Intervenção

Intervenção do Deputado<br />Lei da liberdade religiosa

Sr. Presidente, Srs. DeputadosO tema que subjaz ao artigo 58.º, que foi avocado, já teve um início de discussão nesta Assembleia quando, no debate, na generalidade, do projecto de lei, alguns Srs. Deputados se pronunciaram no sentido de, antes da aprovação da lei, dever ser encetado e concluído o processo de revisão da Concordata.Na altura, o PCP pronunciou-se pela aprovação da lei da liberdade religiosa antes da revisão da Concordata; argumentámos que o Estado português devia definir livremente e no pleno uso dos seus poderes, como regula a liberdade religiosa e os problemas conexos. Dissemos mais: não pode ser assumido à partida que vai ser um Estado estrangeiro - o Estado do Vaticano - a definir, na negociação com o Estado português, o conteúdo de uma lei da República da competência desta Assembleia.Como é evidente, isto não contende com o facto de a aplicação da lei vir sempre a ser limitada pela vigência da Concordata como instrumento de direito internacional, aceite, como tem sido, a situação de uma religião beneficiar do estatuto da mais temporal das instituições, isto é, do estatuto de Estado.Quanto à revisão da Concordata, a lei aprovada definiria a posição do Estado português.Foi este mesmo argumento que, hoje, o Sr. Deputado José Vera Jardim expôs num artigo de opinião, onde escreve que, concebida a lei da liberdade religiosa como lei de vocação de regulamentação de todas - sublinho «de todas» - as questões do direito das religiões e do seu relacionamento com o Estado, é claro que, nas negociações com o Vaticano, terá de ser o guião e a matriz da Concordata e que esta só poderá pretender consagrar regime diverso para as questões em que haja razões especiais que justifiquem esse regime especial, sem ofensa do princípio da igualdade, sendo dados exemplos muito limitados, como é o caso dos feriados e pouco mais.Este princípio da igualdade decorre e faz parte do conteúdo de princípios de progresso, considerados «conquistas irreversíveis da modernidade». São os princípios da laicidade do Estado e da separação do Estado e das religiões, princípios que são condição sine qua non da liberdade religiosa nas suas diferentes expressões: liberdade de opção religiosa, liberdade de não ter religião, liberdade de organização, de culto e de expressão religiosa.A especial presença da Igreja Católica não é, nem pode ser, decreto de um qualquer poder do Estado, por meio de lei ou por outra qualquer forma. Essa especial presença decorre da sua condição maioritária, das suas raízes históricas e da sua acção como religião ou da sua acção social. Ou decorre disso tudo, ou deixaria de ser uma igreja livre.O mesmo se diga do Estado: ou o Estado respeita e é respeitado como Estado de laicidade, separado das religiões e capaz de fazer e aplicar a lei sem discriminações, ou o Estado deixa de ser livre. E a liberdade do Estado é também um valor a defender!No Estado de direito democrático que caracteriza a República Portuguesa todos gozam de cidadania e não há cidadania acima da lei. Aqui, Srs. Deputados, não há uma questão religiosa, há uma questão de direito.A lei da liberdade religiosa não impõe nenhuma moral, nem sequer tem, ou pode ter, a pretensão de fazer qualquer juízo moral. Como lei, deve fazer só o que lhe compete, isto é, direito, e nada mais.Não podemos acompanhar uma forma de realizar o direito que ponha seja quem for acima do direito.A Assembleia da República é o órgão competente para regular os direitos, liberdades e garantias constantes da Constituição - todos os direitos, liberdades e garantias, sem excepção.Diz o Sr. Deputado Vera Jardim, no artigo de opinião já citado, que a aplicação da lei da liberdade religiosa, como ela deve ser feita - isto é, com respeito dos princípios da universalidade e igualdade, ressalvada a Concordata no seu estrito campo de aplicação e, portanto, também saneada das suas inconstitucionalidades -, levaria a dificuldades, que resume assim: não é fácil nem de resultado claro distinguir de entre a muita e variada legislação que cobre toda a actividade da Igreja Católica aquela que deriva da Concordata da que não tem essa característica.O argumento de que a aplicação do Estado de direito é, neste ou naquele caso, difícil, não é, nem pode ser, razão para suspender a aplicação do Estado de direito. Se é difícil, aqui ou ali, aplicar uma lei, resolva-se o problema com bom senso e capacidade de diálogo. Isto, como é óbvio, sem a vontade arrogante de querer levar tudo à frente, aplicando a lei como um bulldozer; mas também sem aceitar a vontade arrogante de alguém querer impedir a Assembleia de exercer livremente as suas competências.Uma lei para as religiões minoritárias não é a lei que o Estado de direito deve fazer. Mesmo que, para essas religiões, essa lei possa ser mais que o vazio legal e a discriminação que hoje vivem, não é certamente a lei da melhor dignidade a que essas instituições têm direito face ao Estado português e aos princípios por que ele se rege em matéria de liberdade religiosa, incluindo o princípio da igualdade.Sr. Presidente e Srs. Deputados, em sede de declaração de voto, faremos uma apreciação completa do texto da lei. Mas, nesta questão do artigo 58.º, agora avocado, e a não ser alterada a posição assumida pela bancada do PS, estará a razão de ser essencial para determinar o nosso voto final na lei da liberdade religiosa.Declaração de voto do Grupo Parlamentar do PCP Em votação final global, o Grupo Parlamentar do PCP votou contra o projecto de lei n.º 27/VIII, do PS, sobre liberdade religiosa. Para esta decisão, foi determinante a opção tomada no artigo 58.º, de isentar a Igreja Católica da aplicação da lei aprovada.Para o PCP, não está em causa o respeito pela Concordata e pelos regimes especiais que dela decorrem. É reconhecido que, sendo a Concordata um tratado internacional celebrado entre Portugal e a Santa Sé, a sua revogação ou alteração não pode ser feita por lei da República, mas mediante novo tratado entre os Estados signatários, cuja ratificação dependerá sempre, porém, da aprovação da Assembleia da República. É certo que algumas disposições da Concordata estão hoje ultrapassadas por contrariarem preceitos constitucionais. Mas nem é isso que está em causa na lei da liberdade religiosa, na medida em que a Constituição prevalece directa e imediatamente sobre quaisquer instrumentos de direito interno ou de direito internacional que a contrariem.Ressalvada, porém, a Concordata e os regimes especiais dela decorrentes, entende o PCP que não há nenhuma razão que deva isentar a Igreja Católica da aplicação da lei da liberdade religiosa. É uma evidência que a Igreja Católica tem em Portugal uma história, uma tradição e uma representatividade que a distingue das demais igrejas. Mas isso não a deve isentar da aplicação, por parte do Estado, do princípio da igualdade. A aplicabilidade deste princípio, que manda tratar como igual o que é igual e como diferente o que é diferente, não implica a negação da representatividade e da importância da Igreja Católica, e é um imperativo do Estado de direito democrático.O PCP discorda, assim, da aprovação de uma lei que, visando regular a liberdade religiosa, apenas se aplica às religiões minoritárias. É certo que a lei aprovada representa um passo em frente para estas religiões, pondo, finalmente, termo a uma situação de ausência de regulação de aspectos concretos do exercício da liberdade religiosa. Este facto, em si, é motivo de congratulação, para o PCP. Surge, no entanto, ensombrado pela solução adoptada no artigo 58.º, na medida em que o facto de a lei ser aplicável apenas às religiões minoritárias coloca-as objectivamente numa situação de subalternidade de todo injustificada.Não obstante ter votado favoravelmente, na especialidade, a maioria das disposições da lei aprovada, o PCP manifestou a sua discordância em relação a alguns aspectos pontuais relevantes, que se enumeram:a) A introdução de um critério de representatividade das igrejas na aplicação do princípio da cooperação do Estado com estas em matéria de promoção dos direitos humanos, do desenvolvimento integral de cada pessoa e dos valores da paz, da liberdade, da solidariedade e da tolerância. Entende o PCP que o apoio à promoção destes valores depende do mérito dos seus propósitos e não da representatividade de quem os promove;b) A possibilidade dada aos contribuintes de poderem destinar parte do montante liquidado do seu IRS a fins religiosos ou de beneficência, sendo tais verbas entregues pelo Estado à Igreja respectiva. O PCP entende que as actividades religiosas não devem ser tributadas, mas também não devem se financiadas pelo Estado. Ou seja, a actividade religiosa não deve gerar receitas para o Estado, mas este também não deve perder receitas em benefício dessa actividade;c) O facto de se fazer depender a inscrição de uma igreja ou comunidade religiosa no registo das pessoas colectivas religiosas da decisão de uma autoridade administrativa. O PCP entende que a inscrição deve ser aceite, sendo, no entanto, susceptível de impugnação judicial caso existisse fundamento para tal;d) A distinção feita entre confissões religiosas radicadas e não radicadas no País, assente na sua existência em Portugal por um período de 30 anos. Esta distinção introduz discriminações sem fundamento plausível;e) Também a Comissão da Liberdade Religiosa motivou reservas da parte do PCP, traduzidas na posição de abstenção na especialidade. É, no mínimo discutível que esta entidade, com funções de emissão de pareceres, designadamente, sobre acordos entre igrejas e o Estado, sobre a radicação de igrejas ou sobre a inscrição de igrejas no registo das pessoas colectivas religiosas, seja integrado por elementos pertencentes a confissões religiosas. É muito discutível a admissão de que sejam determinadas confissões religiosas a emitir juízos juridicamente relevantes sobre outras.Neste processo legislativo, o PCP apresentou ainda, na especialidade, propostas, contendo os seus pontos de vista sobre algumas matérias, visando, designadamente:a) A não sujeição dos serviços de assistência religiosa nas Forças Armadas ao regime da condição militar e à respectiva inserção hierárquica;b) A regulamentação das aulas de ensino religioso nas escolas públicas, salvaguardando o seu carácter opcional e extracurricular, mas assegurando a sua continuidade em relação ao horário escolar;c) A consagração expressa da recorribilidade judicial dos actos relativos à aquisição da personalidade jurídica das confissões religiosas;d) O reconhecimento expresso da caducidade do Acordo Missionário;e) A inscrição no Orçamento do Estado das verbas do IRS que os contribuintes decidam destinar a igrejas ou comunidades religiosas, que foi aprovada por unanimidade.Tudo ponderado, e salientando a congratulação para com eventuais efeitos positivos que possam decorrer da aprovação da presente lei para as religiões minoritárias, o PCP entende que, em face da opção tomada por maioria quanto ao artigo 58.º, não pode, em votação final global, deixar de votar contra a lei de liberdade religiosa. 

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