Intervenção de Inês Zuber, Deputada do PCP ao Parlamento Europeu, Seminário «A crise na União Europeia e a ofensiva contra os direitos, a liberdade e a democracia»

A democracia política corre sérios riscos com o aprofundamento do federalismo

A democracia política corre sérios riscos com o aprofundamento do federalismo

Começo com uma citação do Programa Político do Partido Comunista Português que diz: "A evolução num sentido federalista da integração europeia nos planos económico, político e militar, ameaça transformar Portugal num Estado subalternizado e periférico, cuja política poderá passar a ser crescentemente decidida, mesmo que contra os interesses portugueses, por instâncias supranacionais dirigidas no fundamental pelos Estados mais fortes e mais ricos e pelas empresas transnacionais. Trata-se de uma gravíssima ameaça à independência e soberania nacionais, susceptível de comportar consequências históricas dificilmente reparáveis". O tema que hoje vos convidamos a debater incide sobre essas consequências que tememos irreparáveis, mas contra as quais lutámos e continuaremos a lutar, consequências que têm vindo a degradar as várias vertentes da democracia que os comunistas portugueses caracterizam e que integram os direitos sociais, económicos, políticos e culturais.

1. Os direitos económicos dos povos e dos trabalhadores dos países da UE foram, desde logo, os primeiros a serem delapidados pela política económica europeia, pela submissão das economias à divisão internacional do trabalho, determinada pelas multinacionais, em seu benefício exclusivo, pelo projecto do euro, que substanciou essa intenção e pelo aprofundamento do mercado único. Se os povos, numa sociedade democrática, devem ter o direito ao controlo político do poder económico, as políticas neoliberais, aprofundadas na revisão dos Tratados têm, pelo contrário, promovido a livre e desregulada circulação de capitais, a liberalização dos mercados, a crescente financeirização da economia e a promoção dos monopólios económicos ao mesmo tempo que condicionam severamente o investimento público. Não é possível existir democracia económica em países, como o nosso, periferizados, e nos quais o sistema produtivo nacional foi arruinado para dar espaço aos monopólios estrangeiros.

2. Qual é o contributo que a UE dá para a democracia social quando as suas políticas restringem o investimento público, estimulam a privatização e consequente elitização dos serviços públicos, quando impõem o congelamento e diminuição real de salários, pensões, reformas e outras prestações sociais? No propalado "modelo social europeu" aqueles que o propagaram como projecto da "modernidade" nunca disseram prever a catástrofe civilizacional pela qual os povos da UE estão a passar com cerca de 25 milhões de desempregados e mais de 115 milhões de pessoas em risco de pobreza.

Mas queremos abordar aqui uma outra dimensão da democracia - muitas vezes mais difícil de mensurar, de analisar e muito menos visível porque contém aspectos objectivos mas também subjectivos - mas que tem sido, também a propósito da crise, um alvo preferencial das políticas da UE - falamos da democracia política, do direito dos povos a decidirem soberanamente sobre as suas formas de organização política, sobre as suas escolhas políticas, mas também dos ataques às liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos. Pelos perigos que estes ataques comportam, decidimos hoje promover esta discussão, de forma a enriquecê-la colectivamente, com os camaradas de forças políticas com quem o PCP mantém relações de cooperação e solidariedade, e aos quais aproveito para saudar fraternalmente, mas também de forma a denunciar mais uma trincheira de guerra da União Europeia contra os povos do mundo.

Em primeiro lugar, as políticas de acção externa da UE ilustram, evidentemente, a natureza imperialista da UE, que ambicionando constituir-se cada vez mais como bloco político-militar - na sequência dos passos dados com o Tratado de Lisboa -, procura conquistar zonas de expansão de mercados e de apropriação de recursos para alimentar as principais economias europeias e os grandes grupos económicos. É disso exemplo todo o investimento alocado ao "Instrumento de financiamento para a promoção da democracia e dos direitos humanos a nível mundial" que não é mais do que um instrumento de ingerência e colonização de outros países, que inclusive disponibiliza apoio financeiro à chamada sociedade civil ou a "movimentos de oposição" de países terceiros, porque a UE arroga-se a pretender estabelecer a democracia nos outros países enquanto condena milhões de trabalhadores da UE à miséria. A agressão ao povo líbio, o bombardeamento do seu território, o assassinato de milhares de civis, o apadrinhamento de "governos-fantoche" e o controle dos recursos petrolíferos líbios foi mais uma forma com que a UE contribuiu para o enriquecimento da democracia no mundo.

Mas um dos maiores ataques contra os direitos, liberdade e garantias dos cidadãos foi a aprovação do chamado Programa de Estocolmo que alargou o âmbito das acções comuns no domínio da cooperação policial e judicial e da cooperação entre serviços secretos, introduzindo uma estratégia de segurança interna e novas medidas de intercâmbio de dados na UE. Diz o Programa de Estocolmo – “Os Estados-Membros devem desenvolver mecanismo de prevenção, em particular para permitir uma rápida detecção dos sinais de radicalização ou de ameaças, incluindo as ameaças do extremismo militante violento”. Estas orientações de vigilância comum não são mais do que o estabelecimento de uma sociedade “big-brother” no qual os movimentos das pessoas, as suas escolhas políticas, sindicais, a sua vida pessoal, serão controladas diariamente por uma mega-operação montada à escala da UE (e com Acordos com vários países) para controlo e investigação das suas vidas, através da acção de instituições como a Europol e a Eurojust.

O acordo SWIFT, que permite o intercâmbio deste tipo de dados, e, mais recentemente o chamado Acordo PNR, que dá ao Departamento de Segurança Interna dos EUA o acesso aos dados pessoais dos passageiros de avião – dados de viagem, alimentação, alojamento, acompanhantes - são exemplos da vaga securitária e anti-democrática nas políticas da UE, que ataca as liberdades públicas em nome de um suposto combate ao "terrorismo" que não é mais do que o combate a todos quantos se opõem e rejeitam o pensamento dominante que suporta os imperialismos no mundo em que vivemos. Com a cobertura deste Acordo, que supostamente atingiria apenas os passageiros que viajassem para ou pelos Estados Unidos da América, vários passageiros têm sido impedidos de viajar de Espanha para Cuba, uma vez que os EUA consideraram que não podem sobrevoar espaço aéreo americano. Nesta lista de supostos terroristas encontram-se mais de 20 mil pessoas. Este constitui um dos exemplos concretos da crescente utilização da vigilância e do controlo de pessoas, baseado na prática pidesca de definição de perfis através de técnicas de exploração de dados e na sua recolha generalizada, independentemente dos cidadãos serem inocentes ou culpados, para efeitos ditos de "prevenção e controlo". Este é um procedimento que nos princípios não se distinguirá assim tanto da prática de detenção de prisioneiros ilegalmente pela CIA, prática aliás realizada em vários países da UE e que a Comissão Europeia não tem nenhum interesse em investigar. Estas operações contra os direitos, as liberdades e as garantias dos cidadãos contam, evidentemente, com avultadas verbas canalizadas para o complexo industrial-militar e as suas actividades de investigação no domínio da segurança interna.

A política de migração comum baseada na classificação dos imigrantes de acordo com a "escala de desejabilidade", a sua vertente mais repressiva com o uso da FRONTEX no controlo da imigração tornam a União Europeia e, neste caso, o Espaço Schengen, um espaço da vergonha, da discriminação e da desumanização. Porque se para a UE é sacrossanta a liberdade de capitais e de mercadorias, já a liberdade de pessoas é matéria condicionada à selectividade. O Espaço Schengen é também hipocritamente suspenso quando o imperialismo teme a revolta dos povos como aconteceu aquando da cimeira da NATO, em 2010, em Portugal.

Mas, hoje, para além destas vertentes, a democracia política tem sido severamente atacada e corre sérios riscos através do processo em curso, de aprofundamento do federalismo, que implica a reestrutura e redefinição dos regimes políticos nacionais. O Tratado Orçamental e os Pactos de Agressão que as troikas impingem aos povos não são mais do que machadadas brutais na democracia política e nas formas de organização política nacionais. Os perigos do aprofundamento do federalismo patentes na ideia lançada recentemente pela Comissão Europeia - a criação de uma Federação de Estados - constituem um salto qualitativo sem precedentes na imposição supranacional das políticas e orientações.

É evidente para nós, comunistas, que uma Europa que respeite os princípios da democracia, social, política, económica, cultural, da cooperação e solidariedade, que respeite as soberanias nacionais e que sirva os interesses dos povos e dos trabalhadores, que seja fruto da junção das conquistas dos trabalhadores, essa Europa só será certamente possível de construir sobre as ruínas desta União Europeia.

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