Intervenção de João Oliveira, membro da Comissão Política do Comité Central e Presidente do Grupo Parlamentar, Sessão Pública «A Constituição da República - projecto de desenvolvimento e soberania nacional»

Defender a Constituição pela sua aplicação efectiva, firme e intransigente

Como qualquer texto constitucional, a Constituição da República Portuguesa é produto directo da realidade social, do confronto entre classes sociais, e determinada pela correlação de forças daí resultante.

Tal como o texto original da Constituição é inseparável do processo revolucionário de Abril e o seu conteúdo concreto é indissociável do processo histórico de emancipação dos trabalhadores e da sua prolongada luta contra a ditadura fascista, a exploração e a opressão, também as sucessivas revisões constitucionais, o incumprimento e violação da Constituição devem ser considerados à luz desse processo dialéctico de que é feita a história.

Se o texto original da Constituição correspondeu às perspectivas e expectativas de construção da liberdade, da democracia e do progresso social que se abriram com o derrubamento do fascismo, o texto que hoje temos em vigor é o resultado da acção daqueles que nunca se conformaram com esse projecto social e têm procurado subverter e reconfigurar a Constituição à medida dos seus interesses.

Ao longo destes 38 anos a Constituição da República Portuguesa sofreu já sete revisões, boa parte delas justificada com argumentos mal explicados de aperfeiçoamento ou actualização.

Se é verdade que a Constituição sempre poderia ser objecto de melhoramento ou aperfeiçoamento, eventualmente até actualização de alguns dos seus preceitos, a verdade é que foram outras as motivações por detrás das referidas revisões do texto constitucional.

As verdadeiras motivações, essas, encontramo-las no conteúdo concreto das alterações introduzidas, não só pelo sentido que assumiu a sua concretização mas também, e sobretudo, pelas consequências que delas derivaram para a realidade nacional que hoje vivemos.

Assumindo esse exercício, duas conclusões se impõem.

A primeira, a de que as sucessivas alterações à Constituição aprovadas por PS, PSD e CDS constituíram, no fundamental, retrocessos em relação ao texto original com reflexos concretos na vida dos portugueses, nos seus direitos e aspirações e na grave situação nacional que atravessamos.

Mutilando o texto original, retirando protecção constitucional a importantes conquistas e direitos, reabilitando retroactivamente políticas realizadas por governos em aberta divergência e confronto com a Constituição ou abrindo as portas para mais graves avanços dessas políticas, as sucessivas revisões constitucionais constituíram no essencial factor de retrocesso para os portugueses e o país.

A segunda conclusão, a de que, apesar disso, a Constituição mantém-se ainda como um texto moderno e avançado na maioria dos seus aspectos, continuando a constituir um importante instrumento de defesa dos direitos dos trabalhadores e do povo e um obstáculo ao aprofundamento das políticas de direita e a um empobrecimento ainda mais acentuado da democracia política, económica, social e cultural.

Não sendo possível detalhar, aqui e agora, o conteúdo e sentido de cada uma das alterações introduzidas ao texto constitucional nestes 38 anos de vida da Constituição e 32 anos de revisões constitucionais, não deixa de se fazer referência a alguns dos aspectos que marcam de forma mais impressiva a avaliação que se acaba de fazer.

Em matéria de organização do poder político destacam-se como particularmente negativos:

- os golpes profundos na proporcionalidade do sistema eleitoral com a redução do número de deputados na Assembleia da República e a admissão de círculos uninominais;

- o empobrecimento das normas constitucionais relativas à democracia participativa;

- a substituição do Conselho da Revolução nas suas funções de controlo da constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional, cuja constituição depende de uma maioria parlamentar qualificada;
- a transferência para o Governo das funções do Conselho da Revolução relativas às Forças Armadas;

- a diminuição das funções do Presidente da República com a transferência para o Governo de competências presidenciais em matéria de Forças Armadas (como a escolha das Chefias Militares), com a eliminação do princípio da responsabilidade política do Governo perante o Presidente da República e ainda com a limitação dos poderes presidenciais de demissão do Governo;

- a inviabilização, na prática, da criação de regiões administrativas;

- a eliminação da obrigatoriedade da eleição directa das câmaras municipais.

Em matéria económica e social destaca-se negativamente:

- a eliminação do objectivo de assegurar a transição para o socialismo;

- a eliminação do princípio da irreversibilidade das nacionalizações, com que se deu início ao processo ainda em curso de privatização ou reprivatização de empresas nacionalizadas, do qual resulta o agravamento da dependência do país e a entrega de sectores estratégicos ao capital estrangeiro;

- a eliminação da referência constitucional à reforma agrária e à socialização dos meios de produção;

- a eliminação do princípio da gratuitidade do SNS, com a introdução da referência ao carácter «tendencialmente gratuito» do acesso à saúde;

- a eliminação do exclusivo de emissão de moeda por parte do Banco de Portugal, com o objectivo de permitir a ratificação sem referendo do Tratado da União Europeia.

Destacam-se ainda como particularmente negativas:

- às alterações às garantias constitucionais dos cidadãos portugueses no que diz respeito ao processo criminal, com a introdução da jurisdição do Tribunal Penal Internacional , o abandono do princípio de não extradição de cidadãos portugueses para outro país ou a eliminação do carácter absoluto da inviolabilidade do domicílio à noite;

- a abdicação do primado da Constituição da República Portuguesa sobre o Direito Comunitário;
- a transferência de poderes para as instituições da União Europeia em diversas áreas, incluindo política externa de segurança e defesa;

- as alterações à regulação democrática da comunicação social;

- a eliminação da obrigatoriedade da existência de um regime de Serviço Militar Obrigatório.

Apesar disso, encontram-se ainda na Constituição elementos cuja valorização deve necessariamente sublinhar-se, nomeadamente quanto:

- à abolição do imperialismo, ao desarmamento geral e à dissolução dos blocos político-militares;
- ao reconhecimento do direito à autodeterminação e independência dos povos e até ao direito de insurreição contra todas as formas de opressão;

- à consideração da promoção do bem-estar e da qualidade de vida do povo e da igualdade real entre os portugueses como tarefas fundamentais do Estado;

- ao estabelecimento do princípio da igualdade, de assegurar a reconhecimento a todos o acesso ao direito e à justiça, de garantir o direito à vida, à liberdade e à segurança, proibindo as penas de carácter perpétuo;

- à garantia da liberdade de imprensa e a sua independência perante o poder político e económico;

- à defesa da parte mais desprotegida na relação de trabalho, com a inscrição de amplos direitos no Título dos «Direitos, Liberdades e Garantias» como a garantia da segurança no emprego, os direitos de intervenção das comissões de trabalhadores na vida da empresa, a liberdade sindical, os direitos das associações sindicais, designadamente à contratação colectiva, o direito à greve e outros;

- a previsão no título dos direitos económicos, sociais e culturais do direito ao trabalho para todos, da execução de políticas de pleno emprego e de direitos dos trabalhadores como a retribuição justa ou a conciliação da vida profissional com a vida familiar;

- os direitos à educação e à cultura, que o Estado tem o dever de democratizar, sendo o ensino gratuito na escolaridade obrigatória e progressivamente gratuito em todos os graus de ensino;
- os direitos à segurança social e à saúde;

- o direito a uma habitação adequada, a um ambiente ecologicamente equilibrado, à protecção da família, à protecção da maternidade e da paternidade.

Fácil será de constatar que, apesar das mutilações e subversões da Constituição que é necessário fazer reverter, muito do que é projecto de progresso e justiça social deste riquíssimo texto constitucional está ainda por cumprir.

Mais fácil ainda será constatar que a execução concreta das políticas que têm sido seguidas por sucessivos governos PS, PSD e CDS se afirmam pelo confronto com a Constituição como políticas de retrocesso que é necessário combater. E por isso, certamente, os portugueses têm procurado na Constituição, particularmente nestes últimos três anos, as respostas e os limites que impeçam a acção de governos que liquidam direitos e conquistas.

Onde se verifica a sabotagem económica de empresas para promover deslocalizações e despedimentos colectivos, reclama-se o cumprimento da Constituição.

Onde se negam prestações sociais a quem não dispõe do mínimo necessário à subsistência ou a uma sobrevivência condigna, reclama-se o cumprimento da Constituição.

Onde, por insuficiência económica, se negam cuidados de saúde, se recusa o acesso à educação ou se impede acesso à justiça e aos tribunais, reclama-se o cumprimento da Constituição.

Onde quer que se verifica esse confronto entre os direitos e interesses do povo e a política do Governo reclama-se o cumprimento da Constituição.

Esse processo dialéctico em que uns poucos procuram defender ou recuperar privilégios com o sacrifício dos direitos de uma imensa maioria é um processo que faz parte das leis de funcionamento da sociedade em que vivemos.

Dizíamos há 38 anos, na declaração de voto proferida em nome do PCP aquando da aprovação da Constituição, e cito, “Sabemos que as forças, da direita tentarão recuperar a Constituição para os seus interesses. Sabemos que tentarão reduzi-la a um mero papel a ser rasgado e violado, porventura emoldurado, mas não aplicado como instrumento de transformação da sociedade. Sabemos que a Constituição não é só por si a garantia efectiva da consolidação da democracia e das demais conquistas da revolução. Mas nós sabemos também que as forças conservadoras e reaccionárias a sentem como um obstáculo aos seus desígnios de restaurar a brutal exploração do nosso povo. Por isso será parte da nossa luta, e tudo faremos para que seja parte da luta do povo português, o combate pela sua defesa e pela sua aplicação efectiva, firme e intransigente”.

O contexto actual determina que essa luta seja hoje de resistência e defesa da Constituição para que amanhã possa ser de avanço e aprofundamento das suas conquistas e de construção do projecto social que colocou no horizonte como possibilidade real e concreta.

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