Intervenção de

Estatuto da vítima em processo - Intervenção de Odete Santos na AR

Criação de um regime de mediação penal, em execução do artigo 10.º da Decisão-Quadro n.º 2001/220/JAI do Conselho, de 15 de Março de 2001, relativa ao estatuto da vítima em processo

 

Senhor Presidente
Senhores Deputados

 

O artigo 10.º da decisão quadro do Conselho sobre o estatuto da vítima em processo penal, a que se pretende dar execução através desta proposta de Lei, recomenda aos Estados membros a promoção em processo penal da mediação, impondo-lhes que assegure eventuais acordos obtidos nessa mediação, entre vítima e infractor.

A Decisão quadro deixa aos Estados membros a definição de quais os crimes que poderão ser resolvidos através da mediação, e não aponta qualquer sistema da mesma.

Assim, não fica de fora a possibilidade de ser introduzido um sistema de mediação dentro da própria administração judiciária. O que, aliás, também é admitido pela Recomendação do Comité de Ministros do Conselho da Europa.

Uma finalidade é óbvia: a decisão quadro do Conselho Europeu recomenda a justiça restaurativa como melhor forma de reforçar o estatuto das vítimas em processo penal.

Mas a justiça restaurativa não impede que se insira no modelo estatal do sistema de justiça.

Aliás, o nosso Código do Processo Penal já contém disposições que radicam num sistema de justiça restaurativa, assente na responsabilização do infractor, e menos na sua punição, assente na defesa da comunidade, da coesão social. Também o Código Penal já aponta, há muito, para soluções que privilegiam os interesses da vítima em relação aos interesses do Estado, em solução que agrega o jus puniendi a soluções de justiça restaurativa. Vide os artigos 909.

A justiça restaurativa, feita aliás de vários modelos, já não se reconduz, tão só ás primitivas finalidades baseadas nas práticas restaurativas das sociedades comunais e pré-estatais controladas.

A justiça restaurativa ganhou impacto por força dos movimentos de contestação de políticas repressivas que se substituíram às políticas sociais, por força do ênfase na comunidade contra um Estado punitivo.

As análises sociológicas das últimas 2 décadas (Veja-se Vacquant- As prisões da Miséria) provam que a Europa se debate com um conflito entre o Estado penitência armado de um aparelho penal intrusivo e omnipresente, e a via de criação de um Estado social, digno desse nome.

Assim, a este Estado punitivo e não reabilitador (a reinserção social para muitos não passa de uma quimera) deveria substituir-se a Justiça restaurativa, com outrtos contornos diferentes dos iniciais. Uma justiça diferente, humanista e não punitiva.

Que muitos desejam (e mal) dissociada do Estado.

De facto, a justiça restaurativa, nalgumas formas em que se mostra desinserida do sistema de justiça (porque há várias, recorde-se) surge conspurcada pelos ideais neoliberais, já que corresponde a uma hipotrofia das funções soberanas do Estado, e a uma hipertrofia da criminalização da crise social.

A Comunidade, também sujeito na justiça restaurativa, mas sem substituir O Estado, dificilmente se aperceberá de que se encontra perante um Estado responsável (contexto social típico da justiça restaurativa) em vez de um Estado opressor (contexto social típico de um Estado punitivo).

Surge assim, a mediação, porque desvirtuada no contexto social que a rodeia, mais como forma de privatizar funções soberanas do Estado, do que como forma dessa tal justiça diferente, humanista, que tem de se alimentar do Estado Social que se alimenta da soberania.

E é pena. Porque, para além do mais, a justiça restaurativa prossegue também uma outra finalidade- a de reinserção social.

Na proposta de Lei a mediação surge desinserida do sistema estatal de Justiça. Por isso a moldura penal nos parece muito elevada.

Uma justiça restaurativa desinserida do sistema estatal de Justiça terá de remeter-se apenas ao tratamento de delitos secundários e incivilidades.

O que não acontece na presente proposta de lei que envereda por uma posição maximalista (sem, no entanto, dar o outro passo absolutamente necessário - manter a mediação no sistema estatal da Justiça.

Com efeito, tendo em atenção já as propostas de alteração do Código penal, verificamos que, por exemplo, dois crimes graves (a violação de segredo por funcionário) e a subtracção de menores (entre os 16 e os 18 anos) com violência ou ainda que sem violência no caso de o arguido determinar menor a fugir, podem ser sujeitos a mediação.

Nada se lucra com mais uma privatização na área da Justiça. Está por provar que se gaste menos com esta privatização.

Está por provar que os mediadores, com formação que terá de ser muito exigente (e nada se sabe acerca disto), os mediadores com qualquer licenciatura, desempenhem melhor as suas funções, do que o Ministério Público e os seus funcionários. Está por provar que se consigam ganhos de tempo significativos na marcha dos processos.

 O que, aumenta, isso sim, é a rede de controlo social com duvidosos ganhos em termos de reinserção social. Porque as inevitáveis e quase impossíveis de conter, violações á regra da proporcionalidade, não deixarão de cavar a conflitualidade.

A proposta de lei desconhece novos caminhos na Justiça restaurativa.

É que, como diz Milène Jaccoud ," Na actualidade, o sistema de justiça tem a tendência de integrar iniciativas restaurativas que se juntam às sanções punitivas sem para tanto se transformar."

Disse.

 

 

 

 

 

 

 

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