Intervenção de António Filipe na Assembleia de República

Código de Processo Penal

Procede à 23.ª alteração ao Código de Processo Penal e aprova o Estatuto da Vítima, transpondo a Diretiva 2012/29/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2012, que estabelece normas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade e que substitui a Decisão-Quadro n.º 2001/220/JAI, do Conselho, de 15 de março de 2001
(proposta de lei n.º 343/XII/4.ª)

Sr.ª Presidente,
Sr.ª Ministra da Justiça,
Sr.ª Secretária de Estado dos Assuntos Parlamentares e da Igualdade,
Srs. Deputados:
De facto, este debate começou sob o signo da vitimização, não propriamente como era suposto, porque o que temos de discutir hoje é a proposta de lei que nos é apresentada, sobre o estatuto da vítima, mas a verdade é que a Sr.ª Ministra tem pautado, muitas vezes, o seu discurso nesta Assembleia por assumir para si própria o estatuto de vitimização e, normalmente, pensar que todos lhe devem desculpas.
E também é verdade que o Partido Socialista, em termos políticos, tem razão naquilo que aqui suscitou. Efetivamente, não faz o mínimo de sentido que a Administração Pública seja utilizada para monitorizar as propostas programáticas dos partidos da oposição, para isso, os partidos terão os seus gabinetes de estudos.
O PSD, o CDS, juntos ou separados, se quiserem monitorizar e estudar atentamente as propostas feitas pelos partidos da oposição, estão no direito de o fazer, o que não faz sentido é que a Administração Pública seja desviada das suas funções e que sejam canalizados os seus esforços para esse tipo de atuações de natureza político-partidária. E a resposta que a Sr.ª Ministra aqui deu não colhe, porque o facto de os diretores-gerais do Ministério já terem sido nomeados pelo Partido Socialista «não aquece nem arrefece» relativamente à questão de fundo, que é a de saber se os diretores-gerais devem ou não cumprir essa função, mas acabou por assumir, implicitamente, que, efetivamente, o fazem e, se o fazem, não o deveriam fazer.
Mas aquilo que nos traz a este debate é, de facto, a proposta de lei sobre o estatuto da vítima que aqui nos é proposto, transpondo, aliás, uma diretiva da União Europeia.
Importa dizer, em primeiro lugar, que a questão é, de facto, relevante, aliás, não é por acaso que é objeto de uma diretiva. E, na verdade, na legislação portuguesa existe ainda um défice de consideração da vítima em processo penal, a vários níveis.
Efetivamente, a aplicação da justiça criminal em Portugal, tendo, obviamente, como pressuposto a existência de vítimas, porque, em princípio, na esmagadora maioria dos tipos de crime, existe uma vítima ou vítimas concretas do facto criminal, tem sido pensada em termos da punição do criminoso, como é evidente, e não pode deixar de ser. Mas a sensação que existe, para muitas vítimas de crimes e na sociedade portuguesa em geral, é a de que a vítima não é suficientemente tutelada, e isto explica, de certa forma, algumas cifras negras que existem na criminalidade, particularmente na criminalidade mais comum e que afeta mais pessoas.
Há, inclusivamente, muitas pessoas que entendem que não vale a pena queixarem-se, porque a pessoa que faz uma queixa-crime, às vezes, acaba por ter mais preocupações do que propriamente o autor do crime. Portanto, há alguma renitência de muitas pessoas em fazerem queixa, em participar, considerando que não vão ganhar nada com isso e, por vezes, o criminoso até nem é punido e é a própria pessoa que acaba por ter maçadas, por ter de perder dias de trabalho e ter de se deslocar, sem resultados palpáveis.
Por outro lado, também é consensual que existe na legislação portuguesa um défice de tutela, designadamente em termos de compensação pelos prejuízos sofridos pelas vítimas, nomeadamente do ponto de vista psicológico. Há pessoas que ficam, por vezes, profundamente traumatizadas por terem sido vítimas de crimes e não têm o apoio que seria justo que lhes fosse concedido por parte do Estado. Portanto, muitas vezes, pune-se o criminoso, quando se consegue, quando isso é possível, mas esquece-se a situação da vítima.
Por outro lado, ainda, em matéria processual, é consensual que existe algum défice de consideração pelo papel que a vítima deve ter.
Ora bem, nesta proposta de lei, que visa transpor a diretiva, se é verdade que se dão alguns avanços, designadamente em matéria de alteração ao Código de Processo Penal, é verdade também que, ao ser remetida para um diploma em anexo, uma espécie de, diria, carta de direitos das vítimas, é preciso referir que essa carta de direitos não tem uma tradução legislativa que lhe permita uma efetividade nos diplomas em que era necessário que tivesse.
Darei apenas um exemplo: quando se refere que a vítima tem direito a apoio judiciário, mas, depois, se remete para a lei do apoio judiciário, temos de concluir que, nesse caso, não se avança nada, porque a nossa lei de apoio judiciário, do nosso ponto de vista, é claramente deficitária. Há muitas pessoas que, pela insuficiência de meios económicos, deveriam ter assistência judiciária e não têm e, portanto, a essas pessoas a justiça é negada por carência de meios económicos, e essas pessoas, sendo vítimas de crimes, não veem o seu problema resolvido, porque não têm assistência judiciária, e continuarão a não ter, apesar de serem vítimas de crimes. Portanto, ou se altera substancialmente a legislação sobre apoio judiciário ou de nada nos serve dizer que as vítimas de crimes tenham direito a apoio judiciário nos termos da lei respetiva.
Se não se introduzirem alterações substanciais nos diplomas, neste anexo para que o estatuto da vítima remete, naturalmente, temos um diploma muito positivo do ponto de vista proclamatório mas, depois, quanto à sua efetividade concreta, continuamos a ter défices muito preocupantes.
Pensamos, porém, que estamos perante uma base de trabalho e que é importante, apesar de tudo, que exista este estatuto da vítima. Não negamos a sua importância. Agora, deve fazer-se um esforço, no trabalho que ainda temos pela frente, para procurar que este estatuto da vítima seja transposto para os diplomas respetivos, de modo a que tenha, de facto, uma efetividade maior do que aquela que acontecerá se determinadas consagrações ficarem apenas nesse estatuto e não tiverem outra tradução legislativa.

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