Intervenção

Intervenção de Jerónimo de Sousa na Sessão Pública de Evocação dos 60 anos do Julgamento de Álvaro Cunhal

Áudio

Muitas vezes temos sublinhado a importância, decisiva para o Partido Comunista Português, da adesão de Álvaro Cunhal ao ideal e ao projecto comunistas – adesão que, no seu caso concreto, foi também uma opção de vida, concretizada na entrega total ao seu Partido, ao nosso Partido, de cuja construção colectiva ele foi o mais relevante obreiro.

Muitas vezes temos sublinhado a superior estatura política, ética, intelectual, humana, revolucionária de Álvaro Cunhal, expressa numa vida e numa obra singulares.

Muitas vezes temos sublinhado a riqueza da actividade intelectual de Álvaro Cunhal, criadora, para além de uma obra artística de grande qualidade, de uma produção teórica traduzida num notável corpo de pensamento político, económico, social, cultural, que constitui elemento incontornável para a abordagem da história portuguesa do século XX e que se traduziu num contributo marcante para o desenvolvimento criativo do pensamento de Marx, Engels e Lénine.

E muitas mais vezes haverá que fazer esses sublinhados – sempre tendo em conta na nossa actividade de militantes comunistas a vida, a obra e o exemplo do camarada Álvaro Cunhal.

Hoje, estamos aqui para relembrar essa vida, essa obra e esse exemplo num enquadramento específico: o tempo vivido por Álvaro Cunhal nas prisões fascistas. Daí a divulgação, em CD, a que agora procedemos dos seus Cadernos da Prisão. Trata-se de imagens de documentos cada um dos quais constitui um testemunho da personalidade de um homem em luta – uma luta travada nas severas condições da prisão fascista e que aqui, no Tribunal da Boa Hora, atingiu expressão elevada.

Daí a escolha deste local para o fazermos.

Há 60 anos, neste espaço onde nos encontramos teve lugar um acontecimento que constituiu um momento alto da luta contra a ditadura fascista: frente aos juízes fascistas, Álvaro Cunhal proferiu uma intervenção na qual, com notável lucidez e coragem, procedeu ao julgamento e condenação do regime fascista e à defesa do Partido, do seu projecto e das suas orientações políticas.

Álvaro Cunhal estava preso há 14 meses, em total incomunicabilidade, e fora submetido a brutais torturas. Fechado numa cela onde o sol não entrava e a luz de vigília estava acesa 24 horas sobre 24 horas, sem lápis nem papel, ele memorizou a sua longa intervenção e, em pleno tribunal, passou de acusado a acusador, sentando o regime salazarista no banco dos réus. E é importante sublinhar que, com essa atitude, ele estava a levar à prática aquilo que, em teoria, apontava como a atitude a tomar pelos militantes comunistas que caíam nas garras da polícia fascista.

Escreveu ele que, «na prisão, o comunista continua “no activo», continua a servir a sua causa» e que «ao comunista que é preso apresentam-se três “momentos” principais em que é chamado a dar provas da sua têmpera de revolucionário: a conduta ante a polícia, a conduta ante o tribunal, a conduta na prisão».

Face à polícia, os comunistas, «quaisquer que sejam as torturas a que forem submetidos», devem recusar-se a dar «quaisquer informações acerca da sua actividade política, acerca do Partido»; nos tribunais, «os comunistas não se defendem a si, mas à política do Partido»; no cumprimento de pena, cada camarada deve aproveitar o tempo estudando, procurando elevar a sua cultura geral, preparando-se para melhor e mais eficazmente dar continuidade à luta após a sua libertação. Ou seja: a prisão era vista por Álvaro Cunhal como um espaço de luta.

E a sua vida na prisão foi tudo isso. Nesses «três momentos principais» ele mostrou a sua «têmpera de revolucionário», quer resistindo às torturas brutais infligidas pela polícia fascista nas três vezes em que foi preso e que a elas foi submetido; quer fazendo do tribunal um espaço de julgamento do fascismo e de valorização do papel, do projecto e das orientações do Partido; quer fazendo do tempo de cumprimento da pena um tempo de preparação para a luta futura. Isto é, sempre continuando «no activo», sempre continuando a «servir a sua causa».

Álvaro Cunhal fora preso, com Militão Ribeiro e Sofia Ferreira, num tempo em que o PCP vivia um momento grande da sua história. Com efeito, o processo iniciado com a reorganização de 40/41 e complementado com os III e IV Congressos, realizados respectivamente em 1943 e 1946, transformara profundamente o Partido. Primeiro, superando muitas das graves dificuldades com que o Partido se debatia e o haviam fragilizado consideravelmente. Depois, tomando as medidas orgânicas, de direcção e de quadros, que a situação impunha. E, ao mesmo tempo, definindo as linhas de acção e as orientações políticas adequadas à realidade então existente – designadamente, a partir de uma análise profunda, rigorosa e consequente da situação política nacional, apontando o levantamento nacional contra a ditadura como caminho para o derrubamento do fascismo e para a defesa dos interesses nacionais.

Desse processo, no qual Álvaro Cunhal desempenhou um papel decisivo, nasceu o «partido leninista definido com a experiência própria»: um partido construído sem dúvida sob a inspiração e o exemplo do partido de Lenine, mas também, e de que maneira, a partir da experiência dos comunistas portugueses, da sua história, da sua luta.

É nesse tempo e no decorrer desse processo exaltante que se avança na definição teórica da identidade do Partido e na concretização prática dessa identidade, feita na complementaridade indissociável de um conjunto de traços identitários que incorporam o projecto, a natureza de classe, a ideologia, as normas de funcionamento interno, a estreita ligação às massas e à defesa dos seus interesses, e o carácter simultaneamente patriótico e internacionalista. Numa síntese fascinante Álvaro Cunhal afirmou que quando se ama e se luta pelo povo há-de ser-se solidário com outros povos.

É ainda nesse tempo e nesse processo que nasce a ideia fundamental do trabalho colectivo visto e entendido como «princípio básico essencial do estilo de trabalho do Partido» - aspecto fulcral da democracia interna e factor decisivo da unidade e da disciplina partidárias.

Uma ideia que, começando por ser aplicada na direcção central se estenderá aos restantes organismos de direcção, aos diversos níveis, vindo a culminar na concretização prática do conceito de «colectivo partidário» que, como escreveu Álvaro Cunhal «traduz a participação, a intervenção e a contribuição constante dos colectivos, a busca constante da opinião, da iniciativa, da actividade e da criatividade de todos e de cada um, a convergência das ideias, dos esforços, do trabalho das organizações e militantes no resultado comum». Com tudo isso, o PCP assume-se como um grande partido nacional; como vanguarda revolucionária da classe operária e das massas, com uma influência marcante junto da intelectualidade e da juventude; como força determinante da resistência e da unidade antifascistas.

E tudo isso é visível desde logo no crescimento do Partido – que atinge, então, a sua maior expressão até à altura: 5 000 militantes e 4 000 simpatizantes. E também no imediato desenvolvimento e intensificação da luta das massas trabalhadoras – que, de norte a sul do País levam por diante poderosas lutas e movimentações, e em que a classe operária surge em força na cena política nacional, assumindo inequivocamente a vanguarda da luta antifascista - de que são expressão mais significativa as greves da Covilhã, em 1941; as lutas camponesas de 1942, contra o envio de géneros para a Alemanha nazi; a vaga de greves de Outubro/Novembro de 1942 na região de Lisboa; o poderoso movimento grevista de Julho/Agosto de 1943, no qual participam mais de 50 mil trabalhadores, isto é, a quase totalidade dos operários industriais de Lisboa e Margem Sul do Tejo.

De registar, também, as grandes acções de massas surgidas na sequência da derrota do nazi-fascismo - derrota na qual o povo soviético e o seu Exército Vermelho tinham tido um papel determinante – e que movimentaram centenas e centenas de milhares de pessoas de norte a sul do País.

Os avanços do Partido são visíveis, ainda, no ascenso da unidade e da luta antifascistas – bem expressos na criação e na actividade do Movimento de Unidade Democrática (MUD), do MUD Juvenil, do Movimento de Unidade Nacional Anti Fascista (MUNAF) e na importante campanha política de massas em torno da candidatura do general Norton de Matos.

À frente de todas estas lutas, mobilizando, organizando, dirigindo e conferindo-lhe um conteúdo simultaneamente antifascista e pela liberdade, pela democracia, pelo socialismo, está o PCP. Com tudo isso, também, o Partido cria as condições para o reatamento das relações com o movimento comunista internacional, pondo termo a um isolamento que durava desde 1938 – tarefa que será atribuída a Álvaro Cunhal e que ele concretiza com pleno êxito.

É este o Partido à altura da prisão de Álvaro Cunhal, em 1949. São estas as características essenciais do Partido, hoje. Serão estas as características do Partido no futuro.

Como escreveu Álvaro Cunhal numa das suas últimas obras, «O PCP é o partido comunista de Portugal, Não é, nem pretende ser, um “modelo” para outros países. Tem e transmite a sua experiência. Está atento à experiência dos outros. Aprende com os outros e consigo próprio. Com a vida. Com a história do mundo e com a sua própria história. História que revela como o PCP se tornou um partido não só necessário, mas indispensável e insubstituível na sociedade portuguesa».

Muito está dito sobre a vida, a obra e a acção de Álvaro Cunhal. E muito mais haverá a dizer. A História se encarregará de o fazer. A História e a acção do Partido Comunista Português, no presente e no futuro.

Hoje, colocam-se aos comunistas portugueses, a este nosso «grande colectivo partidário», responsabilidades, respostas e tarefas que, pela sua envergadura nos convocam a uma intervenção de grande exigência em matéria de intensidade de acção e de rigor nos objectivos definidos. E a verdade é que o Partido, sempre tendo como referência primeira o exemplo do camarada Álvaro Cunhal, está a responder à situação existente, assumindo a vanguarda da luta contra a política de direita e por uma mudança de rumo para Portugal.

O Partido que está nas fábricas, nas empresas, nos locais de trabalho, ao lado dos trabalhadores e plenamente identificado com os seus direitos, interesses e aspirações. Que está na primeira linha do combate à grande ofensiva global que está em curso sob a direcção e em estreita articulação entre o grande capital europeu e nacional, os directórios das grandes potências e do capitalismo internacional com o claro objectivo de acelerar o esvaziamento do “estado social” e que em Portugal se traduz na política de destruição das conquistas de Abril.

Dessa nova escalada que, a pretexto da crise e do combate ao défice, penaliza a vida dos portugueses e agrava os problemas nacionais – o desemprego, a precariedade, promove a destruição da capacidade produtiva nacional, o endividamento e empobrecimento geral do povo e o aumento da dependência do país.

O Partido que está lá aonde é preciso dar combate e resistir à colossal ofensiva que tem no PEC do governo do PS, em aliança com o PSD, o instrumento do momento para acentuar a exploração do trabalho e transferir os custos da crise para cima das camadas e classes populares. Está lá aonde é preciso organizar o combate a essa política de instabilidade e retrocesso social que quer impor o roubo nos salários e nas pensões, novas mutilações dos direitos sociais e uma nova ofensiva desregulamentadora das relações laborais.

Esse PEC que corta nos rendimentos do trabalho ao mesmo tempo que promove o aumento dos preços, incluindo dos bens essenciais e projecta o mais injusto e desumano ataque a todas as prestações sociais que atinge as camadas mais fragilizadas da população, dos desempregados aos doentes acamados, das crianças aos deficientes, dos pensionistas de mais fracos rendimentos aos excluídos e marginalizados.

No combate a esse PEC que é bem o espelho de uma política que não só poupa os responsáveis pela crise – a oligarquia financeira –, como os favorece com o banquete das privatizações, os milhões intocáveis dos benefícios fiscais e que ao mesmo tempo fecha os olhos à evasão fiscal e aos milhões de euros que diariamente repousam nos offshores.

O Partido que está nos locais de residência agindo juntamente com as populações em defesa da sua qualidade de vida, em defesa do ambiente e do ordenamento do território, por melhores serviços públicos, nomeadamente por um Serviço Nacional de Saúde que concretize e garante o direito à saúde dos portugueses, contra o encerramento de serviços, o subfinanciamento e os cortes cegos na rede hospitalar, o aumento dos custos da saúde, a crescente carência de recursos humanos e sérias restrições em infraestruturas e equipamentos.

O Partido que está nos campos em defesa da agricultura portuguesa e do mundo rural, ao lado dos pequenos e médios agricultores, pelo direito a produzir e a obter um rendimento para uma vida digna, contra uma PAC que subalterniza a agricultura familiar e favorece os grandes interesses ligados ao agro-negócio das grandes multinacionais da transformação e distribuição de alimentos, pelo direito à terra por quem a trabalha na zona do latifúndio.

O Partido que está nas escolas em defesa do ensino e de uma Escola Pública de qualidade e gratuita, contra o encerramento generalizado de escolas por todo o país, pela dignificação da profissão docente e dos trabalhadores, dos direitos dos alunos e na defesa do acesso e sucesso escolares, pela democratização do ensino e contra a sua elitização.

O Partido que valoriza o papel dos intelectuais e da cultura, enquanto factor de conquista da liberdade e de emancipação e desenvolvimento social, que se honra de ter no seu seio dos mais generosos intelectuais dedicados à causa do seu povo, distintos combatentes pela afirmação de uma democracia com dimensão cultural em Portugal.

O Partido que está em todo lado onde as consequências da política de direita se fazem sentir, em defesa dos micro, pequenos e médios empresários, vítimas também da usura do grande capital monopolista e da sua política de domínio da economia e de centralização e concentração da riqueza nacional.

O Partido que está na rua, ombro a ombro com as massas populares, com os muitos milhares de homens, mulheres e jovens que afirmam a sua inquietação, indignação e protesto face ao rumo que o país leva, como recentemente aconteceu nessa grande manifestação nacional convocada pela CGTP-IN com a participação de mais de 300 mil pessoas que lutam para pôr termo à política de declínio nacional e por uma alternativa patriótica e de esquerda à política de direita.

Uma luta que vai continuar e a que é preciso dar força, apoiando e dinamizando as grandes lutas que estão em curso, nomeadamente a grande jornada de 8 de Julho – dia de luta nacional do movimento sindical unitário.

O Partido solidário e empenhado na mobilização dos trabalhadores e das populações na luta contra as injustiças que junta à luta dos trabalhadores a sua própria iniciativa e mobilização própria como testemunham os recentes desfiles realizados em Lisboa, Évora e Porto que mobilizaram milhares de pessoas.

Um partido com uma acção e uma intervenção que não substitui a acção, a intervenção, o protesto e a luta dos trabalhadores e do povo, mas que age para unir, ampliar e dar força à luta do nosso povo por melhores condições de vida, como o fará no próximo dia 1 de Julho na sua grande acção nacional de esclarecimento e protesto, contra o aumento generalizado dos preços dos bens e serviços essenciais às populações.

Um partido que assume a defesa da soberania nacional como princípio inalienável e que se distingue pelo seu firme combate contra o processo de afirmação da União Europeia como um bloco económico, político e militar de natureza imperialista e contra a intensificação da ofensiva imperialista dos EUA e da NATO. Que recusa o envolvimento de Portugal na estratégia de dominação das grandes potências mundiais, seja no plano das relações económicas e políticas, seja na utilização das forças armadas e de segurança portuguesas em missões de intervencionismo imperialista.

Partido de palavra e da verdade que nunca traiu nem trairá os seus compromissos com os trabalhadores e com o país.

Um partido que não se deixou intimidar e que hoje continua de pé, determinado, confiante e combativo, orgulhoso da sua história e do percurso de luta de gerações de comunistas que lhes serve de inspiração, mas sempre a olhar e a caminhar para a frente, consciente dos perigos e dos tempos difíceis que se apresentam, não perdendo de vista a linha de horizonte, nem o percurso que temos de percorrer com as nossas forças e a força da nossa convicção, transportando o nosso projecto transformador e emancipador.

Projecto que persegue o nobre e indestrutível ideal da emancipação e libertação da exploração do homem pelo homem, porque queremos uma vida melhor para quem trabalha, porque queremos um Portugal democrático, desenvolvido, de progresso, independente, mais justo e mais solidário como etapa para avançar mais.
 

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