Intervenção de João Ferreira, Membro do Comité Central, Conferência «II Centenário do nascimento de Karl Marx – Legado, Intervenção, Luta. Transformar o Mundo»

As inovações tecnológicas e a luta de classes

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Novas formas de exploração do trabalho e de apropriação das mais-valia no processo de acumulação capitalista: transformação tecnológica e centralidade do trabalho

A vocação histórica do capitalismo, a sua grande justificação histórica, é o aumento da produtividade social do trabalho humano. Expandir esta produtividade sem contemplações, nas palavras do próprio Marx. A introdução e o emprego generalizado das máquinas, que o tornou possível a uma escala sem precedentes, foi um dos grandes triunfos do capitalismo.

Repare-se que se são maiores as quantidades produzidas pelos trabalhadores, maiores poderiam ser os seus consumos, os seus meios de vida, o seu bem-estar. O aumento da produtividade cria as condições para o aumento real dos salários e para uma vida melhor, mas essa potencialidade é permanentemente posta em causa na sociedade capitalista em prol da defesa e aumento dos lucros.

Na concorrência entre capitalistas, cada um procura sempre cortar custos, para baixar preços e ganhar quota de mercado aos seus concorrentes, aumentando os seus lucros. A redução de custos pode ser feita genericamente pela redução dos salários, pelo aumento da intensidade ou da duração do tempo de trabalho – ambas com limites naturais e sociais impostos pelas necessidades biológicas de conservação da própria força de trabalho e, acima de tudo, pela resistência dos trabalhadores – ou ainda pelo progresso técnico. Esta última via torna-se central no longo prazo. Necessária para a empresa sobreviver e ainda mais para crescer.

A ciência é cada vez mais solicitada a actuar como “força produtiva directa”, entendendo-se por isso a sua instrumentalização para a actividade produtiva, necessariamente mediada por determinadas aplicações tecnológicas. As tecnologias mais avançadas, as ditas “de ponta”, são principalmente desenvolvidas sob a alçada ou a influência dos grandes monopólios, mesmo quando resultam de investigações levadas a cabo em universidades, institutos ou organismos públicos, como é frequentemente o caso.

As inovações técnicas são avaliadas em função do que permitem abater nos custos, para estabelecerem preços competitivos. Mas a nova técnica que aumenta o produto por trabalhador e diminui os custos necessita em geral de maiores investimentos em máquinas, em equipamentos, em instalações (mais capital fixo), aumenta a escala de produção, processa uma maior quantidade de matéria-prima, utiliza maior quantidade de energia e materiais auxiliares. O aumento do capital constante adiantado e da escala da produção é o meio de reduzir os custos na batalha de concorrência.

Ou seja, o desenvolvimento tecnológico aumenta a produtividade do trabalho, aumenta o produto por trabalhador, substitui força de trabalho por máquinas, diminui os custos laborais por unidade de produto, mas aumenta o capital constante em relação ao custo do produto. O capital variável (a força de trabalho) diminui em relação ao capital adiantado e ao valor produzido. A massa de mais-valia, criada pela força de trabalho, ainda que geralmente crescente, diminui também em relação ao capital investido. Resultado: a taxa de lucro diminui ou, mais rigorosamente, tende a diminuir.

As novas tecnologias, o revolucionamento científico e técnico da produção, sempre com o fito em cada empresa de aumentar a produtividade, cortar custos, baixar preços, ganhar quota de mercado, vencer a concorrência, aumentar os lucros, quando se generalizam, exactamente por força da própria competição capitalista, tendem a baixar a lucratividade de todas.

Daí o esforço de procurar tirar sempre mais, de extrair o máximo, de cada trabalhador, com a intensificação ou extensão do trabalho, e a tentativa de diminuir os encargos directos e indirectos, com a degradação dos salários, das contribuições sociais e das condições de trabalho.

A utilização capitalista das novas tecnologias pressiona a elevação dos ritmos de trabalho e a extensão dos tempos de trabalho, embaratece os bens e serviços produzidos, nomeadamente os meios de subsistência dos trabalhadores e com isso o valor dos seus salários reais, o valor da sua força de trabalho. Diminui a parte da jornada de trabalho em que os operários produzem o equivalente aos seus salários, aumenta a parte em que produzem o excedente (a mais-valia) que fica com o patronato. Aumenta o grau de exploração.

O conjunto notável e efervescente dos produtos e das tecnologias mais recentes, nomeadamente nas áreas das tecnologias de informação e comunicação, da automatização e da robótica, da informatização e da inteligência artificial, da eletrónica e da nanotecnologia, da engenharia genética e da biologia, entre outras, configuram um panorama de profundas alterações tecnológicas, eventualmente merecedor da designação de revolução científica e técnica, susceptível de modificar profundamente os tecidos produtivos, com profundas implicações na produção e na distribuição da riqueza, no emprego e na qualidade do emprego, na acção colectiva e na luta dos trabalhadores.

Novas formas de actividade, aparentemente muito modernas, como as plataformas digitais, por onde se busca e oferece trabalho, ou como certos trabalhos em rede, à distância, pela net, gabados porque feitos a partir de casa, frequentemente mais não fazem que reproduzir, no século XXI, desapiedadas e vergonhosas formas de exploração conhecidas do século XIX. Com a diminuição da resistência dos trabalhadores pela sua dispersão, a concorrência exacerbada entre eles, a intermediação rapace de empreiteiros de mão-de-obra, a irregularidade de ocupação, os encargos materiais a cargo dos próprios, a competição desleal com empresas providas de outros meios técnicos. Algumas destas formas de trabalho, face às praças de jorna de outrora, têm a agravante dos trabalhadores contactarem menos entre si, ficando mais desprotegidos.

A apropriação capitalista das novas tecnologias, com a substituição de trabalhadores por máquinas, a competição entre trabalhadores e máquinas, a pressão para a rentabilização dos capitais, impulsiona a exploração, reedita velhas formas de organização do trabalho e constitui um fortíssimo estímulo de precarização das relações laborais, com a generalização do trabalho irregular, a tempo parcial, a prazo, sem horários, sem condições, sem direitos, tantas vezes sem contrato.

Ao nível de cada empresa, o crescimento da produtividade representa sempre uma diminuição relativa do trabalho: consegue-se aumentar o produto sem aumentar o trabalho. Da mesma forma, à escala social, se a produtividade do trabalho crescer mais rápido que o aumento da produção, o emprego diminui e o desemprego aumenta. Não há semana em que não se divulguem na imprensa estudos, análises, opiniões, com previsões catastrofistas sobre as implicações das novas tecnologias no aumento do desemprego.

No quadro social capitalista em que se desenvolvem, as descobertas científicas e as inovações tecnológicas impulsionam, por um lado, a acumulação e centralização do capital, mas, por outro lado, frequentemente também uma desconcentração do trabalho, nomeadamente o desmantelamento de grandes concentrações operárias. Geram-se tensões e criam-se fracturas sociais, que também agravam os desequilíbrios regionais. As disrupções provocadas tanto no emprego como na acumulação de capital, seja com o desemprego sobretudo dos trabalhadores menos qualificados, a desvalorização da força de trabalho e o agravamento da exploração, seja com a expulsão de capitais mais fracos, a perda de rentabilidades e o agravamento da concorrência, induzem movimentos migratórios mais ou menos forçados de trabalhadores e de capitais, para países ou locais onde consigam sobreviver.

O crescimento da produtividade alimenta o exército de reserva do capital e contribui, por essa via, para a redução do custo da mão-de-obra. Cria desempregados por um lado e sobrecarrega o trabalho dos empregados por outro. Sob o capitalismo, as inovações técnicas suprimem directamente empregos, reduzem o valor da força de trabalho, degradam as relações laborais, atacam a coesão e a acção colectiva dos trabalhadores, eliminando barreiras ao agravamento da sua exploração.

Mas a dita revolução científica e técnica, ainda mais levada às últimas consequências dos seus arautos, não é o sonho dourado do capital.

A desconcentração do trabalho pode prejudicar a formação da consciência de classe mas não significa o desaparecimento do trabalho colectivo. As forças de trabalho continuam a estar em cooperação, em interdependência, em concertação, tendencialmente até crescentes. Alarga-se a socialização da produção. Alarga-se o campo de relacionamento dos trabalhadores uns com uns os outros. Antes dispersos por firmas diferentes passam a integrar firmas sob alçada de uma mesma estrutura societária. Negócios antes independentes passam a estar inseridos em processos produtivos coordenados por um mesmo capital. O desenvolvimento de um sofisticado software pode exigir o trabalho coordenado de milhares de trabalhadores. As tecnologias que permitem que trabalhadores em sítios diferentes trabalhem coordenamente, permitem também que, em alguma medida, contactem uns com os outros. Factor não dispiciendo para a dinamização da acção colectiva, a mobilização e a luta dos trabalhadores.

Leve-se também em conta que o capitalismo se defronta com várias dificuldades em incorporar o salto qualitativo das novas tecnologias. Um exemplo visível é o da reprodutibilidade informática sem custos ou com custos desprezáveis, proporcionando a apropriação gratuita de determinados produtos, mesmo que ilegal, por consumidores e fabricantes concorrentes. Produtos cujo desenvolvimento exigiu pesados investimentos e cuja remuneração fica assim posta em causa. Estamos perante um choque entre a potencial gratuitidade de amplos produtos e serviços e a mercantilização de tudo o que seja possível pelo capitalismo, a contradição entre as potencialidades tecnológicas de difusão gratuita e as relações de produção capitalistas, com os seus imperativos de rentabilização de capitais privados.

Mas outros problemas ainda mais graves para a reprodução capitalista são tendencialmente levantados. Se as novas tecnologias criam massivamente desemprego, se diminuem substancialmente o poder de compra dos trabalhadores, então agravam-se as dificuldades de realização da mais-valia (da sua conversão em dinheiro, que fornece os lucros dos empresários), visto que se restringem os mercados para a venda dos produtos. Se, no limite, substituíssem todo o trabalho humano vivo pelo “trabalho” das máquinas (elas próprias fabricadas por máquinas), caberia então perguntar, como num célebre diálogo entre um sindicalista e um patrão, como os capitalistas realizariam os seus lucros visto que as máquinas não compram nada.

Mas o problema vai ainda mais fundo, não apenas na realização, mas na própria produção de mais-valia. A substituição do trabalho por máquinas encolhe a fonte dos lucros dos capitalistas, que provém da diferença entre o valor criado pelos operários e o valor que recebem nos salários. No limite de uma completa substituição do trabalho humano por máquinas, a taxa de lucro seria zero e o capitalismo não seria possível.

A completa automatização é incompatível com a economia de mercado, com os lucros, com o capital, com a acumulação capitalista, com a sociedade capitalista. Se a eventual revolução científica e técnica permanecer subordinada à acumulação capitalista, à busca do lucro individualmente por cada empresa, então as próprias dificuldades de produção e de realização da mais-valia, para além das chagas sociais abertas, imporão limites incontornáveis ao seu desenvolvimento.

Sob o capitalismo, as novas tecnologias são instrumentalizadas pelo capital para agravar a exploração e dominar os trabalhadores. Tornam-se um instrumento de exploração, de opressão e de dominação, um instrumento do patronato na luta de classes. Essa, do ponto de vista capitalista, é a sua maior justificação social, quaisquer que sejam os panegíricos com que venha embrulhada.

Mas as novas tecnologias, em vez de tirarem o trabalho a uns e intensificarem e degradarem o trabalho de outros, poderiam, inversamente, ser desde logo utilizadas para uma significativa redução, sem perda de rendimentos, do tempo de trabalho de todos os trabalhadores, que reduzisse ritmos de trabalho, que disponibilizasse tempo de lazer sem retirar meios para o usufruir, que contribuísse seriamente para reduzir o actual desemprego. Uma redução do tempo de trabalho sem redução do salário nem das prestações sociais, que repartisse a carga de trabalho existente pelo conjunto dos trabalhadores.

Claro que esta seria uma lógica diferente, oposta à lógica capitalista, do aumento dos lucros. Uma lógica que colide com os interesses e com os rendimentos do grande capital, e cuja efectivação exigiria rupturas desde logo com a dominação monopolista.

Rupturas que passam por arrancar das mãos do capital monopolista empresas e sectores estratégicos, pelo seu controlo público, como prelúdio de um regime em que os grandes meios de produção, controlados e dirigidos pelos trabalhadores em vez dos capitalistas, aproveitassem plenamente as potencialidades das inovações tecnológicas para acabar com o desemprego, a miséria e as chagas sociais do capitalismo. Vale a pena realçar, a propósito, o importante papel que as empresas públicas nacionalizadas tiveram no desenvolvimento tecnológico em Portugal.

Noutro tipo de sociedade, organizada e orientada para a satisfação das necessidades e das aspirações dos trabalhadores e das populações em vez do lucro e da acumulação dos grandes capitalistas, numa sociedade socialista em lugar de uma sociedade capitalista, não há limite para o aproveitamento das potencialidades da ciência e da técnica. As descobertas científicas e as aplicações tecnológicas, em lugar de fornecerem condições e instrumentos de exploração e de opressão, de degradação e desqualificação do trabalho humano, serão factores fundamentais do aproveitamento e do usufruto mais completos das capacidades individuais e colectivas, um instrumento decisivo de emancipação humana.

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