Apreciação Parlamentar N.º 41/XII-2ª

Do Decreto-Lei n.º 232/2012 de 29 de outubro, que «aprova o processo de privatização da ANA – Aeroportos de Portugal, S. A.»

Publicado em Diário da República n.º 209, Série I, de 29 de outubro de 2012

A ANA Aeroportos cumpre desde 1979 as responsabilidades das infraestruturas aeroportuárias do nosso País, áreas de enorme interesse público para a economia e a própria soberania nacional. Desde então a ANA tem revelado ser, não só um instrumento adequado para o serviço público de apoio à aviação civil, mas também uma importante fonte de receitas para o Estado neste sector.

A ANA é uma empresa que contribui por múltiplos e importantes fatores para o desenvolvimento nacional. A sua privatização, apontada por este decreto-lei, significa mais um passo no caminho de desastre para o qual 36 anos de política de direita têm conduzido o país.

Importa recordar o que representa esta empresa, que o Governo quer vender por ajuste direto. Trata-se de alienar a gestão e o controlo dos Aeroportos de Lisboa, Porto, Faro e Beja, bem como dos Aeroportos das Regiões Autónomas dos Açores e (através da ANAM) da Madeira; trata-se de alienar a Portway, uma das duas empresas nacionais de handling; trata-se de alienar a empresa mais decisiva para a operação da TAP e da SATA; trata-se de alienar uma empresa pública lucrativa e que tem assumido, praticamente sozinha, toda a modernização e investimento na rede aeroportuária nacional.

Nesta apreciação parlamentar, destacamos um conjunto de factos que, só por si, deveriam ser suficientes para determinar a manutenção da propriedade pública do Grupo ANA.

1. Uma empresa que contribui diretamente para o Orçamento do Estado

O Grupo ANA contribui anualmente para o Orçamento de Estado com largos milhões de euros. E ainda realiza um enorme volume de investimentos, em nome do Estado Português. E paga um elevado volume de impostos, ao contrário da generalidade das grandes empresas privadas.

Foi precisamente devido ao facto de a ANA ser uma empresa pública que a modernização dos Aeroportos Nacionais ocorreu sem que o Estado tenha despendido quaisquer verbas, e sem que o Estado tenha ficado sobrecarregado de dívidas para os próximos 30 ou 40 anos – ao contrário do modelo das Parcerias Público-Privadas seguido na gestão das infraestruturas rodoviárias.

O Governo afirma espantosamente que uma das “vantagens” de privatizar a ANA é que a ANA passará a fazer o investimento… que hoje a ANA já faz. Com uma diferença: hoje as prioridades de investimento têm critérios nacionais; com a privatização, passam a estar subordinados a interesses privados e à lógica do lucro.

Fala-se da importância da receita pela qual o Governo se propõe alienar a empresa. Ora, só em resultados líquidos e em realização de investimento público, a ANA em dez anos ultrapassou esse valor (respetivamente 366 e 1272 milhões de euros). Mas importa ter ainda em conta que, no mesmo período de dez anos, o Grupo ANA foi ainda responsável pelo pagamento de mais de 200 milhões de euros de IRC.

Ou seja, mesmo no quadro das meras relações diretas com o Orçamento de Estado, o Governo promove um encaixe conjuntural para os cofres do Estado, à custa de uma enorme redução de receitas e aumento de encargos para os próximos anos. Se somarmos a esta capacidade de gerar receita a realidade de a ANA deter ainda ativos fixos tangíveis de cerca de 800 milhões de euros, resulta clara a motivação e o interesse dos grupos económicos que esta operação pode suscitar. Estamos evidentemente perante um negócio ruinoso para o interesse nacional, mas uma oportunidade única para os interesses privados.

2. Um importante fator de coesão nacional e soberania gravemente ameaçado

O caráter público da ANA determinou uma política de investimentos que tem sido um importante contributo para a coesão nacional. Permitiu financiar, modernizar e desenvolver a rede aeroportuária das regiões autónomas, sem níveis significativos de comparticipação estatal.

O caso mais significativo é o da rede aeroportuária dos Açores, que sendo deficitária na perspetiva económico-financeira neoliberal, dá um enorme contributo para o desenvolvimento da região e das suas populações. Da mesma forma, os investimentos no Aeroporto do Porto (455 milhões de euros entre 2001 e 2011) permitiram torná-lo um grande aeroporto europeu, e superar os seus défices crónicos de tal forma que agora até o grande capital da região já reivindica a gestão de uma infraestrutura que nunca se propôs desenvolver.

Nada disto teria acontecido se os dividendos gerados na exploração do Aeroporto da Lisboa tivessem sido absorvido pela distribuição de dividendos a um qualquer acionista privado. Nada disto acontecerá no futuro, exceto se o Estado assumir, como já acontece atualmente noutros sectores, todo o investimento, todos os custos de todos os aeroportos «deficitários» e todos os riscos dos futuros investimentos. De resto, o principal problema que hoje está criado na Madeira é aliás o gravíssimo endividamento que resulta precisamente de uma gestão (e de uma política de investimento e financiamento) de forma isolada e desintegrada da rede nacional, com a ANAM a impor taxas aeroportuárias ao dobro do valor médio nacional.

Com esta opção da privatização, o que se coloca em termos reais (e independentemente das localizações das sedes sociais e domicílios legais) é a ameaça concreta da transferência de centros de decisão deste sector para o estrangeiro, subordinando este elemento crítico ao nível da segurança e da própria soberania nacional – como é a rede aeroportuária de um país – às agendas e objetivos de grupos económicos transnacionais.

3. Um monopólio privado que ameaça o futuro de todos os setores envolventes

Com a privatização da ANA está-se a entregar a um grupo de capitalistas o controlo de todos os aeroportos do país, numa posição completamente monopolista. Esta posição monopolista ameaçará todas as atividades económicas dela dependentes, permitindo uma política de taxas aeroportuárias e gestão de “slots”, por exemplo, com evidentes riscos para o turismo nacional.

O Governo poderá depois desdobrar-se em leis e regulamentações com cláusulas de salvaguarda e outros normativos afins. Mas estes riscos colocam-se no quadro do transporte aéreo, onde as entorses que já hoje acontecem tratando-se de duas empresas públicas, por ausência de uma estratégia nacional de desenvolvimento e serviço público, tenderão a agravar-se significativamente com a política de taxas, tarifas e contratos da ANA dominada pelo objetivo do máximo lucro.

A TAP continuará a ser o maior cliente da ANA e estará obrigada a pagar as taxas que esta determinar, assim como a SATA. Já as companhias estrangeiras, designadamente as chamadas “low cost”, essas para o Governo «precisam de ser atraídas», e logo tendem a beneficiar de taxas mais atraentes e muitas outras vantagens financiadas pelo erário público. Da mesma forma, quem recorrer aos serviços de assistência em escala (vulgo handling), prestados pela empresa deste grupo, tenderá a beneficiar de um preço de conjunto na definição das taxas aeroportuárias. Tudo isto sempre em benefício do capital estrangeiro e sempre em prejuízo do nacional, sejam trabalhadores ou empresas.

Mas os riscos do monopólio são muito maiores e extravasam para todos os sectores económicos, a montante e a jusante da atividade aeroportuária. Nomeadamente, o sector do turismo é aquele onde de forma mais evidente se colocam os riscos desta opção, pois muita da sua receita está diretamente ligada ao transporte aéreo de turistas.

4. Intensificar a exploração dos trabalhadores

A privatização da ANA representará uma intensificação do processo em curso de exploração dos trabalhadores do sector aéreo, com a pressão para a maximização dos lucros, a promoção da precariedade, da subcontratação, da desregulamentação dos horários, a redução salarial e o ataque à contratação coletiva.

O grupo ANA representa um conjunto de cerca de 2800 postos de trabalho diretos, auferindo remunerações em média superiores à média nacional. Para quem, como o PCP, desde há muito vem sublinhando que o problema do país se encontra nos salários baixos, o quadro salarial do Grupo ANA aparece como um elemento positivo. Ora, é uma evidência que, com a privatização da empresa, se acelerará a pressão para a degradação de salários e direitos, pelas conhecidas lógicas da busca da máxima exploração para alcançar o máximo lucro. Na mitologia neoliberal, a gestão privada busca o incremento dos lucros através de uma “gestão moderna e dinâmica” – mas a realidade do capitalismo em Portugal é que essa busca se faz pelo prolongamento da jornada de trabalho e pela redução da remuneração da força de trabalho.

E importa ter presente que as reduções da massa salarial que acompanham os processos de privatização se fazem para promover a rentabilidade do capital (veja-se os casos da EDP e da GALP) e não para promover uma mirífica redução das taxas cobradas aos restantes operadores económicos e dos preços finais praticados. São processos que por esta via acabam por degradar financeiramente e de forma significativa a Segurança Social, para a qual hoje os trabalhadores do Grupo ANA contribuem com cerca de 40 milhões de euros anuais – pois traduzem-se no envio para a reforma antecipada de trabalhadores com salários mais elevados, que são substituídos por trabalhadores com menores salários, deixando a Segurança Social com mais despesa (em pensões de reforma) e menos receita (em contribuições de trabalhadores no ativo).

5. A mistificação da suposta “supremacia da gestão privada”

O desempenho da ANA Aeroportos enquanto empresa pública, com resultados crescentemente positivos e uma qualidade técnica reconhecida e até premiada internacionalmente, é uma realidade que faz cair pela base o mito da "supremacia da gestão privada".

E isto apesar de a empresa apresentar uma realidade comum a praticamente todo o setor público em Portugal: anos e anos de administrações que assumem como principal objetivo preparar as empresas para serem privatizadas; anos e anos de administrações submetidas a um poder político que confunde o interesse nacional com os interesses das classes dominantes.

O que precisa de ser corrigido na gestão dos aeroportos são essas mesmas políticas e opções, que levam por exemplo a que a ANA contrate hoje perto de 30 milhões de euros de serviços exteriores que poderiam ser realizados por trabalhadores contratados na empresa; que impuseram que a ANA pagasse as dezenas de milhões de euros que os sucessivos projetos de novos aeroportos de Lisboa já custaram em estudos, projetos e consultadoria; que levaram a empresa a uma política de favorecimento das companhias “low-cost”; que colocaram as duas empresas públicas de handling numa luta fratricida uma contra a outra, em prejuízo da ANA e da TAP e dos seus trabalhadores e em benefício das empresas estrangeiras; que crescentemente têm passado de uma lógica de contratação coletiva para a imposição aos trabalhadores de sucessivos roubos nos salários e direitos, etc.

6. Uma concessão que se arrisca a ser um pesadelo para as futuras gerações

No quadro da falta de transparência com que todo este processo está a ser tratado (onde abundam as palestras para a imprensa e as “fugas de informação controladas”, mas falta o esclarecimento e prestação de contas a quem de direito), não se conhece ainda os pormenores do contrato de concessão entre o Estado e a ANA. Sabe-se que tem sido (ou ainda agora estará a ser) fabricado, como se de um contrato entre duas entidades públicas se tratasse mas na realidade definindo as bases da concessão por 40 ou 50 anos a um grupo capitalista.

De resto, o que se verifica é que a abordagem de partida e dominante em praticamente toda a discussão pública sobre esta empresa e o seu futuro está a ser inquinada e deturpada de uma forma inaceitável: o que se coloca em causa é se sim ou não, e em que termos, a União Europeia e o EUROSTAT aceitam integrar a receita do “negócio da concessão” à ANA Aeroportos para efeitos de contabilização do défice das contas públicas. Temos assim que, para esse discurso dominante e para o poder político e económico, uma empresa estratégica para o país como esta, e um recurso estratégico como é a rede aeroportuária, são tratados como se a sua importância fosse de meio ponto percentual no défice.

Este cenário, de “concessão mais privatização”, vem novamente evidenciar todos os riscos das PPP. E não colhe a costumeira profissão de fé de que a próxima PPP será altamente vantajosa para o Estado, ao contrário de todas as anteriores. Aliás, o Decreto-Lei n.º 33/2010 de 14 de Abril, que previa as bases para a concessão da ANA, já clarificava que perante qualquer situação que, na perspetiva da concessionária, resultasse em perda de receitas ou aumento de despesas (incluindo leis ambientais ou de segurança a nível nacional!), esta poderia notificar o Governo e impor um processo de “negociações”. Tal processo definiria num prazo de 90 dias em que supostamente «de boa fé seja estabelecido entre o Estado e a concessionária», podendo resultar em pelo menos uma das seguintes modalidades: aumentos das taxas aeroportuárias, penalizando passageiros e empresas; pagamentos diretos pelo Estado à concessionária; aumentos do prazo da concessão (que à partida era de 40 anos, prorrogável por mais dez); ou «qualquer outra forma que seja acordada entre o Estado e a concessionária».

E é preciso ter em conta que uma concessão por 50 anos excede todos os limites de fiabilidade dos estudos e cenários que possam ser traçados – ou seja, abrindo assim a porta às tais “circunstâncias não previstas no contrato inicial” que tantas vezes e em tantas concessões propiciaram os reequilíbrios financeiros e renegociações, com sucessivas e acrescidas transferências de milhões de euros dos cofres do Estado para os grupos económicos privados.

Perante a experiência concreta do nosso País nesta matéria – que faz cair pela base todas as teorizações e mistificações neoliberais sobre as supostas vantagens das privatizações – coloca-se como evidência a urgente necessidade de interromper essa decisão verdadeiramente ruinosa e de autêntica traição ao interesse público. Urge travar a privatização da ANA Aeroportos, razão pela qual o PCP apresenta esta iniciativa.

Nestes termos, ao abrigo do artigo 169.º da Constituição e do artigo 189.º e seguintes do Regimento da Assembleia da República, os Deputados do Grupo Parlamentar do PCP requerem a Apreciação Parlamentar do Decreto-Lei n.º 232/2012, publicado em Diário da República n.º 209, Série I, de 29 de outubro de 2012.

Assembleia da República, em 9 de Novembro de 2012

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