"Estamos a abrir caminho à construção de uma democracia avançada"

Entrevista a Carolus Wimmer, Secretário de Relações Internacionais do PC da Venezuela e Vice Presidente do PARLATINO
Avante Edição N.º 1909, 01-07-2010

Aproveitando a presença de Carolus Wimmer em Portugal, o Avante! entrevistou o dirigente do Partido Comunista da Venezuela (PCV), que abordou alguns dos temas mais actuais da situação política e social na Venezuela, o reforço do Partido entre a classe operária e os trabalhadores e as próximas eleições no país.
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Avante!: Na Venezuela está um curso um processo revolucionário com características próprias. No contexto da crise capitalista, tem-se dito que o crescimento do país abrandou, que as transformações político-económicas fazem abrandar a economia e prejudicam as respostas às consequências da crise. Mas o governo venezuelano contraria esta interpretação e apresenta resultados positivos, por exemplo, no combate à pobreza e à exclusão social, e na redistribuirão de riqueza. Que outros dados nos podes fornecer?

Carolus Wimmer: É natural que a crise do capitalismo também afecte a América Latina. Mas é devido ao processo bolivariano, que começou há 11 anos e procura tornar-nos mais soberanos face às grandes potências capitalistas, que o impacto da crise internacional não tenha o mesmo efeito na Venezuela que em outros países.
Antes do processo revolucionário, vivíamos em dependência económica, científica e comercial quase completa face aos EUA. Em pouco tempo, redireccionámos a nossa política externa para a integração latino-americana, isto é, orientámo-nos para a diversificação das relações com o objectivo de consolidar uma política económica e comercial multipolar.
Esta multipolaridade implicou o estabelecimento de relações com nações de outros continentes, como a China, a Rússia, a Índia, ou países da Europa e de África, diversificação de laços que atenuou o impacto da crise, o qual seria seguramente bem maior caso mantivéssemos a dependência face aos EUA.
Evidentemente que também tivemos que aplicar as chamadas medidas de austeridade, mas estas recaíram na sua esmagadora maioria sobre o aparelho burocrático. Todos os ministérios tiveram que cortar nos gastos desnecessários, nas despesas de representação, nos luxos e nas festas.
No essencial, o PCV apoia estas medidas uma vez que o garrote na despesa do Estado fica por aqui. Desde logo ficou claro que não se mexia em nada que dissesse respeito à despesa com a política social. Por isso, ao contrário da maioria dos países capitalistas avançados, este ano os salários aumentaram na Venezuela, bem como as pensões e reformas. Aumentámos o investimento na educação, na saúde, na cultura e no desporto Recentemente fomos ainda mais longe e acabámos com as restrições nas pensões de viuvez. Agora, os cônjuges sobrevivos recebem 100 por cento da pensão contra os cerca de 60 por cento a que tinham direito antes.
Tudo isto foi decidido num ano em que a crise também nos afecta, demonstrando que se implementa de facto uma política progressista cujo objectivo é melhorar as condições de vida e de trabalho dos venezuelanos.

Falaste de investimentos. Alguns têm sido feitos no fornecimento de energia eléctrica, sector deficitário na Venezuela…

Justamente, o sector da energia eléctrica tem sido dos mais contemplados dado que nos encontrávamos num ponto crítico. Fomos desde sempre um país produtor de petróleo, mas as fontes principais de produção de electricidade são as centrais hidroeléctricas. Como não choveu durante quase dois anos, os níveis das barragens baixaram muito com consequências naturais na produção de energia eléctrica. Ora, neste contexto, o governo bolivariano foi obrigado a investir na compra e construção de termoeléctricas um pouco por todo o país. O problema ainda não está resolvido, mas cada vez mais se caminha nesse sentido, inclusive nas zonas rurais, nas regiões do interior, onde nem sequer havia luz.
No contexto de uma crise que, repito, também afecta a Venezuela, este exemplo elucida a forma como respondemos. Em todas as áreas implementamos medidas que elevem a vida do povo trabalhador.
Noutros planos essa orientação também se revela. Não se regista crescimento do desemprego, nem despedimentos massivos nos sectores público ou privado. Há uma efectiva estabilidade laboral que obriga quer as empresas públicas quer as privadas. Neste momento, ninguém pode despedir trabalhadores sem uma justificação excepcional, isto é, por razões económicas [quebra na produção ou no volume dos lucros] ninguém pode despedir um trabalhador.
Luta de classes

Nesta resposta que a Venezuela está a dar à crise capitalista, identificam-se as consequências das nacionalizações de sectores estratégicos levadas a cabo pelo governo bolivariano. É um caminho a prosseguir?

As nacionalizações resultam da luta de classes na Venezuela. Estamos a implementar um processo revolucionário com o objectivo de garantir o bem-estar do povo trabalhador e, assim, alguém tem de ser sacrificado.
Esse alguém é o capital, as grandes empresas nacionais e multinacionais que hoje são obrigadas a cumprir normas tão básicas como o pagamento de impostos – que antes não pagavam -, a melhorar os salários e as condições laborais.
Obviamente que o capital, cujo objectivo e razão única é o lucro, resiste a essas medidas e orientações estratégicas. Muitos optaram pela sabotagem ou pelo não cumprimento da lei.
Os casos mais evidentes são as empresas do sector alimentar, que não aceitam as novas condições impostas pelo Estado. Algumas declaram-se em lockout ou tratam de vender a produção ao exterior, o que implica com a segurança alimentar do país. Foi por isso que o governo se viu obrigado a intervir, a tomar conta de empresas que não produziam ou que violavam permanentemente a legislação.
Temos que recordar que nos anos 80 e 90 do século passado, as políticas neoliberais privatizaram tudo com o argumento da ineficiência do Estado. Agora, empresas fundamentais dos sectores da comunicação, energia ou alimentar tiveram que sair das mãos privadas. Não se nacionaliza porque sim, como se quer fazer crer. Decide-se tendo em conta as empresas que se recusam a colaborar com o desenvolvimento do país; que rejeitam cumprir a prioridade do fornecimento de bens e serviços aos venezuelanos; que especulam nos preços, como no sector alimentar. Neste último caso, primeiro adverte-se a empresa, e só depois se avança para a nacionalização, a qual se processa através da compra, e não da expropriação, como também se diz.
Tudo isto tem subjacente uma linha política de resposta às investidas contra-revolucionárias, como as que se passaram igualmente no sector financeiro. Muitos bancos davam sinais de poderem destruir o sistema na Venezuela. Há cerca de uma semana, foi nacionalizado o 6.º banco venezuelano, e a razão foi simples: estava totalmente falido porque os proprietários sacaram os recursos existentes, os depósitos das pessoas, e levaram esse capital para fora do país.
No que diz respeito aos bancos e às empresas nacionalizadas deixa-me sublinhar um outro aspecto. Actualmente, os responsáveis por fraudes ou operações danosas são levados perante a justiça, como deveria acontecer em qualquer país democrático. Acabou a impunidade. Está claro que muitos fogem para os EUA ou para a Europa, onde encontram cobertura face aos pedidos de extradição solicitados pelas nossas autoridades judiciais.

Transformações profundas

O Partido Comunista da Venezuela defende a implementação de uma nova Lei Orgânica do Trabalho e do aprofundamento do processo de constituição dos Conselhos Socialistas. Qual é o objectivo dessas propostas?

A Lei Orgânica do Trabalho ainda não foi aprovada no Parlamento. O camarada Oscar Figuera [secretário-geral do PCV] era presidente da comissão parlamentar que preparou o anteprojecto, mas a proposta foi travada. E porquê? - porque já pressupõe uma fase de transição do capitalismo para o socialismo. Na Venezuela, ainda não estamos no socialismo. Eu diria mesmo que estamos muito longe, mas, apesar dessa análise, estamos em pleno processo revolucionário visando a superação do sistema capitalista. Esta não é uma lei reformista.
Então a luta que travamos, no parlamento, com os trabalhadores, nas fábricas e nas ruas, é para que essa lei seja aprovada. A nova Lei Orgânica do Trabalho está interligada com a outra realidade de que falaste, a da constituição dos Conselhos Socialistas de Trabalhadores, cujo objectivo é não apenas avançar nos direitos de quem trabalha, mas no controlo operário dos meios de produção.
Mas já existem vários exemplos da participação dos trabalhadores na gestão das empresas na Venezuela…
Sim, já existem, mas resultam do trabalho político do Partido Comunista, da pressão popular e dos trabalhadores, do aumento da consciência das massas que levou à exigência de que, nas empresas do Estado, se configurassem alterações nas relações de produção.
O caso emblemático é o da SIDOR, a siderurgia nacional, onde nas últimas semanas foi eleita, pela primeira vez, a direcção da empresa pelos próprios trabalhadores. Antes era o governo a designar os directores, que habitualmente nem sequer pertenciam aos quadros da empresa. Hoje, há essa visão de que são os trabalhadores que elegem e supervisionam a administração, o que é já um grande avanço nas normas de um Estado capitalista no qual a maioria das empresas ainda conserva as relações de produção próprias desse sistema.
São, portanto, experiências que decorrem na Venezuela. Através delas, estamos a abrir caminho à construção de uma democracia avançada, a qual implica que os trabalhadores controlem os meios de produção e intervenham nas decisões respeitantes às empresas.
Reforçar o Partido
entre os trabalhadores
Numa entrevista feita na Festa do Avante! de há dois anos, o camarada Yul Jabour sublinhava que uma das orientações centrais do PCV era o reforço do Partido nas empresas. Essa orientação mantém-se?
Sim, continua, a par da luta pela unidade sindical. Deixa-me voltar um pouco atrás para que se perceba.
Nos anos 80 e 90 a burguesia conseguiu destruir o movimento sindical de classe na Venezuela. Quando iniciámos a revolução bolivariana, restavam grupos muito corruptos, que de nenhuma forma representavam os trabalhadores.
Em 2001, procurou-se criar uma confederação sindical e nesse momento o PCV fechou as portas do seu próprio sindicato, estrutura que surgiu na sequência da ilegalização do Partido nos anos 60. Fizemo-lo a favor da unidade sindical.
Depois disto, houve um período em que fomos praticamente excluídos. É nessa sequência que fundámos a Corrente Classista dos Trabalhadores «Cruz Villegas», um instrumento de acção em prol do reforço da unidade sindical.
No ano passado realizou-se um congresso da União Nacional dos Trabalhadores da Venezuela (UNT) donde saíram avanços sólidos, pesem embora as dificuldades do facto de ali estarem representadas várias correntes ideológicas.
O PCV tem nesta área duas tarefas fundamentais: a primeira e prioritária é a construção do movimento sindical de classe. Esta é a tarefa dos comunistas, não do governo. Nesse sentido, tomámos medidas concretas para concentrar e tornar mais eficaz o trabalho.
Em segundo lugar, definindo-nos como partido da classe operária, estamos empenhados na construção do Partido dentro das empresas. Pensamos que num processo político revolucionário as reivindicações de carácter sindical nem sempre são suficientes. É necessário ter Partido nos locais de trabalho para dar as respostas que se impõem, é preciso reforçar e aumentar o número de células de empresa. Esta é a nossa linha e até agora avançamos com sucesso.
Claro, considera que na Venezuela, esse é um trabalho encoberto, porque nas empresas somos obrigados a trabalhar na semiclandestinidade.
Essa semiclandestinidade é forçada pelo patronato?
Claro, claro. Na América Latina, assumir uma posição do género dentro de uma empresa ainda se paga com a vida. O ano passado, na Venezuela, foram assassinados vários dirigentes sindicais.
O PCV é um partido responsável e, por isso, procura proteger os seus quadros.
Campanhas sujas do imperialismo
Desde o início das transformações revolucionárias bolivarianas, a Venezuela tem sido alvo de permanentes campanhas mediáticas. O povo venezuelano tem sempre respondido com apoio crescente ao executivo de Hugo Chávez. Isso demonstra um crescimento da consciência anti-imperialista?
Sem dúvida que sim. Nos últimos 11 anos vivemos a cruel realidade da luta de classes e da ingerência imperialista.
Por exemplo, no golpe fascista de 2002, houve muitos que ficaram surpreendidos porque achavam que no século XXI esse tipo de golpes já não era possível. Amplos sectores do povo tomaram então consciência do que os comunistas vinham alertando, de que afinal os «dinossauros» tinham razão ao apelarem à vigilância.
De igual forma podemos falar da sabotagem na empresa de petróleo que se seguiu ao golpe. Faltava comida nos supermercados, os telefones falhavam, e o intuito era claro: forçar os venezuelanos a rejeitarem Chávez. De tudo isto saiu o povo vitorioso e com grande auto-estima.
Seguiram-se outras campanhas em vagas sucessivas, como a da RCTV, que não era uma questão de liberdade de expressão, como ficou provado, mas de democratização do espaço radiofónico existente para meios privados, estatais, institucionais e alternativos ou comunitários; ou a do movimento dos estudantes, apresentados como um amplo espaço mas que, na verdade, estava confinado a escassas centenas de jovens liderados por um estudante que recebia uma bolsa de uma fundação norte-americana. Os estudantes foram convidados a ir ao parlamento e apresentarem as suas reivindicações. Que outro país do mundo lhes faria isto? Não quiseram. Esfumaram-se.
Mais recentemente foi a campanha da electricidade. O tema cresceu porque se pretendia que, no próximo dia 26 de Setembro, não houvesse luz e as pessoas votassem contra Chávez. Fracassou porque o governo, embora tarde, avançou na compra de termoeléctricas. Depois desta começa outra campanha, a da alimentação. As empresas capitalistas não produzem, armazenam os géneros ou vendem-nos ilegalmente.
De tudo isto, ao contrário do que se pretendia, tem saído o povo e o processo bolivariano fortalecido. A consciência crítica das pessoas elevou-se.

Unidos nas eleições

Referiste as eleições de 26 de Setembro, como é que o PCV as vai abordar?

Durante quatro meses decorreram conversações com o Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV). No final, chegámos a uma aliança entre socialistas e comunistas na maioria dos Estados e distritos. Este acordo foi muito importante porque criámos um bloco comprometido com as transformações revolucionárias.
Em 22 regiões num total de 24, nós inscrevemos os candidatos do PSUV e o PSUV inscreveu os do PCV, quer nas listas para a Assembleia Nacional, quer para o Parlatina (Parlamento Latino-Americano).
Nas eleições para o parlamento venezuelano, queremos alcançar uma maioria de dois terços para podermos avançar com as necessárias alterações às leis fundamentais, tais como a Lei Orgânica do Trabalho, de que já falámos.

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