«Os cubanos sentem-se protagonistas da mudança»

Entrevista do "Avante!" ao embaixador da República de Cuba em Portugal , Eduardo Lerner

O Partido Comunista de Cuba (PCC) aprovou em Abril de 2011 um conjunto de orientações económicas e sociais que tinham como objectivo avançar para reformas no país. Como é que está esse processo?

Isso resultou de uma análise que, para usar a terminologia ocidental, constatou serem necessárias mudanças. Trata-se de um reordenamento do nosso modelo económico. No caso de Cuba, tem de ser implementado a par da crise capitalista mundial e da crise permanente a que estamos sujeitos, imposta há mais de meio século pelo bloqueio norte-americano. O objectivo fundamental é salvaguardar as conquistas fundamentais da revolução – a Saúde, Educação e Segurança Social.

As reformas que agora estamos a realizar foram amplamente discutidas. Decorreram de um processo democrático no qual participaram os trabalhadores e a generalidade da população, num total de quase oito milhões de pessoas presentes nas assembleias realizadas para o efeito. Praticamente 60 por cento das propostas iniciais acabaram alteradas. Só depois é que o Congresso do PCC aprovou as 311 medidas económicas e sociais.

Existe, é claro, uma campanha permanente contra Cuba. Dizem que estamos a fazer tudo muito devagar. Nós entendemos que aplicamos o ritmo que consideramos adequado para não termos que voltar atrás. Além do mais, tem sido necessário alterar muita legislação produzida ao longo destes anos de revolução. O governo revolucionário está, por isso, a concentrar tudo em leis orgânicas capazes de darem cobertura às orientações.

O mais recente caso é a constituição de cooperativas em vários sectores. O propósito não é substituir a propriedade social dos meios de produção por propriedade privada, até porque, no caso da terra ela sempre existiu em Cuba, ao contrário do que se diz. A finalidade é agilizar a administração da propriedade pública em sectores como os transportes, a construção e a agricultura, fundamentalmente.

Procuramos aproveitar ao máximo os meios existentes e os investimentos, visando garantir a auto-suficiência em géneros alimentares que pretendemos deixar de importar porque temos condições de produzir. Um exemplo de sucesso é o leite. Já asseguramos 65 por cento das nossas necessidades de consumo.

Somente três bens dos que integram o cabaz básico familiar se vão manter com preços fixados. Da mesma forma, nos transportes não se pode subir preços. São medidas implementadas com a preocupação de que a população não saia lesada. Pelo contrário, saia beneficiada.

Um dos aspectos polémicos de todo esse processo é a saída de trabalhadores da administração pública. Como é que tal se está a fazer?

Nos países capitalistas, os trabalhadores que um governo entende que estão a mais no Estado são despedidos. Em Cuba, não é isso que se passa. O excedente de funcionários em alguns serviços e sectores resulta do facto de estes passarem a funcionar sob administração cooperativa ou empresarial.

Os trabalhadores que estavam numa quinta do Estado, por exemplo, ali continuam. Deixam de contar como funcionários públicos e passam a contar como funcionários daquela cooperativa. Na administração central, nos ministérios, o processo é idêntico. Se um serviço ou departamento de um determinado Ministério era responsável por um sector produtivo e por várias unidades, e se estes passam a funcionar como empresas, os trabalhadores que antes operavam nessa área passam a fazer parte do quadro de pessoal da empresa pública.

O Estado mantém o papel planificador?

A economia de Cuba continua a ser planificada. Continuam a ser determinados os objectivos da produção no interesse e necessidades colectivas. Mas aos ministérios fica reservado o papel de orientação das políticas, e já não de produção.

Temos uma debilidade que ainda não conseguimos resolver. Não temos um sector de venda por grosso capaz de fornecer bens e serviços às empresas. Implementámos uma solução provisória, que é as empresas poderem comprar onde se abastece a generalidade da população, mas com um preço bonificado.

Para construirmos mercados grossistas o mais rapidamente possível em 15 províncias, necessitamos de crédito.

Para produzir é necessário adquirir máquinas e ferramentas, meios de produção. Isso absorve uma grande quantidade de divisas de um país. Como é que Cuba está a resolver esse problema?

Cuba não recebe crédito de ninguém. Na verdade, nem sequer quer receber crédito de um Banco Mundial ou de um Fundo Monetário Internacional. A realidade vivida em países que se endividaram junto destas entidades mostra ser justa a nossa posição.

Então, o que temos de fazer é, à medida que aumentamos as exportações, usarmos as divisas e a manutenção do monopólio do comércio externo para comprar os meios de produção e outros bens necessários aos objectivos traçados. Não permitimos o uso de divisas para a compra de artigos desnecessários ou de luxo. A prioridade é o desenvolvimento, é para aí que vão os recursos existentes.

«Estas medidas podem ajudar a minorar os efeitos do bloqueio norte-americano?

Já nos acostumámos à ideia de que existe um bloqueio severo dos EUA. Não o ignoramos porque isso é impossível. O bloqueio é um constrangimento que está presente na mesa de cada cubano, que se lhe impõe quando vai a um hospital. O que acontece é que temos que olhar para esse mal desnecessário, injusto, criminoso, como um facto que não depende de nós alterar.»

«Considera as negociações de paz que decorrem em Havana entre as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia e o governo colombiano uma vitória diplomática de Cuba?

Não nos arrogamos a tanto. Consideramos que se tratou da constatação, quer da parte da guerrilha, quer da parte do governo, de que Cuba era um país credível e seguro para acolher um processo de diálogo produtivo. Não fazemos nem queremos fazer parte das negociações, oferecemos a nossa casa e hospitalidade. Respeitamos ambos e recusamos protagonismo.»

Esse é um dos factores que tem atrasado a evolução do processo de substituição das importações por produção própria, mas tem como lado positivo o facto de Cuba não ser uma nação endividada.

Não temos riquezas naturais valiosas como petróleo, mas, ainda assim, hoje as nossa exportações já superam as nossas importações, sendo que 70 por cento das nossas exportações são serviços.

A biotecnologia e o turismo continuam na dianteira?

Sim, por essa ordem, e ambos com bons índices de crescimento.

Como é que o povo cubano está a viver estas alterações?

Sem ponta de demagogia, digo que, como os cubanos foram parte da discussão e decisão das orientações económicas e sociais, não estão a ser surpreendidos por nada que desconheçam. É simples.

O povo cubano está, portanto, a viver este período como protagonista. Ao contrário do que observamos por esse mundo fora, não existe em Cuba o risco de uma explosão social. Ninguém se sente enganado pelo governo. Existe a consciência de que o que estão a fazer é para si, para seu benefício.

Podem pagar umas dissidências, inventar umas «primaveras à cubana». Não encontram eco no nosso povo, que se sente parte da revolução. Apesar de mais de 65 por cento da população cubana ter já nascido depois da revolução, sente os benefícios que dela resultam.

É claro que há sempre a ideia de que se podia avançar mais rápido. Mas mais forte do que isso, é a consciência das nossas limitações e possibilidades, e da necessidade de sermos assertivos. Sabem, também, que as alterações macroeconómicas não produzem efeitos imediatos, como costumamos dizer, «na mesa».

Acresce que, ao contrário do que sucede em muitos países, a pobreza em Cuba não aumentou. Pelo contrário, diminuiu e a Agência das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura ainda recentemente distinguiu o nosso país nessa matéria.

Ao mesmo tempo, mantemos dos mais elevados índices no que diz respeito à Saúde.

Estas medidas podem ajudar a minorar os efeitos do bloqueio norte-americano?

Já nos acostumámos à ideia de que existe um bloqueio severo dos EUA. Não o ignoramos porque isso é impossível. O bloqueio é um constrangimento que está presente na mesa de cada cubano, que se lhe impõe quando vai a um hospital. O que acontece é que temos que olhar para esse mal desnecessário, injusto, criminoso, como um facto que não depende de nós alterar.

Contexto favorável e perigos

Os processos progressistas que se observam na América Latina têm sido fundamentais para Cuba furar o isolamento que os EUA tentaram prolongar durante décadas?

Há 30 anos, ninguém tinha relações com Cuba, somente o México. Hoje passa-se o inverso. Em todo o continente americano, somente os EUA não têm relações connosco. É uma outra realidade, totalmente distinta.

Não é Cuba que o diz, são muitos dos líderes latino-americanos que sublinham que apesar das agressões, do bloqueio, a resistência revolucionária do nosso país inspirou e animou os processos em curso no subcontinente.

A eleição do presidente Raúl Castro como presidente da Comunidade de Estados da América Latina e Caraíbas (CELAC) expressa esse reconhecimento?

Claro. Antes da CELAC só existia a Organização de Estados Americanos (OEA), que Cuba sempre apelidou de ministério das colónias norte-americanas e que hoje não tem qualquer razão de existir. A eleição mostra que, mesmo da parte de países que estão longe de perfilhar projectos progressistas ou revolucionários, existe um grande respeito por Cuba e, sobretudo, a consciência de que sozinhos não podem enfrentar nem os EUA nem outros blocos imperialistas, como a UE, e muito menos resolver diferendos regionais no interesse dos nossos povos e nações.

A promoção de golpes, o incremento da presença militar no subcontinente, e, mais recentemente, a ideia de integração da Colômbia na NATO são exemplos que mostram que o imperialismo está a reagir aos avanços políticos e sociais na América Latina...

Estamos convencidos de que o imperialismo não vai mudar. Cuba foi o inimigo principal dos EUA durante muitos anos. Hoje compartilhamos esse infortúnio com a Venezuela, a Bolívia, a Nicarágua ou o Equador.

Nunca esquecemos que os EUA não desaproveitam uma oportunidade para garantir condições favoráveis aos seus interesses na região. Por isso partilhamos essa experiência com os nossos aliados e amigos latino-americanos. A nova geografia política na América Latina permitiu que, logo após a morte do presidente Hugo Chávez, chefes de Estado e representantes de vários países viajassem até Caracas a fim de assegurar que um golpe não interrompia a normalidade democrática.

Considera as negociações de paz que decorrem em Havana entre as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia e o governo colombiano uma vitória diplomática de Cuba?

Não nos arrogamos a tanto. Consideramos que se tratou da constatação, quer da parte da guerrilha, quer da parte do governo, de que Cuba era um país credível e seguro para acolher um processo de diálogo produtivo. Não fazemos nem queremos fazer parte das negociações, oferecemos a nossa casa e hospitalidade. Respeitamos ambos e recusamos protagonismo.

Recentemente voltou para Cuba René Gonzalez, um dos Cinco patriotas cubanos que foram presos pelos EUA. Na altura René disse que só seria livre quando os restantes quatro o fossem também. A liberdade de um aproxima a libertação dos demais?

Essa é uma pergunta que deveria ser feita ao presidente Barack Obama. Está nas suas mãos corrigir uma grave injustiça. É um facto político que os EUA insistam em mantê-los em cativeiro, sobretudo quando vários organismos e as próprias Nações Unidas se têm pronunciado a favor da repetição do julgamento, desta vez limpo, o que não aconteceu quando foram condenados. Importa também não esquecer que René está em Cuba porque já cumpriu a sua sentença.

Evidentemente que a solidariedade internacional, e em particular nos EUA, pode ser muito importante para, pelo menos, encurtar o período das penas. Isso é confirmado pelo facto de cada vez mais personalidades, eleitos no Congresso, artistas e intelectuais, entre os quais vários prémios Nobel, se colocarem ao lado da causa do Cinco.

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