Projecto de Lei N.º 437/XIII/ 2.ª

Institui um regime especial de defesa e valorização das embarcações tradicionais portuguesas

Institui um regime especial de defesa e valorização das embarcações tradicionais portuguesas

Exposição de motivos

A tradição naval portuguesa é fruto de uma História nacional caracterizada em grande medida pela relação do povo português com o mar e com a utilização dos rios como estruturas naturais de grande importância no trabalho e no lazer da população ao longo dos tempos.

Existem, um pouco por todo o país e essencialmente nas regiões de interface estuarino ou costeiras, um vasto conjunto de embarcações que ilustra a diversidade das suas formas e usos, refletindo também as práticas de outrora, quer comerciais, piscatórias, de trabalho ou mesmo de transporte ou lazer. De norte a sul do país, seguindo a linha da costa ocidental e meridional e os seus estuários, verifica-se a persistência de embarcações tradicionais, que têm as suas origens em épocas remotas. No entanto, muitas dessas embarcações preservam ainda hoje as características essenciais do seu passado, servindo como testemunhos históricos de práticas e momentos passados.

Os rabelos, moliceiros, galeões, iates, botes, aiolas, catraios, canoas e fragatas, entre muitas outras tipologias de embarcações tradicionais, são alguns dos que ainda navegam nas águas de rios, estuários ou da costa portuguesa. Graças à perseverança e gosto de associações náuticas, de municípios ou de artífices, algumas embarcações de hoje reproduzem na íntegra as características originárias da sua classe.

Por tudo isso, a valorização das embarcações típicas portuguesas deve ser encarada como uma forma de proteção também de um valor histórico. Mais do que isso, a valorização e salvaguarda deste património cultural, artesanal e histórico é também uma forma de proteção e promoção de ocupações saudáveis de tempos livres, estímulo que são à participação e fruição coletiva e popular da natureza e dos bens culturais.

No entanto, a preservação dos hábitos relacionados com estas embarcações, das artes artesanais de fabrico, e das embarcações propriamente ditas, pode estar em causa, tendo em conta a cada vez maior dificuldade de proceder à sua manutenção e ao seu fabrico, fruto da falta de apoio e do desincentivo involuntário por omissão de programas de apoio e de legislação específica. A prática artesanal de conceção, desenho, fabrico e manobrabilidade de embarcações tradicionais; as formas de fruição cultural; as artes de pesca artesanal; as técnicas tradicionais de navegação e outras práticas associadas a estas embarcações ficam também fragilizadas num quadro de ausência de políticas específicas de apoio.

A aplicação de normas e taxas, a exigência de vistorias e licenciamentos que em nada se diferenciam das embarcações comuns de recreio a estes barcos típicos resulta, afinal, num obstáculo efetivo para a sua preservação e divulgação. A exigência de cumprimento de normas que são ajustadas a barcos de recreio motorizados, feitos em fibra de vidro, plástico e carbono, não se coaduna com a preservação das características essenciais de uma embarcação da “Marinha do Tejo”, por exemplo. Da mesma forma, as aplicações e usos de uma aiola de Sesimbra não podem ser comparados com as de uma lancha ou de um semirrígido.

O Decreto-Lei n.º 149/2014, de 10 de outubro que estabelece o regulamento da atividade das embarcações utilizadas na atividade marítimo -turística, integrou no âmbito de aplicação as embarcações tradicionais ou barcos típicos. Este diploma é um exemplo concreto das dificuldades introduzidas à utilização destas embarcações numa perspetiva de preservação do património naval a nível material e imaterial, através da obrigação do cumprimento de um conjunto de normas que na prática são incompatíveis com a natureza e as características das embarcações tradicionais, exatamente pela sua vertente patrimonial e histórica. Desta forma é colocada em causa a continuidade dos passeios nas embarcações tradicionais.

A atuação do Estado não pode ser encarada numa perspetiva espartilhada ou orientada num sentido estreito. Pelo contrário, só com a promoção de uma política de intervenção vasta poderá o rumo da desvalorização ser contrariado.

Para que a relação tradicional e saudável entre as populações e as zonas ribeirinhas não só se mantenha como se aprofunde é necessário que exista um estímulo e que cesse a política de afastamento e alheamento. É necessária uma política de acompanhamento aos cursos de água, de regularização das suas margens e de manutenção da sua navegabilidade, nomeadamente através de operações de desassoreamento, colocação e manutenção das devidas marcações, revertendo o processo de “morte lenta” a que muitos rios e ribeiras portugueses estão atualmente sujeitos.

É vital uma política de agilização e democratização da gestão das zonas ribeirinhas, através da promoção de uma maior intervenção das autarquias, possibilitando uma planificação urbana integrada nos tecidos e estratégias urbanas de planeamento do território, contribuindo para a coesão nacional e para a fruição democrática dos espaços ribeirinhos.

No mesmo sentido, o Estado não pode demitir-se das suas funções no que toca à garantia da acessibilidade das populações à água, margens de rios e zonas costeiras, criando e planificando estruturas de apoio à náutica de recreio e de apoio à pesca tradicional de subsistência e semissubsistência.

Só num quadro de valorização da interação entre populações e cursos de água, de defesa dos valores e recursos naturais e de democratização da sua fruição podem, efetivamente, ser consolidadas políticas de salvaguarda do conjunto dos interesses envolvidos na presente proposta do PCP.

A valorização das embarcações tradicionais passa pela valorização da carreira de mestre na administração pública, a respetiva remuneração e o desenvolvimento da formação profissional nesta área assegurada pelo Estado. Atualmente a carreira dos marítimos está altamente desvalorizada e mal remunerada não compaginável com o nível de complexidade e de conhecimentos técnicos altamente exigentes para a manobrabilidade de embarcações tradicionais de diferentes tipologias. As exigências formativas são elevadas, a responsabilidade técnica e pessoal é enorme. Se não forem adotadas medidas neste âmbito corre-se o risco de extinção de marítimos para manobrar as embarcações tradicionais.

O Projeto de Lei que o Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português ora apresenta visa estabelecer as regras para a preservação desse valiosíssimo património, valorizando as artes e práticas com ele relacionadas, distinguindo de entre as embarcações aquelas que naturalmente se afirmam pela sua história. Para que seja possível aos proprietários das embarcações, sejam pessoas singulares ou coletivas, aplicar os princípios da própria Carta de Barcelona, para que o Estado não só reconheça como apoie as atividades, as artes associadas e proteja o valor histórico das embarcações típicas como monumentos, integrando o património marítimo flutuante português.

Com a presente iniciativa, o PCP retoma e reafirma as propostas apresentadas em fevereiro de 2009, no Projeto de Lei que mereceu então o contributo, a opinião e o apoio de tantas comunidades locais e de tantos profissionais e entusiastas que diariamente defendem e promovem este importantíssimo património cultural do nosso País.

Assim, ao abrigo do disposto no Artigo 156.º da Constituição da República e do Artigo 4.º do Regimento da Assembleia da República, os Deputados do Grupo Parlamentar do PCP apresentam o seguinte Projeto de Lei:

Artigo 1.º
Objeto e âmbito

1 - A presente lei institui um regime de defesa e valorização das embarcações tradicionais portuguesas.

2 – São abrangidas pelo regime definido na presente lei as embarcações que constem do elenco de embarcações tradicionais e, cumulativamente:
a) Sejam fabricadas através de processos artesanais;
b) Sejam utilizadas para fins recreativos, turísticos, culturais ou para pesca artesanal.

Artigo 2.º
Regime específico de taxas e licenças

1 - As embarcações tradicionais abrangidas pela presente lei beneficiam de um regime específico de licenciamento e de isenção de taxas.

2 – O regime específico de licenciamento previsto no número anterior deve:
a) Garantir as condições de segurança e navegabilidade das embarcações preservando a sua natureza tradicional e artesanal;
b) Salvaguardar as características próprias das embarcações tradicionais no que se refere aos materiais e técnicas utilizados para a sua construção, manutenção ou restauro, incluindo as pinturas e decorações típicas;
c) Adaptar as exigências de apetrechamento às características próprias das embarcações tradicionais.

3 – O regime de isenção de taxas previsto no n.º 1 abrange todas as taxas e emolumentos, incluindo os que se referem ao processo de licenciamento e à atividade das embarcações.

Artigo 3.º
Construção, manutenção ou restauro de embarcações

A construção, manutenção ou restauro de embarcações tradicionais que se destinem a fins recreativos, turísticos, culturais ou à pesca artesanal beneficia de um regime específico de apoio do Estado que consiste, nomeadamente:

a) No apoio económico e no incentivo fiscal ao desenvolvimento de actividades artesanais de construção, manutenção e reparação de embarcações tradicionais em madeira e às entidades que desenvolvam tais atividades, designadamente estaleiros de construção e reparação naval, clubes náuticos ou autarquias locais;
b) Na promoção do ensino e da formação profissional que contemplem planos de ação para a transmissão de saberes e técnicas tradicionais e para o estímulo às atividades profissionais envolvidas na construção, manutenção e restauro das embarcações tradicionais;
c) Na valorização e promoção social de atividades profissionais ligadas à construção e reparação naval artesanais e às demais atividades tradicionais associadas.

Artigo 4.º
Valorização do património cultural das embarcações tradicionais

1 – As entidades que desenvolvam atividades no sentido da preservação e valorização das embarcações tradicionais e das comunidades em que se inserem são apoiadas pelo Estado.

2 – Os apoios previstos no número anterior assumem, entre outras, as seguintes formas:
a) Apoio ao desenvolvimento de projetos de investigação, inventariação e musealização do património cultural material e imaterial das comunidades fluvio-marítimas;
b) Apoio ao desenvolvimento de projetos de parcerias nacionais e internacionais de promoção da cultura fluvio-marítima e de democratização das condições de acesso a essas expressões culturais;
c) Apoio ao desenvolvimento de projetos nas áreas de turismo cultural, de educação e sensibilização para o património, de promoção e reforço de identidades culturais e de diversificação da economia relacionados diretamente com embarcações tradicionais.

3 – O Estado deve promover o estudo e a investigação sobre as embarcações tradicionais portuguesas, nomeadamente nos estabelecimentos de ensino públicos, com vista à sensibilização e divulgação deste património.

Artigo 5.º
Valorização da Formação Profissional de Marítimos

O Estado deve apoiar, incentivar e disponibilizar a formação profissional de marítimos, contemplando a especialização na manobrabilidade de embarcações tradicionais, tendo em conta a sua especificidade e tipologia, e de acordo com as técnicas tradicionais.

Artigo 6.º
Regulamentação

1 – O elenco de embarcações previsto no artigo 1.º da presente lei é definido por Portaria do Governo, a publicar no prazo de 60 dias a contar da publicação da presente lei.

2 – O Governo procede à regulamentação específica da presente lei no prazo de 90 dias posteriores à publicação da presente lei.

3 – Para efeito da regulamentação prevista nos números anteriores, o Governo procede previamente à audição das associações e instituições ligadas ao setor, bem como dos municípios e freguesias onde se desenvolva atividade de construção, manutenção e restauro de embarcações tradicionais.

Artigo 7.º
Norma revogatória

É revogada a alínea f) do artigo 2.º, a alínea g) do número 1 e o número 5 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 149/2014, de 10 de outubro.

Artigo 7.º
Entrada em vigor

A presente lei entra em vigor com a Lei do Orçamento do Estado subsequente à sua aprovação.

Assembleia da República, 9 de março de 2017

  • Economia e Aparelho Produtivo
  • Assembleia da República
  • Projectos de Lei