o ensino superior era somente 12,4% da população empregada quando a média na União Europeia era, já em 2002, de 21,8% (1,7 vezes mais).

A fracção da população activa portuguesa empregada em actividades consideradas pelo sistema estatístico nacional como sendo actividades de I&D, de acordo com os dados do último inquérito publicado (referente à situação em 31 de Dezembro de 2003), era 4,7 por 1000 contra 9,7 por mil na UE a 25. O défice actual dos efectivos nesta área da I&D, reportado à média europeia, atinge 27 500 (em ETI), dos quais, cerca de 10 000 investigadores e 17 500 técnicos de apoio á investigação. Convém lembrar que se trata de trabalhadores cuja actividade depende da existência de meios de trabalho especializados — instalações e equipamentos — e, obviamente, de uma formação técnica e científica adequada.

A parte principal dos recursos humanos, materiais e financeiros do sistema C&T nacional deveria encontrar-se no sector produtivo, à semelhança do que acontece em todos os países desenvolvidos e ao contrário do que sistematicamente se vem verificando em Portugal onde o sector dito das empresas ocupa uma fracção muito minoritária dos efectivos existentes.

Importa aqui dizer que alterar esta situação não cabe ao próprio sector da I&D nem pode ser levada a cabo por ele. De facto quer a justificação quer a eficácia de medidas destinadas a mudar a situação do nosso sistema nacional de I&D e fortalecer a infra estrutura técnico-científica do País, estão estreitamente dependentes das perspectivas do desenvolvimento económico e social do País, em geral, e, em particular, do aparelho produtivo.

Sem aparelho produtivo não é possível construir em bases sólidas, expandir e consolidar, um aparelho científico e técnico, promover uma afectação significativa de recursos às actividades de I&D e criar condições favoráveis à motivação desse sector. Entretanto, décadas de políticas de direita, têm levado ao desmantelamento progressivo do sistema produtivo nacional, com o desaparecimento quase completo de sectores inteiros, como a construção naval, a metalomecânica, a siderurgia, e as indústrias de defesa. Neste processo desapareceram também infra-estruturas técnico-científicas em empresas nacionais que inclusivamente desenvolviam actividades de I&D como acontecia na antiga CUF, ainda antes do 25 de Abril.

A ideia falsa de que a actividade industrial é algo de ultrapassado, a recusa da indústria como actividade nociva para o meio ambiente e a baixa consideração social pelas profissões ligadas à produção material, são atitudes e conceitos que dificultam o arranque da nossa sociedade para níveis mais altos de desenvolvimento e de criação de riqueza.

Para além das actividades de I&D há um conjunto vasto de outras actividades científicas e técnicas sem carácter necessariamente inovatório mas que são indispensáveis ao bom funcionamento da sociedade, ao aumento da produtividade na criação de riqueza e à melhoria das condições de vida da população. Em Portugal, as necessidades correspondentes estão longe de estar devidamente cobertas, sabendo-se, por comparação com o que se passa em outros países, que o défice do investimento e dos recursos humanos indispensáveis à manutenção e desenvolvimento dessas actividades, é ainda mais sério do que aquele que respeita ao sector da I&D. Trata-se nomeadamente de actividades desenvolvidas por entidades de cuja capacidade técnica e eficaz funcionamento depende a efectiva minimização e prevenção de riscos públicos de vária natureza, instituições com funções não só operacionais como também de regulação e vigilância em vários domínios (saúde pública, saúde animal, protecção de culturas, prospecção de recursos naturais, observações meteorológicas, hidrológicas e oceanográficas de rotina; normalização e controlo de qualidade, ensaio de materiais, controlo da qualidade do ar e da água; estudos de viabilidade de projectos de engenharia, etc).

A acção governativa no campo dos recursos humanos para as actividades de I&D e outras actividades científicas e técnicas

Esboçado acima um retrato, ainda que grosseiro, das necessidades do País no campo dos recursos humanos para as actividades de I&D e outras actividades científicas e técnicas, é altura de examinar a prática do Governo à luz dessas necessidades e no contexto das medidas propostas, primeiro, no programa eleitoral do PS (Fevereiro de 2005): depois, usando exactamente as mesmas palavras, no programa do 17.º Governo constitucional (22 de Março de 2005); e, por fim, repetidas tal qual no chamado Plano Tecnológico apresentado ao País em Novembro de 2005:

• Fazer crescer em 50% os recursos humanos em I&D e a produção científica referenciada internacionalmente. Fazer crescer para 1500 por ano o número de doutoramentos em Portugal e no estrangeiro;
• Estimular o emprego científico no sector público e privado. O Estado promoverá a criação e o preenchimento progressivo, de forma competitiva, de 1000 lugares adicionais para I&D, por contrapartida da extinção do número necessário de lugares menos qualificados noutros sectores da Administração;

Note-se que estas medidas ora são apresentadas como metas de legislatura (2005-2009) (Programa de Governo) ora como metas para 2010 (Plano Tecnológico).

O aumento do número de doutores aparece como uma obsessão do Ministro Gago: é para ele como que o alfa e o ómega do progresso do SCT nacional. Esquece-se todavia da necessidade de criar as condições de emprego e de trabalho indispensáveis para que os novos doutores se fixem no SCT nacional, no sector produtivo e nos serviços, e possam dar ao País uma contribuição correspondente à formação que receberam. De resto, não parece motivo para especial orgulho do Ministro, mesmo esquecendo tudo o mais, salientar o crescimento do número de doutoramentos reconhecidos (“de cerca de 1180 em 2005 para mais de 1250 em 2006”, mais de, é o sinal da veia publicitária que o Ministro vem revelando). Com efeito a taxa de crescimento correspondente é de 5,9%, valor que se situa na região média dos valores das taxas de crescimento anuais do número de doutoramentos reconhecidos, registadas na última meia dúzia de anos (o valor mais alto dos últimos seis anos foi de 8,6% entre 2002 e 2001). De resto, a meta de legislatura fixada em 1500 por ano corresponderá, se for alcançada, a um crescimento médio de cerca de 4,7% ao ano entre 2006 e 2010. Se assim vier a ser, teremos em 2010 perto de mais 7000 doutorados do que em 2006. Entretanto, também como meta para 2010, o Governo, magnânimo, oferece aos doutorados à procura de emprego a possibilidade de se candidatarem a ocupar, em regime de contrato individual de trabalho, um dos 1000 lugares que no Plano Tecnológico são anunciados nos termos já referidos acima. O pormenor da contrapartida da extinção do número necessário de lugares menos qualificados noutros sectores da Administração não será com certeza problema para os mentores do famigerado PRACE, instrumento fundamental da ofensiva dirigida contra o emprego público.

Entretanto continua a subsistir a dúvida acerca do entendimento que têm o Ministro da Ciência e o Governo a que pertence, sobre o papel dos técnicos de apoio à investigação, no processo de desenvolvimento do SCT nacional e no funcionamento dos centros e das equipas de investigação, sem esquecer as infra-estruturas técnicas e oficinais. Nada é dito nem deixado implícito quanto ao imprescindível recrutamento e formação em exercício de um numeroso contingente de pessoal técnico, sem o que uma efectiva mudança do nível de desempenho do sistema é impossível. O défice de pessoal técnico de que sofre o SCT nacional é largamente superior ao de pessoal investigador e vem-se agravando em termos relativos e em termos absolutos à medida que cresce o número de doutores. No sector do ensino superior, nomeadamente, havia em 2003 um técnico para 9 investigadores quando na média da UE-25 o mesmo rácio era de um para 2.
Importa dizer que no sector do ensino superior incluindo os laboratórios associados, e tendo em conta a dimensão da população activa portuguesa, há já, em termos relativos, um superavit de doutorados; eles faltam nos laboratórios públicos e faltam sobretudo muito mais no sector das empresas. É de todo improvável que as empresas venham a absorver, tenham capacidade para dar, e interesse em dar, trabalho qualificado, às fornadas de novos doutores a surgir ao ritmo de mais de 1000 por ano de que se orgulha o Ministro da Ciência.
Pode ainda perguntar-se qual a disponibilidade do Governo para assegurar o reforço dos meios materiais, de equipamento e outros, necessários ao desenvolvimento da actividade dos jovens investigadores que vão entrando no sistema, em particular dos contemplados no programa de recrutamento dos 1000 doutorados referidos acima, que correm o risco de se ver integrados em instituições financeiramente muito depauperadas. Neste contexto, é bom lembrar, tomando o valor médio da despesa per capita de investigador, na UE a 25, que um acréscimo de 1000 investigadores deveria corresponder a um aumento de despesa de 200 milhões de euros por ano.

Em lugar de promover uma política verdadeiramente autista de crescimento de um exército de doutores que, sem ter em conta a situação e as necessidades reais do País, atira milhares de jovens qualificados para situações de emprego precário e para o desemprego, o Ministro deveria preocupar-se seriamente com a implementação de medidas conducentes à estabilidade do emprego e à melhoria das condições de trabalho dos jovens investigadores e daqueles que por todo o País trabalham como bolseiros, em regime de avença ou a recibos verdes, sem os direitos e regalias sociais devidos a qualquer trabalhador, em muitos casos assegurando necessidades permanentes dos serviços onde trabalham.

A promessa, aliás de improvável cumprimento, de “fazer crescer em 50% os recursos humanos em I&D e a produção científica referenciada internacionalmente” até 2010, corresponderia a fazer entrar no sistema nesse intervalo mais de 20 mil pessoas já que em 2003 os dados oficiais contabilizavam cerca de 44 mil activos (25 500 em ETI) no conjunto do nosso sistema C&T. Esta meta, de todo irrealista tendo em conta que o grosso desse aumento deveria ser absorvido pelo sector produtivo o qual em 2003 empregava menos de 10 000 pessoas em actividades de I&D, deixaria o País, apesar disso, ainda a uma distância considerável da média da UE-25 que só seria atingida com um segundo aumento adicional de cerca de mais 60% de efectivos!

A referência ao crescimento da produção científica também merece um comentário. De acordo com o Ministro teria havido um crescimento de 15% da produção científica portuguesa entre 2005 e 2006, o que é apresentado como uma vitória ligada à “concretização do Compromisso com a Ciência apresentado pelo Governo em Março de 2006” (!) e confirmação de que “a prioridade dada ao rápido desenvolvimento científico e tecnológico do País” foi acompanhada de “uma forte mobilização da comunidade científica nacional, com resultados visíveis”.
Entretanto, as estatísticas oficiais mostram que a produção científica, medida em termos do número de publicações referenciadas internacionalmente, vem crescendo regularmente de há muitos anos a esta parte. Por exemplo entre 1994 e 1995 cresceu 17,6%. De 2000 a 2005 cresceu à taxa média anual de cerca de 6%. Os números de 2006 ainda não são conhecidos.

Por outro lado importa assinalar que esta é uma forma de medir a peso a produção científica nacional pois não consta que haja qualquer espécie de política científica própria mas antes e unicamente, a que decorrerá dos conselhos da coorte de peritos estrangeiros que são o aconchego do Ministro, sem esquecer que desses conselhos, ele apenas retira os que mais lhe convêm. Finalmente, a percentagem de publicações em co-autoria com instituições de outros países tem se mantido sensivelmente ao mesmo nível (entre 40 e 50%) nos último seis anos.

A situação no Ensino superior



A apreciação da situação da investigação científica e do desenvolvimento experimental no ensino superior não é separável da situação do ensino aí ministrado e que atravessa uma profunda transformação, conduzida a pretexto do processo de Bolonha. A generalização de percursos escolares de três anos para a licenciatura e de cinco anos para o mestrado, fixa patamares de competência nitidamente inferiores para tais graus, com consequente desvalorização dos projectos e estágios curriculares e das dissertações, no plano da aprendizagem pela investigação, com prejuízo para a formação dos alunos e para a realização de investigação pelos estabelecimentos de ensino. Caberá aos programas de doutoramento — cuja acreditação passará a ser exclusivo das maiores unidades de ensino—investigação — promover trabalho de investigação “internacionalmente referenciada”, o que, sendo bom em si mesmo, tenderá a excluir domínios fora das tendências dominantes no plano internacional, domínios emergentes ou ainda domínios voltados para problemáticas nacionais. As anunciadas “Escolas de pós-graduação” associando Universidades e Instituições de I&D, reforçadas por “parcerias internacionais lançadas pelo governo”, dão o tom do rumo que este pretende impor ao ensino superior.
De notar que, actualmente, para uma população escolar total de quase 400 mil alunos no ensino superior, o número anual de doutoramentos atinge já cerca de 1200 (em 2005/06).

O processo de Bolonha e a redução drástica do financiamento das instituições de ensino superior (a pretexto do Pacto de Estabilidade e Crescimento ou do declínio do afluxo de jovens que queiram ou consigam aceder ao ensino superior, não obstante o acentuado défice de ensino superior na qualificação da população Portuguesa) está já a ter como consequência a acelerada redução de actividades, a extinção de unidades, a fusão de outras, no interior ou entre instituições. É um processo de concentração de que sobrevirão algumas poucas instituições, territorial e economicamente mais distanciadas das populações - como um país centrado nas suas áreas metropolitanas e nas suas elites cosmopolitas.

A estrutura de financiamento das universidades e demais instituições é um perverso instrumento de manipulação política e de prestidigitação orçamental. A separação entre financiamento para o funcionamento de base, calculado sobre a actividade de ensino, acrescido de receitas próprias oriundas da cobrança de propinas, por um lado, e por outro, o financiamento para a actividade científica, em base programática e/ou concorrencial, configura uma situação de dependência interna face a factores externamente determinados, o que é gravoso para a governabilidade das instituições. Excelentes unidades de ensino poderão sucumbir por falta de captação de fundos para actividade científica tal como excelentes unidades de investigação poderão sucumbir por falta de atribuição de fundos para o ensino. Não obstante a lei da autonomia universitária (alicerçada na Constituição da República), as universidades não podem de facto exercer nem autonomia científica nem pedagógica nem administrativo-financeira.

A investigação científica universitária está a ser acantonada em Laboratórios Associados que, suportados nas infra-estruturas básicas e no corpo docente—investigador das maiores universidades, vão subtraindo recursos e espaço de intervenção aos Centros de investigação e aos Laboratórios do Estado, e às próprias Universidades, para constituírem as estruturas principais das actividades de I&D, estreitamente dirigidas pelo próprio governo. Esta é uma orientação fundamental da política governamental, iniciada em 1999, que, depois de um interregno de cinco anos, é agora plenamente assumida, com a criação de mais quatro Laboratórios Associados, no total de 25, e o correspondente reforço de meios e protagonismo.

Esta orientação encontra-se reafirmada no anunciado ciclo de avaliação de todas as unidades de I&D, a realizar em 2007, orientado para o reforço e a selectividade dos apoios. A redução do número de unidades de I&D é um objectivo explicitamente assumido. Deixarão de ser financiadas pela FCT as unidades cuja classificação final seja apenas suficiente, e serão concentrados os apoios nas instituições melhor avaliadas, acentuando-se a diferenciação positiva das mais bem classificadas, promovendo-se o reforço de massas críticas em redes e consórcios de investigação com direcção e acompanhamento científico integrados. A dúvida não está tanto no enunciado dos objectivos, que corresponde à continuidade da política anterior, mas no pretexto que ela oferece ao prosseguimento de iniciativas discriminatórias, de redução global de meios efectivamente disponibilizados, de precarização do vínculo de um número crescente de investigadores, e de instabilidade das equipas e das linhas de trabalho.

Essa política é reforçada pela canalização do grosso do financiamento público da I&D directamente pela FCT, seja através de concursos de financiamento de projectos, seja através da atribuição de bolsas (sobretudo de doutoramento e pós-doutoramento). Muitos destes recursos serão destinados e acolhidos em contexto universitário, e sobretudo em Laboratórios Associados, que serão eles próprios alvo de contratos programáticos mais longos e mais abrangentes.

O número de bolseiros de investigação financiados directamente pela FCT aumentou de 5000 em 2005 para mais de 5800 em 2006; a estes há que adicionar mais alguns milhares, financiados indirectamente, através dos projectos de investigação e contratos-programa. Foi agora anunciado o lançamento em Abril de concursos públicos internacionais para a contratação de 1000 novos doutorados em regime de contrato individual de trabalho (alegadamente para promover o emprego científico, combater a endogamia e reforçar as instituições científicas).
Em 2005, as candidaturas apresentadas ao programa da FCT para projectos de investigação atingiram 4800 projectos e o montante de 600 M€ (todos os domínios do conhecimento), o que representa um aumento de 50% em volume face ao concurso anterior (2002). Todavia as taxas de sucesso para financiamento são muito baixas (só excepcionalmente se aproximando de 50%). Este quadro indica, por um lado, a ausência de fontes de financiamento alternativas (públicas/privadas, nacionais/internacionais), e, por outro, o muito baixo nível de financiamento nacional face à diversidade de problemáticas e à dimensão da comunidade científica em Portugal. As universidades também por aqui se encontram asfixiadas e submetidas ao arbítrio das opções governamentais.

Entretanto, e traduzindo de diferente forma essa orientação centralizadora e esse arbítrio, o governo tomou a iniciativa de promover parcerias científicas internacionais, não apoiando parcerias e programas de cooperação entre instituições científicas propostas por estas, mas antes assumindo directamente ele próprio (iluminada, centralista e discriminatoriamente) parcerias com instituições estrangeiras, a que depois as instituições nacionais (algumas) deverão dar suporte e execução. Assim o MCTES estabeleceu em 2006 compromissos directos com o MIT, a Universidade de Carnegie Mellon e a Universidade do Texas em Austin, e prosseguirá em 2007 firmando acordos com a Universidade de Harvard e a Fraunhofer Gesellshaft alemã, sobre temáticas e com finalidades que ele entende, com as equipas que escolhe, e com os meios financeiros que decide atribuir. De notar a absurda assimetria entre partes contratantes e de repartição de benefícios esperados. Nesta linha de internacionalização, o Instituto Internacional Ibérico de Nanotecnologia, criado por tratado entre Portugal e Espanha no final do ano passado, e que deverá estar instalado em Braga em 2008, surge como “uma das mais ambiciosas iniciativas científicas actuais”, e a “primeira organização internacional de investigação instalada na Península Ibérica” e seria exemplo da anunciada “atracção para Portugal de grupos científicos”, portanto com pretensão a ser um pólo do centro do mundo. O Pacto de Estabilidade e Crescimento neste caso não é evocado. Também este “regime” terá a sua obra emblemática.

Entretanto o divórcio entre os sectores empresariais e as instituições de I&D e a participação privada no financiamento da I&D nacional, que deveriam ser preocupação central da política do governo, merece uma atenção pouco mais que simbólica (“CiênciaValor”) sendo efectivamente negligenciado.
A este propósito refere-se o número indicado pelo Ministério relativo ao recente acordo de associação de sete grandes empresas ligadas ao sector energético, no âmbito do acordo de associação ao Programa MIT-Portugal. De acordo com a notícia, as empresas comprometem-se a que as suas despesas internas em I&D aumentem 50% no período 2007-2011. Recorde-se que os últimos dados oficiais conhecidos sobre o esforço de I&D do sector das empresas apontam para 0,24% do PIB e recorde-se também que a meta da União Europeia para o sector das empresas é de 2%.

O ataque aos laboratórios do Estado




Em Portugal como na generalidade dos países, nomeadamente, nos países membros da UE e da OCDE, o Estado reconhece a importância de dispor de um aparelho técnico-científico próprio constituído por uma rede de laboratórios públicos que mantém e financia.
O 17º Governo constitucional, caracteriza a natureza e missão desses laboratórios públicos nos seguintes termos (Resolução do Conselho de Ministros nº 198/2005, de 28 de Dezembro):

Os laboratórios do Estado são instituições públicas de investigação, criadas e mantidas com o propósito explícito de contribuir, através de actividades de investigação científica e desenvolvimento tecnológico, para a formulação e implementação de políticas públicas, podendo ainda desenvolver actividades relacionadas com o seu objecto, como a prestação de serviços, o apoio ao sector privado e às empresas em particular, a realização de peritagens, procedimentos de normalização, certificação e regulamentação e outras.

Ao longo dos últimos 10 anos os laboratórios do Estado têm sido objecto de sucessivos processos de avaliação, no essencial por determinação do actual Ministro da Ciência, desde que, em 1995, assumiu pela primeira vez responsabilidades de tutela ou co-tutela dos vários laboratórios.
O exame mais aprofundado ocorreu entre meados de 1996 e Janeiro de 1997 e foi coordenado por um Comité Internacional de Aconselhamento, de nomeação ministerial. Do Relatório então produzido destacam-se os seguintes aspectos que importa aqui referir:

•    no que respeita à importância dos Laboratórios públicos de investigação, considera-se que, para qualquer país, eles constituem um recurso essencial e frequentemente subvalorizado;
•    a sua diversidade é proveniente sobretudo da multiplicidade de áreas científicas e tecnológicas e dos sectores sociais e económicos com os quais se relacionam;
•    no que respeita ao papel das sinergias: o sector público de investigação “só pode ser realmente compreendido em relação com os outros componentes do sistema de investigação (estabelecimentos de ensino superior e indústria), funcionando neste sistema como um elo, um intermediário, entre a área da ciência e do conhecimento, a área social e económica, a definição de políticas e uma área regulamentar”;
•    no que respeita ao papel do Governo sublinha-se que a responsabilidade prioritária deste perante estas instituições de investigação públicas é “uma definição clara das suas missões e das orientações principais para as suas actividades”.

O reforço e rejuvenescimento dos recursos humanos; a afectação de meios financeiros adequados; a modernização da gestão com reforço da autonomia, são as principais recomendações de âmbito genérico feitas, há 10 anos, pelos avaliadores.
O parecer reflecte a importância da integração da ciência e da técnica no tecido económico e social, conceito de validade geral embora aqui se deva entender a sua motivação no contexto do sistema capitalista e ao serviço dos seus valores.
Avaliações ou reavaliações posteriores do sistema dos LEs, não se afastaram no essencial das recomendações já referidas, verificando-se que até ao presente, mau grado a geral concordância manifestada pelo poder político, não só não tiveram o seguimento esperado como pelo contrário se acentuou o processo de degradação dos laboratórios que a avaliação de 1996-97 já assinalava. Nunca ao longo destes 10 anos foram examinados no terreno e com os agentes directamente envolvidos, os problemas a resolver e a forma de os resolver, de acordo com a experiência e a diversidade das situações. No estilo característico que marca a acção política entre nós de sucessivos governos e equipas governativas, assistiu-se sim, nos anos seguintes, à apresentação sucessiva de resoluções formais emanadas do Conselho de Ministros e a medidas legislativas, pretensamente reformadoras, sempre justificadas com o nobre intuito de “reformar” o sistema dos laboratórios do Estado no sentido de o transformar num instrumento eficaz ao serviço do progresso do País. Raramente acolhidas como sinal de esperança, as medidas instituídas antes foram, por regra, recebidas com surpresa, receio e indignação no seio dos laboratórios. Sucessivas tomadas de posição dos órgãos representativos dos trabalhadores, designadamente dos investigadores, através dos Conselhos Científicos dos laboratórios, são prova do que se disse.

A «reforma» em curso dos laboratórios




O 17º Governo Constitucional, de novo com Mariano Gago no pelouro da Ciência, mais uma vez apoiado no parecer de um grupo de assessores estrangeiros, por sinal encabeçado pela mesma pessoa que coordenara o estudo de 1996/97, dispõe-se a levar por diante, desta vez com presumível inabalável determinação, uma “reforma” que aparece desenhada em mais uma Resolução do Conselho de Ministros:

Trata-se de uma reforma de fundo que visa atacar e resolver problemas repetidamente detectados e os principais bloqueios ao desenvolvimento deste sector crítico para o progresso científico e técnico do País e para a eficaz prossecução de importantes políticas públicas. Esta reforma ainda deverá contribuir para abrir um período de estabilidade institucional, cuja necessidade é vital para o bom funcionamento dos laboratórios.
(da Resolução do Conselho de Ministros n.º 124/2006, de 3 de Outubro)

A maioria dos directamente atingidos qualificará este excerto como uma peça de humor negro porquanto a experiência passada e a situação presente não são de molde a descansar os interessados acerca do futuro das instituições atingidas e do seu próprio futuro pessoal.

Importa fazer notar que o processo em curso de “reforma” dos laboratórios ocorre desta vez no contexto de uma vasta e poderosa ofensiva do grande capital diligentemente levada à prática pelos seus agentes instalados nos órgãos executivos do poder político. Essa ofensiva visa o sector público em geral e não apenas o sub-sector da Ciência e Tecnologia, de que os laboratórios do Estado são parte. São objectivos dessa ofensiva a redução do emprego público à expressão mínima compatível com os objectivos do grande capital, acompanhada da transferência ou entrega ao sector privado das fatias mais rentáveis do serviço público. Os laboratórios do Estado continuam ainda hoje a ser, infelizmente, em Portugal, quase insignificantes no plano da economia. Acresce o facto de não se lhes reconhecer o potencial de intervenção que, mantendo-se no sector público, deveriam e poderiam ter no contexto do sector produtivo e dos serviços, mesmo num quadro capitalista, o que, por arrastamento, leva a que o poder político não veja razão para lhes conceder um tratamento diferente daquele que aplica à generalidade dos serviços e organismos da Administração Central do Estado, designadamente no que respeita a recursos humanos e financeiros atribuídos, autonomia científica, técnica e de gestão, no quadro das missões que lhes são ou deveriam ser fixadas.

É assim que à generalidade, senão a todos os laboratórios, são impostas importantes reduções dos efectivos de pessoal que atingem a ordem dos 30%, sujeitando vários deles a processos de parcelamento, fusão e extinção de serviços e estruturas, impostos administrativamente, que deixam sem destino definido equipas de trabalho com provas dadas e criam conglomerados de difícil governação. No que respeita a recursos financeiros, importa salientar que em 2007 se mantém inalterada a tendência consolidada em anos anteriores, a qual se traduz no decréscimo regular das dotações orçamentais inscritas no Orçamento do Estado quer para o funcionamento quer para despesas de investimento. As restrições financeiras e a quebra dos efectivos do pessoal permanente com mais anos de casa, por motivo de reforma, em muitos casos antecipada por força das alterações introduzidas nos últimos anos no regime de pensões, conduzem, umas e outra, a maior dificuldade na obtenção de receitas próprias. Sendo estas indispensáveis para o equilíbrio financeiro das instituições, exigem-se esforços adicionais para as obter, com prejuízo do trabalho de I&D de que depende a manutenção da qualidade científica e técnica da instituição. Em 2007, por comparação com 2006, os laboratórios do Estado, no seu conjunto, viram diminuir as dotações inscritas no Orçamento do Estado em cerca de 15% em termos reais. A este valor há ainda que adicionar a contribuição de 7,5% da massa salarial para a Caixa Geral de Aposentações tornada obrigatória no ano económico de 2007, o que elevará para mais de 20% a quebra de receitas decorrente directamente de decisões do Governo no âmbito financeiro. Assim, nos laboratórios, como também acontece nas universidades públicas, há situações em que não existem sequer os recursos financeiros necessários para assegurar até final do ano o pagamento dos salários do pessoal em exercício de funções. A situação piorará ainda com a decisão do Governo de “cativar” 10 % do valor das dotações atribuídas no OE de 2007, a todos os organismos da Administração Central incluindo Fundos e Serviços Autónomos, que acaba de ser anunciada, uma vez mais com a justificação da necessidade (?) de reduzir o défice das contas públicas até que Portugal, exangue mas feliz, alcance o número mágico dos 3% fabricado em Bruxelas.

As medidas que o Governo pretende fazer aplicar nos laboratórios do Estado, algumas das quais já em execução, dão sérias razões para pensar que o Executivo tem como objectivo reduzir os laboratórios a entidades prestadoras de serviços onde não haverá lugar nem condições para desenvolver trabalho de I&D, e entregar à gestão privada áreas que considere mais lucrativas. Entretanto, agita-se uma roda de interesses particulares, dentro e fora da comunidade científica, no sentido de tirar partido do importante património físico, de terrenos e edifícios, ainda afecto a alguns dos laboratórios.

Neste caminho de desastre será inevitavelmente desbaratado — e, em boa parte, perdido — um valioso património de conhecimentos e de experiência acumulado nos laboratórios públicos ao longo de dezenas e dezenas de anos.

No que respeita à gestão dos recursos humanos perfila-se no horizonte o fim da carreira de investigação científica e das carreiras do pessoal de apoio à investigação, com a extinção gradual do vínculo de nomeação definitiva, seja por passagem à reforma seja pela opção de ingresso “voluntário” no regime de contrato individual de trabalho que a nova legislação contempla, opção para a qual alguns poderão ser empurrados pelo receio de serem colocados administrativamente num “quadro de mobilidade” único para o conjunto da Administração pública, espécie de depósito de pessoal considerado desnecessário. Esta perspectiva associada, no caso do pessoal de apoio, a um perverso sistema de avaliação de desempenho com consequências particularmente graves nos laboratórios, onde gera injustiças e envenena relações pessoais, cria um ambiente geral de insegurança e desmotivação.

Tudo isto que é da responsabilidade directa do Governo não só não corresponde às anunciadas intenções dos “reformadores” como é profundamente contraditório com os objectivos que alegadamente se pretenderia alcançar.


A autonomia das instituições




A autonomia das instituições de I&D, designadamente dos laboratórios do Estado, ou melhor dizendo, a sua limitação, é uma questão de fundamental importância que, como tal, vem a público periodicamente, em pareceres e relatórios de avaliação, tomadas de posição de dirigentes, moções de órgãos representativos de pessoal investigador e técnico, sendo também regularmente referida em textos legais e intervenções públicas de governantes. Há nesta matéria duas vertentes a considerar que não são aliás independentes: a vertente da autonomia financeira e de gestão administrativa em sentido restrito; e a vertente da autonomia científica e técnica. O Ministro Mariano Gago restituiu formalmente aos laboratórios do Estado que a tinham perdido pela mão da Ministra Ferreira Leite, a referida autonomia financeira.
A autonomia financeira dos chamados Fundos e Serviços Autónomos sempre foi de facto uma falácia. Por duas ordens de razões. A primeira pelo facto do espartilho que constitui a multidão de rubricas orçamentais pelas quais o orçamento da instituição é obrigatoriamente distribuído, com dotações cuja alteração depende de autorizações exteriores à instituição. A segunda pelo facto de que os montantes constantes dos orçamentos do Estado e aprovados no Parlamento, além se serem já em si mesmo insuficientes para cobrir as necessidades da instituição, não virem por regra a coincidir com os montantes que são efectivamente disponibilizados, de forma que as direcções das instituições não sabem qual será o orçamento de que virão efectivamente a poder dispor.

As receitas próprias dos laboratórios são incertas porque os clientes, incluindo o próprio Estado, são incertos nas encomendas e nos pagamentos. Os números que obrigatoriamente devem ser inscritos no orçamento a submeter anualmente à aprovação da tutela para conseguir um equilíbrio aritmético das contas, correspondem por vezes a apostas que não são ganhas.

O estrangulamento financeiro dos laboratórios é uma terrível realidade que transforma a figura da autonomia financeira numa graça amarga.
Assim como a autonomia de gestão financeira deve respeitar os limites de despesa fixados no Orçamento de Estado, também a autonomia científica e técnica, deve ser exercida naturalmente no quadro geral das missões atribuídas pelo Estado à instituição. Tal não obsta, antes pressupõe, a garantia de liberdade de investigação, aliás consagrada expressamente no Decreto-Lei 125/99 de 20 de Abril, nos seguintes termos:
A liberdade de investigação é garantida a todas as instituições de investigação científica e desenvolvimento tecnológico, devendo ser exercida com respeito pelo quadro legal a que estiverem sujeitas e pelas respectivas missões.

Entretanto esta garantia, expressa no referido decreto, ainda em vigor, do Ministro Mariano Gago, torna-se vazia de sentido ao ser alegremente desmentida no dia-a-dia pela exacerbação de uma politica de centralização de poderes na Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), transformada em Deus ex machina da investigação científica em Portugal, política que o Ministro desde sempre consistentemente praticou, agora com maior intransigência.

Os laboratórios (como acontece também com as universidades) não têm capacidade financeira para sustentar uma política própria, com uma estratégia e prioridades definidas internamente. Assim, as direcções raramente podem ir além de “dar a sua bênção” aos investigadores que se vêm na contingência de procurar fora da instituição, designadamente junto da FCT, os recursos que a instituição não possui mas que se mostram indispensáveis ao desenvolvimento das suas actividades de I&D. Há uma fixação do Ministro relativamente ao financiamento das actividades de I&D pela via do concurso de projectos que põe em competição instituições de diferente natureza, com missões distintas, e equipas de trabalho com objectivos e finalidades também distintos.

A participação nas decisões



A experiência de muitos anos mostra que as direcções dos laboratórios e muito menos o pessoal investigador, não têm por regra qualquer intervenção efectiva no processo de tomada de decisões do Governo e das tutelas ministeriais, com incidência mais ou menos profunda na vida dos laboratórios. As missões dos laboratórios são mal definidas, o seu potencial científico e técnico é mal conhecido ou mesmo ignorado pelos responsáveis, por vezes mesmo ao nível das direcções cuja nomeação é feita pelo Governo de acordo com interesses pessoais e político - partidários. São muitas vezes direcções que estão de passagem, colocadas por razões de conveniência, distraídas e incompetentes. As excepções confirmam a regra.
Sendo esta prática corrente e velha de muitos anos, é todavia importante salientar que raramente a situação terá atingido os extremos que se vêm verificando nos consulados do Ministro Mariano Gago, com total desrespeito pelos órgãos da instituição, nomeadamente, direcções e conselhos científicos. O processo de “reforma” em marcha, nos seus vários aspectos, tem evoluído inteiramente à revelia dos principais e directos interessados: o pessoal científico e técnico que, com o seu trabalho, dá vida às instituições.
Pode dizer-se que, no essencial, a “reforma” em curso é sentida no interior dos laboratórios como uma imposição externa que não dá garantias de trazer soluções para os problemas reais há muito identificados e para os quais as tutelas têm sido repetidamente alertadas. Os investigadores, em particular, sentem-se feridos na sua dignidade profissional e joguete de decisões arbitrárias cujos efeitos sobre o sistema se afiguram preocupantes.

O incremento das verbas para a I&D



A progressiva redução que de ano para ano se vem verificando nos orçamentos dos laboratórios, o seu estrangulamento financeiro que se sente também nas universidades públicas, parece contraditório com o extraordinário aumento de verbas para a I&D em 2007 anunciado pelo Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES). Importa chamar a atenção para os seguintes aspectos.

O orçamento de investimento (PIDDAC) do MCTES, referido a valores iniciais, cresceu 42,5 % de 2006 para 2007, passando de 564 M€ para 804 M€. Dos 6 Programas que transferem dinheiros para o MCTES apenas 2 receberam mais verbas em 2007 do que em 2006. Um deles, o Programa P012-Ensino Superior, recebeu mais 1M€: passou de 82 M€ em 2006 para 83 M€ em 2007. O outro é o Programa P002-Investigação Científica e Tecnológica que saltou de 296 M€ para 579 M€, mais 96%.
O Programa P002 não existe apenas no Ministério da Ciência mas a fracção das verbas que se destinam a outros ministérios é residual: 8 e 3%, respectivamente, em 2006 e em 2007.

As verbas atribuídas ao MCTES no âmbito do Programa P002-Investigação Científica e Tecnológica, são na sua quase totalidade transferidas para a FCT e geridas por esta. Os montantes respectivos foram de 292,8 M€ em 2006 e 543 M€ em 2007, um acréscimo de 85%.O Programa está dividido em Medidas, e as Medidas que apresentam maior crescimento são a que respeita a bolsas (passa de 100 para 160 M€, em valores arredondados); a medida intitulada “Desenvolver uma rede moderna de instituições de I&D (passa de 33 para 105 M€); e a medida com a designação “Promover a produção científica, o desenvolvimento tecnológico e a inovação” (passa de 80 para 100 M€). Em 2007 surge uma medida nova designada por “Parcerias internacionais de Ciência e Tecnologia” dotada com cerca de 50 M€, destinados quase integralmente a transferências para o estrangeiro, o que se crê estar associado aos acordos com o MIT e as Universidades Austin do Texas e Carnegie – Mellon. Finalmente refere-se que a parte do financiamento nacional no montante global atribuído ao Programa P002-Investigação Científica e Tecnológica, é de 57,4% em 2007 (era 49,9% em 2006).

«Choque Tecnológico» e «Plano Tecnológico»

De entre os objectivos de bandeira do actual Governo PS, tem merecido grande destaque desde as eleições que lhe deram origem, o “famoso” choque tecnológico, mais tarde significativamente metamorfoseado em plano tecnológico. Objectivos - seja o choque seja o plano - considerados, e não sem razão, como indispensáveis ao desenvolvimento do País, pressupondo como condição determinante um corte com o “modelo dos baixos salários” praticado na economia portuguesa. De facto, trata-se de objectivos afirmados em rotura explícita com o discurso tradicional da competitividade das exportações com base no custo do factor trabalho, enquanto panaceia universal.
Ora, aceitando embora que se, por um lado, a actuação em áreas como a Educação e a Formação, em particular o Ensino Superior, e a Ciência & Tecnologia, com destaque para a Investigação & Desenvolvimento, está na origem de efeitos relevantes para o desenvolvimento do País, mas que, em boa medida, esses efeitos só são alcançáveis sobretudo para além do curto prazo, e em grande parte para além da duração da própria legislatura, por outro lado, a expressão choque tecnológico pressupõe, acima de tudo, um ambiente favorável à adopção de medidas empresariais quase imediatas dirigidas a ganhos de produtividade, um ambiente caracterizado pelo florescer de uma conjugação de múltiplos projectos de inovação de processo para os quais a tecnologia avançada disponível constitui seguramente uma alavanca não exclusiva, mas, no actual estado de coisas, determinante para o arranque da mudança.

E, não obstante existir um número apreciável de exemplos de empresas avançadas no tecido económico nacional, tanto empresas produtoras de bens como de serviços, que podem ser caracterizadas ao melhor nível de prestação do registado em qualquer parte do mundo, o certo é que, essas empresas não somente são uma pequena parte do tecido económico como a sua criação ou evolução não tem decorrido de acções do tipo das contempladas no famoso choque tecnológico. Aliás, é significativo que no Relatório de Execução do “Programa de Incentivos à Modernização da Economia” (PRIME) relativo ao ano de 2005, se possa ler (pág. 219): "Os projectos apoiados pelo Programa apresentam uma importante polarização nas actividades organizadas em torno dos factores competitivos menos avançados e mais vulneráveis em termos da concorrência internacional, explorando o acesso favorável a recursos naturais ou o baixo custo do trabalho" . Mais: "os projectos apoiados pelo programa apresentam uma muito importante polarização nas actividades de nível tecnológico menos exigente desenvolvendo processos de baixa e média tecnologia" .

Isto, quando já no Relatório de Execução do ano de 2003, do mesmo PRIME, se podia também ler (pág. 98): "As empresas de capital estrangeiro polarizam-se, sobretudo, em torno dos factores competitivos mais exigentes, isto é, economias de escala, diferenciação do produto e intensidade em I&D, que, em conjunto, concentram mais de 74% do investimento apoiado”.

Este contraste entre o tecido económico do País em geral e as suas empresas de capital estrangeiro é muito significativo. Mostra, por um lado, que é possível avançar no nosso País, mesmo com o actual enquadramento estatal, burocrático, e com a actual qualificação da mão-de-obra existente de que se queixam em geral os empresários nacionais. Por outro lado, evidencia uma situação - a da perpetuação do actual “modelo dos baixos salários” - que parece não haver programas de modernização e incentivos que lhe valham.

Por isso, no mínimo, espanta o voluntarismo de um choque tecnológico que o Governo PS se comprometeu a aplicar composto, no essencial, pelas medidas e incentivos de sempre que não têm levado a nada, rodeado das mesmas lamúrias sobre a qualificação da força de trabalho para justificar a manutenção de um retardado e degradado estado das coisas.

Com o que se disse, não se pretende negar ou sequer minimizar a bondade de todas as necessárias medidas de longo alcance, como o reforço e melhoria da formação da força de trabalho, o reforço e o progresso continuado do sistema de C&T, nas suas diversas vertentes, ou a optimização do enquadramento legislativo e administrativo do tecido económico nacional, com a redução adequada da carga burocrática, em particular para o lançamento de novos empreendimentos. Medidas que, no entanto, para passarem para lá da categoria de mera propaganda, terão de ser adequadas no seu conteúdo e eficazmente aplicadas.

Contudo, não será possível arrancar significativamente do actual “modelo” económico sem a implementação do mais básico e determinante de todos os incentivos à inovação e ao desenvolvimento: a elevação do preço da força de trabalho. E não apenas por razões morais, de justiça e de dignidade, que, de facto, por si próprias, são razão suficiente para o perseguir objectivo de elevação de salários de miséria. Mas também por necessidade racional para o progresso da economia, inclusivamente no seu actual enquadramento capitalista.

Com efeito, para lá da falácia que afirma não poderem ser distribuídos rendimentos antes da criação do valor, afirma-se que o valor só existe se o trabalho o criar. Na verdade, só a força de trabalho é que cria valor e, para isso, tem de ser desde logo remunerada em conformidade. Isto é, o nível concreto de custos da força de trabalho indica a produtividade conseguida, para situações de mercado equivalentes, como é o caso de Portugal enquanto membro da União Europeia, descontado algum desfasamento no tempo de boa parte dos países do leste e do centro da Europa. Mais, sem o “incentivo” de um preço da força de trabalho condizente com a subida do nível de produtividade pretendido, de um modo geral, os empresários, como é sabido, não entrarão em custos de investimento em inovação por eles considerados escusados, mesmo que afirmem o contrário.

Quanto à forma de conseguir, então, a referida alteração do nível de salários, uma vez que nas empresas são os seus donos e empresários os responsáveis por decidir sobre esta matéria, quer o Governo quer o poder legislativo só poderão influir indirectamente:

•    aumentando decididamente o Salário Mínimo Nacional (SMN) de forma a atingir níveis semelhantes aos mercados da União Europeia com os quais o nosso País se encontra mais envolvido (colocar um objectivo de 500 Euros para o ano 2001 é, no mínimo, dizer que não haverá nem no curto nem no médio prazo um início de mudança do “modelo dos baixos salários”);

•    aumentando o nível geral de salários da Função Pública, enquanto indicador do nível de salários do sector privado (medida que terá um efeito endógeno virtuoso no Estado através de melhorias de  produtividade e consequentes efeitos positivos no relacionamento da Administração com o tecido empresarial);

•    actuando no sentido de um reenquadramento jurídico-legal e administrativo no plano laboral que diminua o desequilíbrio dos poderes sociais, reequilibrando-os para o lado dos trabalhadores, permitindo-lhes lutar mais eficazmente pelo aumento dos níveis salariais, o mesmo é dizer, da produtividade das entidades empregadoras.

As medidas aqui propostas para o curto - médio prazo são as condições necessárias do “choque tecnológico” num sentido de estímulo efectivo ao desenvolvimento da economia portuguesa para fora do “modelo dos baixos salários”. Sendo a aplicação eficaz destas medidas devidamente assegurada, e para que o movimento no sentido do desenvolvimento possa não só ser sustentável, mas acelerado para os mais elevados níveis permitidos na época actual, deve concertadamente actuar-se - de forma planificada - em áreas como a Educação e a Formação, em particular, no Ensino Superior, e na Ciência & Tecnologia, com destaque para a Investigação & Desenvolvimento.

Neste domínio, o do “plano tecnológico”, exige-se um avanço de grande amplitude, para o qual o papel motor do Estado e das suas instituições de ensino e de investigação (centros de investigação ligados aos estabelecimentos do ensino superior, laboratórios do Estado) deverá desempenhar um papel decisivo. Não se quer com isto referir um descuidar do papel das instituições privadas de ensino e investigação, muito pelo contrário, devendo-se encontrar um modo articulado de aproveitar todos os recursos existentes para o cumprimento deste desígnio nacional.

Com o tempo, à medida que o “choque tecnológico” for dando os seus frutos na transformação do tecido empresarial, também este desempenhará um papel de crescente importância no conjunto integrado do Sistema Científico e Técnico nacional

Só pela conjugação das diversas vertentes, do “choque tecnológico” e do “plano tecnológico” acima referidas, com efeitos a esperar sobretudo a médio - longo prazo, - e não, consoante o Governo PS pretende, abdicando do “choque” a favor de um “plano” de resultados no mínimo duvidosos - será possível levar por diante um verdadeiro “plano científico e tecnológico”, e alcançar os objectivos de desenvolvimento ansiados.


 
ANEXO

•    A situação dos jovens investigadores caracteriza-se pela escassez de emprego científico e precariedade associada à principal forma de realizar trabalho científico, a bolsa de investigação. As medidas do governo indicam a continuação da ênfase nas bolsas em detrimento do emprego científico.

•    Em Janeiro foram publicados os números do EUROSTAT referentes ao investimento em Investigação e Desenvolvimento (I&D). Neles podemos verificar o atraso de Portugal face à média europeia em termos não só de investimento em I&D, em % do PIB, ( 0.81% em 2005 face à média UE25 de 1.9%), como também uma evolução muito lenta no período de 2001 a 2005 (crescimento em termos reais de apenas 0.4%, face à média de 1.5% na UE25). Estes valores não reflectem ainda o OE/2006.

•    A Agenda de Lisboa apontou como meta para a UE como um todo um investimento de 3% do PIB até 2010, sendo 2/3 desse investimento do sector empresarial. Também neste aspecto Portugal ainda está muito recuado, sendo que a proporção de financiamento provinda do sector empresarial é de 31.7%. Neste âmbito, o governo tem sempre respondido que já tomou medidas para incentivar o investimento empresarial, nomeadamente com o reavivar de uma medida do anterior governo PS: o SIFIDE, sistema de incentivos fiscais em investigação e desenvolvimento empresarial (Lei n.º 40/2005, DR n.º 148, I Série A, de Agosto de 2005). Seria útil saber se foi feita alguma avaliação dos efeitos da anterior versão deste sistema; se existirão dados que permitam aferir em que medida o actual sistema está a ser utilizado e com que impacto.

•    As medidas de maior visibilidade do MCTES, nomeadamente os acordos com o MIT, Carnegie Mellon e a criação de um centro ibérico de investigação em Braga, podendo constituir um reforço do SCT nacional não auguram grande impacto sobre o índice de investigadores por mil activos.

•    Relativamente ao emprego científico no sector público, a principal iniciativa do "Compromisso com a Ciência" foi o anúncio da contratação a termo (5 anos) de 1000 doutorados durante a presente legislatura, um número muito insuficiente face às necessidades. Seria razoável considerar, pelo menos, a duplicação deste número, o que ainda assim nos deixará longe da média da UE-25, relativamente ao número de investigadores em permilagem da população activa. Por outro lado, de forma a não agravar o desequilíbrio existente entre os efectivos de investigadores e os efectivos de técnicos, será imprescindível considerar, a par do aumento do número de investigadores, um crescimento, pelo menos em igual número, dos técnicos e outro pessoal afecto a actividades de Ciência, Tecnologia e Inovação.


•    É de salientar o facto de que, tendo em vista o objectivo de incremento do número de investigadores, o governo apenas tenha neste momento previsto um regime de contratação a prazo de novos investigadores, por um período de 5 anos. Limitam-se seriamente, desta forma, quaisquer perspectivas e legítimas expectativas de desenvolvimento de carreira dos novos investigadores. Impõe-se a questão: e que sucederá a estes investigadores terminado este período?

•    A situação dos bolseiros, uma parcela significativa dos jovens investigadores, caracteriza-se pela falta de direito efectivo à segurança social e por montantes das bolsas que não são actualizadas desde 2002. As bolsas e as avenças têm sido usadas pelas unidades de investigação em detrimento de contratos de trabalho, em particular para a execução de funções que claramente correspondem a trabalho anteriormente atribuído a trabalhadores do quadro das instituições.

•    Os bolseiros têm também sido vítimas de inúmeras instâncias de incumprimento do Estatuto de Bolseiro. No último ano verificaram-se casos de atrasos no pagamento de bolsas e cativação das verbas para "custos de formação" pelas instituições de acolhimento dificultando a realização do trabalho de investigação.

•    O governo português - ao contrário de outros (e.g. Espanha) - ignorou até este momento todas as recomendações constantes da carta europeia dos investigadores, recomendações que ganham especial sentido atendendo à situação nacional neste domínio.

No que respeita à condição social dos trabalhadores científicos, importa sublinhar que a evolução verificada aponta para uma objectiva degradação dessa mesma condição social. Esbateu-se a diferença de estatuto profissional, de condições de vida e de trabalho, entre os trabalhadores intelectuais e quadros técnicos, nos quais os trabalhadores científicos se inserem, e outros, menos qualificados. Esta degradação é marcada, fundamentalmente, por dois factores: o prolongamento do tempo necessário para se alcançar uma colocação estável, se é que chega a ser alcançada, e a diminuição dos níveis de remuneração em termos relativos, senão mesmo absolutos.