Debate &#8220;Direitos Sexuais e Reprodutivos &#8211; direitos sociais do nosso tempo&#8221;<br />Intervenção de Manuela Pires - Advogada

Vivemos no nosso país momentos particularmente ameaçadores para os direitos das mulheres. O actual Governo PSD-CDS/PP e a sua maioria parlamentar aprovaram já um importante conjunto de diplomas legais que representam claros e graves recuos para as mulheres, sendo de destacar a Lei de Bases da Família, a Lei Bases da Segurança Social e o Código Laboral. Acrescem as políticas de extinção e/ou privatização dos serviços sociais de apoio, de saúde, educação, com particular incidência na vida das mulheres.Ao mesmo tempo promovem uma persistente ofensiva ideológica. As sucessivas e retrógadas afirmações dos diversos responsáveis governamentais sobre a mulher e a família não mais fazem do que preparar e justificar o regresso da mulher ao lar, ao seu papel de reprodutora e fada do lar. Partindo das dificuldades reais com que as famílias se defrontam no seu dia-a-dia, e cujas verdadeiras causas se reportam às políticas económicas e anti-sociais prosseguidas, falam em desagregação da família, nas mães e pais que trabalham e abandonam os filhos, como fonte de todos os males. E num estilo claramente populista falam nos inimigos da família, que não se sabe bem quem são. Bagão Félix e este Governo deviam pagar direitos de autor a Salazar. Também a linguagem do Estado Novo era igual. Nos anos 30/40, também se afirmava que a família vivia tempos difíceis, estava em decadência e tinha muitos inimigos (o racionalismo, o individualismo, o liberalismo e, claro está, o comunismo). Falava-se também no relaxamento da autoridade familiar e do respeito dos filhos, na perda de valores. No décimo aniversário do 28 de Maio, Salazar proclamou “Deus, Pátria, Família, Autoridade e Trabalho”. Considerava a família como o “primeiro grupo natural”. A própria Constituição de 1933, expressão institucionalizada da ideologia fascista, afirmava que o indivíduo só existia “através do agregado natural a que está ligado por natureza”, sendo a família considerada como uma “realidade primária e fundamental de toda a orgânica nacional” e na qual se fundava a “ordem política e social da nação.”Numa entrevista a um jornal diário, à pergunta “O que é para si hoje a família?”, respondia o inigualável Ministro Bagão Félix: “É a única organização natural, que existe antes do Estado que não depende de leis para ser reconhecida e é o espaço natural não só de desenvolvimento da vida, como de desenvolvimento das pessoas, além de ser o principal espaço de coesão entre gerações.”Diz ainda Bagão Félix que o conceito de família é a chamada “família tradicional” ou “estatisticamente normal”, que o “conceito de família inclui em si a ideia de procriação”. Ou sobre as uniões de facto “quem não quer ter todos os deveres não tem de ter todos os direitos”. Ou sobre as famílias monoparentais: “O Estado deve ter a preocupação social, mas não deve fazer isso à custa da família tradicional. Defender as minorias é importante mas não sacrificando as maiorias.”Os mesmos conceitos têm sido repetidos por outros membros do Governo e da maioria parlamentar e pela Coordenadora Nacional da Família.Falam também muito sobre a defesa da vida e da maternidade. Bagão Félix chegou mesmo a sugerir que as mulheres que abortaram expiem a sua própria dificuldade moral perante a situação, trabalhando em instituições que apoiem mães solteiras, famílias monoparentais, abandonadas, ou instituições de solidariedade social.Falam no trabalho a tempo parcial para permitir à mulher o acompanhamento dos filhos. Falam em aumentar a taxa de natalidade e na protecção às famílias numerosas. A Associação das Famílias Numerosas chegou a afirmar em comunicado recente que “É com enorme espanto que vemos entidades a protestaram por o Governo ir fechar escolas com menos de 10 alunos! Essas escolas não vão ser fechadas por ESTE Governo, mas sim pelos casais que não tiveram filhos!”Mas perante tanta alegada preocupação com a família, cabe perguntar o que fazem eles afinal para defender as mulheres e as famílias?Aprovam o Código Laboral que permite o alargamento da jornada de trabalho de pais e mães com crianças pequenas até às 12 horas por dia e 60 horas por semana, aumenta a precariedade laboral, interfere com o direito a férias, não consagra períodos diários de amamentação e aleitação, não garante o pagamento das faltas por assistência a filhos com deficiência profunda, reduz a protecção no despedimento de grávidas e lactantes.Encerram escolas. Diminuem os apoios às crianças com necessidades especiais e com dificuldades económicas. Aumentam os preços dos manuais escolares no 1º ciclo. Entretanto, Portugal tem a taxa mais elevada de abandono escolar precoce da União Europeia.Encerram serviços sociais e de saúde. Ou entregam a sua gestão aos privados. Encerram maternidades e serviços de ginecologia e obstetrícia. Entretanto em Portugal registou-se (em 1999) o maior número de casos de sífilis congénita (transmitida pela mãe ao bébé) da União Europeia e, em 2002, registou-se um aumento da mortalidade neo-natal.Acabam com a universalidade do sistema de segurança social. Portugal é o país com a maior taxa de pobreza, com maiores desigualdades de rendimento e com menor despesa em protecção por habitante, na União Europeia.Aumentam o desemprego e precarização do trabalho.Extinguem a Comissão Parlamentar da Igualdade na Assembleia da República.Criam diversas estruturas de cooordenação e observação dos assuntos da família, onde as organizações de mulheres não têm direito a estar representadas.Às jovens e mães solteiras dizem para não abortar, porque os centros de apoio à vida e similares as recolherão, com direito a enxoval incluído.Aconselham a abstinência antes do casamento e a procriação depois.Promovem as escolas para pais e os centros de apoio à vida.Celebram protocolo sobre educação sexual com o Movimento de Defesa da Vida, organização de matriz católica tutelada pelo bispo auxiliar de Lisboa. Esta organização defende uma alternativa à contracepção que “respeite os valores da Igreja e os valores ecológicos”. Sugerem a auto-observação, uma conjugação dos métodos naturais com a medição das temperaturas da mulher e a detecção da presença do muco cervical que, garantem, têm uma eficácia semelhante à da pílula. A abstinência sexual é considerada o caminho para reduzir a gravidez na adolescência e as doenças sexualmente transmissíveis. (Entretanto, Portugal detém, na União Europeia, a segunda maior taxa de gravidez na adolescência e o segundo país europeu com o maior número de infectados pelo VIH/SIDA. Hoje um jornal diário refere os resultados de um estudo, efectuado entre 2000 e 2002 na consulta de doenças sexualmente transmissíveis do Centro de Saúde da Lapa, que revela que quase 1/3 dos jovens observados apresentavam infecções contraídas por via sexual.Cabe aqui especial referência ao facto da Igreja Católica ter uma imensa influência na governação deste país, sendo também cada vez mais evidente a convergência entre as posições da hierarquia religiosa e do patronato. Recebem directamente do Estado a gestão de inúmeros serviços e equipamentos e importantes verbas vindas do Orçamento do Estado. Actuam livremente dentro do sistema escolar público. Influenciam as políticas para a área da família através de organizações que representam directamente os seus interesses. O próprio Bagão Félix deteve até há bem pouco tempo importantes cargos na Igreja. Curiosamente, a Associação Cristã de Empresários e Gestores (que integrava nomes como Bagão Félix, João Salgueiro, Jardim Gonçalves, Teixeira Duarte), 15 dias antes das eleições legislativas, divulgou um documento onde, entre outros aspectos falava na defesa da vida humana desde a concepção e se referia à centralidade da família como base do desenvolvimento da sociedade. Hoje muitas das reivindicações constantes desse documento são já lei deste país.A situação portuguesa não é indissociável da situação internacional. Desde há vários anos que as políticas capitalistas se caracterizam pelo abandono do papel social do estado, visando optimizar a rentabilidade dos sistemas públicos de educação, saúde e segurança social, através da introdução de princípios de mercado, isto é do lucro. As privatizações, o encerramento de serviços, os despedimentos, o congelamento de salários, a descentralização de competências sem os correspondentes recursos financeiros, a introdução de taxas moderadoras, a abertura dos mercados nacionais às empresas multinacionais são alguns dos aspectos característicos dessas políticas qualquer que seja a latitude.As privatizações dos serviços de saúde condicionam o acesso dos mais pobres a esses serviços, nomeadamente das mulheres, dos idosos, dos emigrantes e minorias. Em muitos países, como por exemplo os EUA, a privatização conduziu a que as gestões fossem assumidas por entidades católicas, o que além de limitações económicas no acesso implica a recusa de prestação de serviços na área da saúde reprodutiva por motivos religiosos. A redução drástica dos orçamentos da saúde têm conduzido ao encerramento ou degradação dos serviços nos estabelecimentos de saúde públicos, com aumento das listas de espera e do tempo de espera (mesmo no caso de doenças que requerem uma intervenção rápida), liquidação de serviços nas zonas rurais e cortes nos serviços de ginecologia e obstetrícia.Em muitos países as consequências foram desastrosas, tais como por exemplo: aumento da mortalidade materna, aumenta da mortalidade infantil, diminuição da esperança de vida, aumento das taxas de cancro uterino e do colo do útero, aumento das doenças sexualmente transmissíveis.Cabe aqui uma especial referência à política da Administração Bush. Em Janeiro de 2001, dois dias após a tomada de posse, decidiu bloquear todos os financiamentos federais americanos aos grupos internacionais de planeamento familiar que pratiquem abortos ou forneçam aconselhamento sobre IVG. Em Julho de 2002, retirou o financiamento de 34 milhões de dólares (note-se que os EUA gastam, por mês, cerca de 30 mil milhões de dólares em despesas militares!) ao FNUAP – Fundo das Nações Unidas para a População, para controle de nascimentos, cuidados materno-infantis e prevenção do VIH/SIDA. Segundo o FNUAP, esta verba poderia prevenir:- 2 milhões de gravidezes não desejadas - 800 mil abortos provocados - 4700 mortes maternas - 60 mil casos de doenças maternas graves - 77 mil mortes de crianças.Convém ter presente que nos países em desenvolvimento as despesas de educação e saúde representam uma ínfima parte do Produto Nacional Bruto comparada com a parte destinada ao pagamento da dívida externa. A maior parte dos programas de planeamento familiar e de saúde reprodutiva são financiados por recursos financeiros provenientes dos países ricos.Também em Maio de 2002, na Conferência das Nações Unidas sobre a criança, os representantes dos EUA pronunciaram-se contra a educação sexual e a utilização de preservativos para prevenção do VIH/SIDA. Em Novembro os EUA revêem a sua posição quanto ao Acordo do Cairo de 1994 que afirmou o direito dos casais e das pessoas determinarem, por forma livre e responsável, o número e o espaço entre os filhos e o direito de acesso à informação.Esta cruzada conservadora estende-se por todo o Mundo. As instituições religiosas, em particular a Igreja católica, a Opus Dei, opõem-se aos direitos reprodutivos por muitas formas. Em muitos países é clara a aliança entre o poder político e a hierarquia religiosa. Na América Latina, por exemplo, muitos activistas da área dos direitos reprodutivos assinalam que os grupos anti-aborto são substancialmente apoiados pelas forças de extrema direita norte-americana.Nos EUA têm sido mortos médicos e trabalhadores das clínicas de planeamento familiar e aborto. São sistemáticas as ameaças e os atentados, pelo que é frequente o uso de coletes à prova de bala.São estes mesmos sectores de direita, ultra-conservadores, fundamentalistas religiosos, os promotores da escalada militarista à escala mundial.O orçamento militar dos EUA é hoje de cerca de 400 mil milhões de dólares por ano, ou 700 mil dólares por minuto. É um valor próximo do das despesas militares de todos os outros países do planeta em conjunto.Em 1998, o PNUD estimava que com 12 mil milhões de dólares, menos de metade da verba que os EUA gastam, por mês, em despesas militares. seria possível assegurar a saúde reprodutiva para todas as mulheres dos países em desenvolvimento.Entretanto, e enquanto se bombardeiam outros países:- 1/3 das gravidezes não são desejadas nem planificadas, cerca de 80 milhões por ano, - 600 mil mulheres morrem todos os anos em consequência directa da gravidez, - 58 milhões de abortos são feitos por ano, 20 milhões dos quais em condições não seguras, morrendo 58 mil mulheres.Apesar desta ofensiva, prosseguem a denúncia, a luta e a resistência contra esta criminosa política. Não podemos deixar de assinalar alguns importantes avanços que se registaram no último ano.Em Março de 2002, o resultado do referendo na Irlanda do Norte que rejeitou uma proposta do Governo de alteração constitucional que agravaria ainda mais a situação das mulheres irlandesas quanto à IVG.Em Junho de 2002, realizou-se na Suíça um referendo do qual saiu a despenalização da IVG até às 12 semanas, com 72% de votos favoraveis.Em Julho de 2002, a aprovação de uma Resolução pelo Parlamento Europeu sobre direitos em matéria de saúde sexual e reprodutiva, que abrange um vasto conjunto de questões que vão desde a educação sexual, ao planeamento familiar e à despenalização do aborto.Em Agosto de 2002 é despenalizado o aborto no território da capital da Austrália.Caras amigas, caros amigos,Os direitos que as mulheres hoje têm foram conquistados pela luta, não surgiram por geração espontânea, nem foram dádivas do poder. Além disso, e apesar dos muitos avanços registados, persistem muitas desigualdades a todos os níveis, conservando ainda a mulher um claro estatuto de inferioridade.A ofensiva em curso, quer em Portugal, quer no Mundo, põe em causa so direitos conquistados. Não nos deixemos enganar. Não se parta do princípio que estes direitos são irreversíveis. A ofensiva ideológica (o discurso do Governo, da maioria parlamentar, da televisão, da rádio, das revistas femininas, das telenovelas, dos manuais escolares, da igreja...) é gigantesca, o populismo da linguagem penetra facilmente nas pessoas.Há que denunciar as verdadeiras intenções do Governo, o seu monolitismo ideológico, o seu reaccionarismo. Demonstrar que são as políticas económicas e anti-sociais prosseguidas que são o factor de degradação da vida e da coesão familiar. Denunciar que o modelo de família deste Governo é retrógado porque pressupõe que a mulher assuma o seu papel tradicional de fada do lar. Denunciar que o Governo oferece uma mão cheia de promessas, ilusões e alguns subsídios caridosos, e com a outra mão retira direitos, anula benefícios, recupera e repõe velhissímas ideias tendentes a reforçar um estatuto de inferioridade.

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