Intervenção de António Filipe na Assembleia de República

Despenalização do consumo de drogas e regime de mera ordenação social aplicável

Cumpre-me apresentar os Projectos de Lei apresentados pelo PCP que propõem a despenalização do consumo de drogas e a sua remissão para um regime de mera ordenação social. Com esta iniciativa, o PCP cumpre um dos compromissos que assumiu para com os portugueses na última campanha eleitoral para a Assembleia da República.

Entre as dez medidas mais urgentes que o PCP se comprometeu a propor na presente legislatura consta precisamente a despenalização do consumo de drogas, a par da adopção de um plano de alargamento da rede pública nacional e gratuita de atendimento, tratamento e recuperação social da toxicodependência, e do reforço do combate ao tráfico de droga e ao branqueamento de capitais que lhe está associado.

O PCP honrou com celeridade este compromisso, tendo apresentado no passado mês de Fevereiro um conjunto de seis projectos de lei que abordam todas estas vertentes essenciais do combate à droga. Importa por isso mesmo referir, antes de tudo o mais, que embora o que hoje está em debate se circunscreva no essencial ao estatuto legal do consumo de drogas, não podemos perder de vista o carácter global e integrado que a luta contra a droga deve assumir para que possa ter uma eficácia relevante.

Daí que tenhamos feito acompanhar a apresentação dos nossos projectos de lei sobre a despenalização do consumo de drogas, de iniciativas legislativas sobre o alargamento da rede de serviços públicos para o tratamento e a reinserção social de toxicodependentes, sobre a definição dos princípios gerais da política nacional de prevenção primária da toxicodependência, sobre a aprovação de medidas de intervenção em situações de risco, e sobre a instituição de medidas destinadas a prevenir e punir com alguma eficácia o branqueamento de capitais provenientes de actividades criminosas, entre as quais avulta, como se sabe, o tráfico de drogas.

A matéria hoje em debate diz respeito a uma importante vertente desta problemática, sobre a qual é urgente adoptar medidas legislativas, mas não pode fazer esquecer a necessidade de, quanto antes, serem tomadas medidas complementares noutros domínios. De muito pouco servirá apostar decisivamente na substituição de medidas repressivas por incentivos ao tratamento dos toxicodependentes se não for significativamente reforçada a capacidade de resposta da rede pública de atendimento e tratamento da toxicodependência, ou se não forem criadas estruturas de reinserção social minimamente adequadas.

Senhor Presidente, Senhores Deputados,

O PCP propõe que o consumo de drogas não dê lugar a um processo crime e não fazemos distinção em função do tipo de drogas consumidas. Quando afirmamos que um toxicodependente não deve ser tratado como se fosse um criminoso, estamos a pensar em todos os toxicodependentes, independentemente da droga ou das drogas que consomem.

A Lei da Droga ainda vigente, que pune os consumidores de drogas com penas de prisão que podem ir até um ano, carece, urgentemente de ser alterada. Não faz absolutamente nenhum sentido que um jovem que por qualquer razão se iniciou no consumo de drogas, ou que um toxicodependente cuja vida se resume ao consumo compulsivo de drogas e à angariação de meios para as obter, sejam tratados como criminosos pelo facto de consumirem e sejam sujeitos a procedimentos criminais e à eventual aplicação de sanções de natureza penal que, no quadro legal actual, podem mesmo passar por penas de prisão.

O tráfico de drogas é um problema criminal. O consumo de drogas é acima de tudo um problema de saúde pública. Esta distinção é, para nós, essencial, e constitui o fundamento central da proposta que apresentamos.

Foi aliás com este espírito que, logo no início da passada legislatura, há mais de quatro anos, aqui propusemos uma alteração à "lei da droga" no sentido de excluir de todo a aplicação de penas de prisão por consumo de drogas. Fomos, nessa altura, o único Partido representado nesta Assembleia a defender essa solução e a contrariar a tendência então dominante para centrar as iniciativas de alteração legislativas em mais e mais repressão, em mais e maiores penas de prisão.

Argumentava-se nessa altura, contra a nossa proposta, que o objectivo visado pelo legislador com a penalização era dissuadir do consumo de drogas e encaminhar os toxicodependentes para soluções de tratamento. Está cada vez mais à vista o erro desse raciocínio. O consumo dos toxicodependentes é um consumo compulsivo que nenhuma norma incriminadora está em condições de dissuadir e se o objectivo é encaminhar para o tratamento, não se percebe por que razão há-de tal encaminhamento ser feito através de processos crime ou com passagens estigmatizantes pelos estabelecimentos prisionais.

O PCP entende que os efeitos que o legislador alegadamente procurou salvaguardar serão mais eficaz e coerentemente atingidos se se optar pela despenalização do consumo de drogas, retirando-o da tutela do direito penal e, sem deixar de respeitar as Resoluções das Nações Unidas a que o Estado Português se encontra vinculado, remetendo-o para um regime próprio de ilícito de mera ordenação social.

Ainda bem que hoje o ambiente é outro e que o Partido Socialista decidiu alterar as suas anteriores posições, num sentido que consideramos positivo, e que abre as portas a uma forma mais justa, humana e adequada de tratar em termos legais o problema da toxicodependência. Pensamos que já se perdeu muito tempo. Esperamos que não se perca muito mais.

Senhor Presidente, Senhores Deputados,

Tendo em consideração que estamos a falar de uma matéria em que abunda a confusão terminológica, e onde se misturam na cabeça das pessoas conceitos como a descriminalização, a despenalização ou a liberalização usados umas vezes como sinónimos, outras vezes segundo critérios distintos, importa precisar com clareza o que propõe o PCP.

O PCP não propõe nenhuma alteração na criminalização do tráfico de droga. Não subscrevemos concepções que apontam para a liberalização ou para a legalização das drogas presentemente ilícitas.

O PCP também não propõe que o consumo de drogas passe a ser legalmente permitido. Isto é, não se propõe a eliminação da proibição. O que o PCP propõe é que o consumo de drogas não dê lugar a uma reacção de natureza penal e que o regime sancionatório estabelecido como consequência da proibição seja de mera ordenação social.

Pensamos que é importante deixar esta questão muito clara, para que se compreenda exactamente o que pretendemos e o que não pretendemos. Não pretendemos que a atitude do Estado Português em relação ao consumo de drogas seja "lavar as mãos", o que aconteceria se pura e simplesmente deixasse de existir a proibição do consumo. E também não pretendemos alinhar em concepções que desvalorizam a perigosidade do consumo de drogas e que são apontadas por muita gente, porventura com alguma razão, como objectivamente incentivadoras do aumento do consumo de drogas e da toxicodependência, particularmente entre os jovens.

O que pretendemos é que de uma forma não repressiva, a legislação aplicável ao consumo de drogas deve assumir um papel activo na promoção da saúde pública e na dissuasão das dependências, fazendo com que entidades não policiais sejam incumbidas de actuar junto dos consumidores de drogas, assumindo um papel de ajuda, de encaminhamento e de acompanhamento, de acordo com cada situação pessoal.

Por isso não nos parece que a aplicação de coimas - proposta pelo Governo - seja uma medida sancionatória adequada para estes casos. É certo que a coima é a sanção típica para o ilícito de mera ordenação social. Só que a especificidade do consumo de drogas exige da parte do legislador alguma capacidade de inovação. A complexidade do problema exige coragem e originalidade na solução.

A verdade é que este debate poderia estar mais adiantado se não fosse a lamentável inércia do actual Governo em matéria de luta contra a droga. É absolutamente espantoso que passados mais de dois anos sobre o Relatório da Comissão para a Estratégia Nacional de Luta Contra a Droga e mais de um ano sobre a aprovação pelo próprio Governo de um novo Relatório de Estratégia tenha sido necessário o agendamento potestativo de um partido da oposição para que o Governo tenha apresentado na Mesa da Assembleia da República uma proposta de revisão da Lei da Droga.

Aliás, toda a política do actual Governo em matéria de luta contra a droga se tem resumido a entrevistas e artigos de opinião do senhor Secretário de Estado. Quanto ao mais, inércia absoluta. Apesar da estratégia governamental aprovada há mais de um ano ter decidido extinguir o Projecto Vida atenta a sua flagrante inutilidade, o Projecto Vida continua a existir, imperturbável, e não faz mais nem menos do que sempre fez.

E esta inércia é preocupante, mesmo tendo em vista a concretização do presente processo legislativo. Se prevalecer, como esperamos, uma solução de despenalização do consumo de drogas, a responsabilidade do Estado na garantia de atendimento, tratamento e reinserção dos toxicodependentes não diminui, mas pelo contrário, é desejável que aumente significativamente.

Senhor Presidente, Senhores Deputados,

Conhecido o que propomos, importa ainda deixar claro que estão hoje em apreciação algumas propostas que não subscrevemos e de que, em alguns casos, discordamos inteiramente.

Discordamos desde logo do Projecto da JSD, na medida em que, centrando a sua atenção quase exclusivamente na legalização do comércio das chamadas drogas leves, mantém a criminalização do consumo das demais drogas, revelando assim uma insensibilidade absoluta em relação à situação dramática dos milhares de heroinómanos que continuam a braços com processos judiciais e com a sujeição à aplicação de penas de prisão que só podem contribuir para a agravar a sua situação.

Mas discordamos também das propostas que constam dos projectos do Bloco de Esquerda e da JSD relativas à distribuição gratuita de heroína por parte do Estado e à legalização do mercado das chamadas drogas leves.

Quando à primeira questão, entendemos que o fornecimento de drogas a toxicodependentes por parte do Estado não pode ser desligado de um projecto terapêutico rigorosamente controlado. Entendemos perfeitamente a validade e a pertinência dos programas de metadona que têm vindo a ser seguidos no âmbito de uma estratégia de redução de danos e não diabolizamos experiências em curso noutros países, nas quais a própria heroína é utilizada no âmbito de projectos terapêuticos. São experiências a estudar atentamente e que não são, em princípio, de excluir.

Só que o que agora se propõe é muito diferente disso. Em nome de uma suposta lesão dos tráficantes, que está muito longe de ser demonstrada, e de uma hipotética redução da criminalidade, manter-se-ía na dependência uma população toxicodependente recenseada, de forma potencialmente indiscriminada, com o fornecimento estadual da própria heroína. Não nos parece que seja esse o melhor caminho. O papel do Estado deve ser o de combater a toxicodependência e não o de a alimentar, ainda que em nome da tranquilidade pública.

Uma outra proposta que não subscrevemos é a da legalização do comércio da chamada drogas leves. Por várias razões. Desde logo porque a delimitação desse conceito está muito longe de ser pacífica, mesmo entre a comunidade científica, sendo muito questionável e questionada a ideia da inofensividade do consumo de algumas drogas. Depois, porque não restam grandes dúvidas de que tal medida teria um impacto significativo no aumento do consumo de drogas, o que será tudo menos desejável.

Quando o PCP defende a despenalização do consumo de drogas, não o faz por pensar que o consumo de drogas seja um bem ou por desvalorizar a sua perigosidade. Pensamos que a mensagem que deve ser transmitida à sociedade e em particular aos jovens, não deve ser a do incentivo ao consumo de drogas. Pelo contrário, pensamos que, sem falsos moralismos, mas com rigor, tudo deve ser feito para informar correctamente sobre as consequências do consumo de drogas, lícitas ou ilícitas.

O caminho que neste momento nos parece mais justo e adequado para enfrentar e fazer recuar o consumo de drogas e a toxicodependência, com todas as suas dramáticas consequências sociais e humanas, é despenalizar o consumo e apostar fortemente na prevenção, no tratamento e na reinserção social dos toxicodependentes, pelo que, sem prejuízo de prosseguir o debate sobre outras estratégias, nacionais ou internacionais, é este o passo que entendemos que é necessário e urgente dar.

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