Intervenção de Sérgio Ribeiro, Professor de Economia e membro do Comité Central, Debate Público «Fuga de capitais e o programa de agressão»

Fuga/circulação do capital e a crise do capitalismo

Começo por saudar, calorosamente, esta iniciativa, e os camaradas e os amigos que nela participam.

Debater a “fuga de capitais e o programa de agressão - empobrecimento e delapidação do país” tem a maior oportunidade e necessidade, tem grande urgência e pertinência (que alguns dirão impertinência…).

Só o facto de estar no estrangeiro me impede de corresponder à convocatória, que muito me honrou, mas não deixo de procurar contribuir para ela com uma curta reflexão.

Em primeiro lugar, parece-me justificar-se a reserva sobre a expressão fuga de capitais no seu sentido literal, embora se aceite, evidentemente e com toda a adequação, o seu emprego em sentido metafórico, plural e material.

É que… o capital não foge!

Desde logo, porque capital é, na sua essência, uma relação social entre quem se apropriou de meios de produção criados pelo trabalho, em processo histórico de séculos e milénios, (em relação) com os trabalhadores desapossados desses meios de produção e que apenas dispõem da sua força de trabalho, que se usa como mercadoria nas horas de que precisa trabalhar para si e nas horas que são mais-valia.

Naturalmente, a relação social tem expressão material, materializa-se em mercadoria e faz esta passar por várias metamorfoses, desde o capital-dinheiro trocado pelo capital-mercadorias/forças produtivas, usado como capital-produtivo para se transformar, de novo, em capital-mercadorias, agora com força de trabalho incorporada, para ser trocado por/realizado em mais capital-dinheiro.

Neste modo de produção, ao princípio é o dinheiro!, e ao fim tem de ser mais dinheiro. A circulação dos “factores produtivos” faz-se com esse objectivo e, não o de satisfazer necessidades humanas, a partir da natureza e dos seus recursos, colhidos e transformados pelo trabalho.

Capital-dinheiro no inicio, mais capital-dinheiro no fim. A reprodução e a acumulação.

Ora a “circulação dos factores produtivos” sempre condicionou a actividade económica e, neste contemporâneo modo de produção (contemporâneo e também histórico, porque não o fim da História!), essa circulação tornou-se determinante.

O capitalismo nasceu com as descobertas de caminhos marítimos (a que se refere o Manifesto do Partido Comunista, de1848…) e, no tempo dos caminhos de ferro, Marx fez a dissecação dos seus mecanismos motores, do seu funcionamento, com o automóvel a aproximar-se e o avião ainda longínquo.

A circulação veio melhorando, beneficiada e promovida pelo desenvolvimento das forças produtivas, onde é essencial a energia – muscular, vapor, carvão, petróleo, gás e outras fontes a ilustrarem uma cadeia histórica.

Tal como funcionou – com experiências e tenteios – até 15 de Agosto de 1971, o capital-dinheiro com base metálica circulava materialmente como qualquer outro “factor de produção”, tendo passado a ser, no capitalismo, o “factor de produção” de arranque do processo de produção. Porque o processo de circulação, em capitalismo, se inicia com o capital-dinheiro, como base material de que se parte para o processo total de produção capitalista… noutra terminologia, como financiamento da actividade económica.

Até que, em definitivo – se algo o é… –, Nixon, nesse referido 15 de Agosto de há 40 anos, decretou, unilateralmente, a inconvertibilidade do dólar, consagrando a “desmaterialização do dinheiro”, logo somada à crescente e desmesurada utilização do crédito com expectativas como fundo (ou sem quaisquer fundos…).

No entanto, nada acontece assim. Nada acontece por mera decisão de um homem, num gesto ou num acto isolado.

Se a circulação das mercadorias – ou dos “factores de produção” – se passou a iniciar com a troca da mercadoria-especial dinheiro, como expressão material do capital, e se, no final do processo, havia mais dinheiro – ou, não havendo, o sistema “entrava em crise” –, com essa “desmaterialização”, primeiro lenta e complicada, depois acelerada, e logo em verdadeira vertigem, o funcionamento do capitalismo alterou-se significativamente, sem que a sua substância, ou essência, se tivesse alterado. Como relação social que o capital é.

A circulação dos “factores de produção” fazia-se, e faz-se, no espaço. Sobre pernas, sobre rodas, por tracção humana ou animal, em cima de carris, em veículos movidos a vapor, a derivados do petróleo, a gás, a jacto. E esse espaço está dividido, historicamente, por muitos espaços, numa designação genérica por nações. Assim, a circulação tem estado condicionada pela propriedade nacional dos recursos, desses “factores de produção”. Também quando, e enquanto, na forma dinheiro.

Até recentemente, toda a actividade económica era nacional e inter-nacional. Passou por uma fase de multinacionalidade empresarial com a abertura de filiais e sucursais aproveitando a maior circulação “factores de produção”, e, depois da década de 80 do século XX, foi-se instalando o transnacionalidade financeira, nas novas condições objectivas da circulação e na exigência (e possibilidade material… e desmaterial) de livre circulação de capitais.

Na relação de forças sociais reflectida na organização dos Estados e das relações entre estes, esse objectivo e exigência, no caso do processo de integração económica europeia dos países capitalistas, teve de imediato expressão, com medidas “comunitárias” (logo a 6, os “fundadores”) a favor da institucionalização de maior liberdade da circulação dos capitais entre os Estados-membros.

Após os sucessivos alargamentos – 1972, 1982 e 1986 –, já configurando um núcleo super-integrado e uma periferia – os ditos “países da coesão” (hoje PIGS) a juntarem-se ao sul da Itália – na revisão do Tratado de Roma, o Acto Único apontou o objectivo de mercado interno, morigerado pela coesão económica e social para compensar os inevitáveis efeitos de desequilíbrios e assimetrias sociais e regionais resultantes das quatro liberdades de circulação definidas no mercado interno único, mormente de livre circulação de capitais.

Já em 1988 uma directiva (a 88/361) decretava a liberalização geral da circulação de capitais entre os Estados-membros. Mas as transformações ocorridas nessa viragem de década, o desastre da destruição dos países socialistas europeus, o Tratado de Maastrich, a criação da OMComércio, tudo aceleraram sob a capa de uma sigla – globalização.

O que transformou a decretada livre circulação de capitais, a partir de 1 de Julho de 1990, num primeiro passo para a União Económica e Monetária, metida na gaveta dos esquecimentos a tal coesão económica e social, por a relação de forças sociais, por um lado o permitir e, obviamente, por outro lado o não poder impedir.

Essa desgraçada década de 80 foi a da implementação – mãozinhas de veludo e botas ferradas – de uma fase do capitalismo, ao ganhar uma batalha da luta de classes, o que coincidiu (não por acaso…) com o neo-liberalismo e o monetarismo, na esteira da decisão de Nixon (melhor: do complexo industrial-militar dos Estados Unidos…) de tornar o dólar inconvertível, desligando o capital-dinheiro da sua base metálica.

As leis resultantes da crítica da economia política, feita por Marx, confirmavam-se, na realidade, com a composição orgânica do capital e a baixa tendencial da taxa de lucro.

Esta baixa tendencial, com as suas contra-tendências, procura ser contrariada pela intensificação da exploração que aumente a mais-valia criada na etapa produtiva da circulação, e também através do acréscimo da injecção e circulação de dinheiro fictício e do crédito. O que a circulação do capital, sob a forma dinheiro, veio facilitar. Em vez de se transportarem notas e moedas, cuja ligação a bases materiais, metálicas, se ia perdendo, um simples telefonema, cliques em computadores passaram a facilitar a chamada circulação de capitais. E estes, se, metaforicamente, fogem de onde não conseguem as taxas de exploração capazes de compensar as leis objectivas, na verdade correm para/perseguem lugares onde se multipliquem ou porque a exploração é mais fácil, ou sem terem de produzir valores de uso, apenas especulando.

A livre circulação de capitais veio tudo facilitar. A criação de uma União Económica e Monetária, com a moeda única e o Banco Central único, é episódios desta cavalgada de desmaterialização, não da economia mas das finanças pois afasta cada vez mais o circuito monetário fictício e creditício do circuito da economia real, para cujo acompanhamento aquele teve origem e razão de ser.

O que apenas é possível por demissão do controlo político nacional sobre os movimentos, não de livre mas de libertina circulação, enquanto as outras liberdades de circulação, sobretudo a de trabalhadores, se constrangem, quando conveniente, e não importa com que violência.

Assim os Estados, reflectindo a relação de forças sociais, desmascaram a sua função ao serviço do capital, fazem tábua rasa de salvaguardas de interesse nacional (como as golden shares), abdicam de soberania política.

Cresce o empobrecimento das populações, a pauperização é outra lei que se confirma (sobretudo enquanto considerada relativamente ao que a Humidade conquistou para os humanos), destroem-se com bombardeamentos humanitários os recursos das nações, tudo isso se é o que serve a multiplicação dos capitais financeiros e se adia o inevitável desastre para que este funcionamento da economia nos atira.

Só a força das massas, dos trabalhadores e das populações, travará este caminho, estas políticas suicidárias e humanamente criminosas. Quanto mais tarde, quanto maior o desgaste e a delapidação.

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