Texto de Ruben de Carvalho

Carvalhesa

Em Março de 1985 a Comissão Política do CC do PCP criou um grupo de trabalho com o objectivo de se tentar criar um tema musical para a campanha eleitoral para as eleições legislativas desse ano e que desse identidade sonora às diversas manifestações, desde os carros de som até aos indicativos de tempos de antena.

A primeira ideia dessa equipa foi a de encontrar um tema de música tradicional portuguesa a que se pudesse dar um tratamento instrumental no estilo do que entretanto se começara a chamar MPP, Música Popular Portuguesa. Vivia-se então um momento de grande criatividade em termos de música popular, na esteira de Zeca Afonso e Sérgio Godinho, os trabalhos dos Trovante, de Júlio Pereira, de Fausto tinham criado uma sonoridade tão nova quanto portuguesa e que conseguia um resultado inteiramente surpreendente: conquistava público em todo o País e em todas as áreas culturais. Pelas suas raízes no folclore despertava eco nas audiências culturalmente fixadas em raízes e padrões rurais com a mesma facilidade com que desencadeava o entusiasmo de plateias juvenis que de bom grado trocavam a batida rock por surpreendentes linhas rítmicas bebidas em adufes e Zés-Pereiras.

Pensou-se assim procurar um dos temas tradicionais que Lopes-Graça harmonizara para o Coro da Academia de Amadores de Música, assegurando mais uma significante ligação entre duas épocas e dois estilos, ligados pela comum paixão pelo património popular e pela comum identificação ideológica e política com os interesses do povo português. Optou-se em primeiro lugar por uma conhecidíssima melodia, a do «Canta, camarada, canta». Sabe-se como esta velha canção de contrabandistas transmontanos adquirira durante o fascismo um cunho claramente progressista, não apenas pelo facto de a Lopes-Graça se dever a sua divulgação, mas também pelo uso do vocativo «camarada».

A ideia era que o arranjo fosse puramente instrumental, mas defrontou-se a dificuldade de a melodia possuir letra tradicional e bem conhecida entre os democratas - sendo praticamente inevitável que a sua execução coral acabasse a generalizar-se. E se nada vinha de mal ao mundo se num comício da então APU se cantasse «canta, camarada canta/canta que ninguém te afronta», já parecia polémico que no mesmo local se atroasse os ares afirmando «eu hei-de morrer de um tiro/ou de uma faca de ponta»... E se não seriam de prever críticas ao «viva a malta, trema a terra/daqui ninguém arredou», as coisas poder-se-iam complicar com o «quem há-de temer a guerra/sendo um homem como eu sou»...

Passou-se então à consulta do livro «Cancioneiro Popular Português» de Michel Giacometti (Círculo de Leitores. Lisboa, 1981). Piano em frente, lá se foi procurando e, uma semana decorrida, pelas três da manhã, a «Carvalhesa» deve ter soado pela primeira vez fora de Trás-os-Montes, de onde é natural. Em Julho desse ano gravou-se a primeira versão e editou-se um maxi-single de vinyl.

Como se explica no folheto que acompanhou essa primeira edição, verificou-se, porém, ainda antes da gravação, um «caso». Poucos dias depois da escolha, tinha-se procurado nos discos dos «Arquivos Sonoros Portugueses», de Giacometti e Lopes-Graça, se lá estaria a «Carvalhesa» gravada em versão original e popular - e estava! Imediatamente se decidiu pedir a Giacometti uma cópia da gravação e ter-se-ia um excelente lado B do maxi-single.

Contudo, ao ouvir o disco dos «Arquivos», verificou-se com grande perplexidade que a «Carvalhesa» que o gravador de Giacometti registara em Trás-os-Montes e ali se reproduzia não era manifestamente aquela cuja pauta se encontrava no livro e que se iria utilizar. O mistério seria decifrado dias mais tarde pelo próprio Giacometti.

No início deste século, um jovem maestro e compositor alemão, nascido em Berlim em 1882, fixou-se em Nova Iorque. Estudara em Berlim e Munique, apenas com 20 anos era maestro assistente da ópera de Stuttgart e, em 1905, começa a desempenhar idênticas funções no New York Metropolitan. O seu nome - Kurt Schindler.

O trabalho de Schindler nos Estados Unidos foi profícuo em numerosas áreas. Criou, em 1909, o coro da MacDowell Church (rebaptizado Schola Cantorum em 1912) que desempenhou importantíssimo papel na divulgação e recuperação coral clássica e moderna, foi organista do famoso Temple Emanu-El de Nova Iorque, compôs, dirigiu.

No final da década de 20, o laureado maestro largou a sua confortável vida de músico reconhecido e respeitado na grande metrópole e embarcou para a Europa para fazer investigação etnográfica - em Espanha! A escolha do local não é surpreendente: a música espanhola, coral e de órgão, estivera sempre no centro dos interesses de Schindler, tanto quanto a música tradicional, para a qual fora profundamente influenciado pelo seu professor de adolescência Max Friedlander.

De gravador de discos de alumínio debaixo do braço, Schindler percorreu durante os anos de 1931 e 32 as Astúrias, Navarra, o Norte da península, e, em 1932, atravessando as difusas raias transmontanas, acabou por entrar em Portugal onde prosseguiu o seu trabalho. Infelizmente, porém, o gravador avariara-se e Schindler fez a sua recolha em Trás-os-Montes apenas mediante transcrições musicais.

Regressado aos EUA, viria a falecer em 1935. Postumamente, a Columbia University editou o resultado das suas investigações em «Folk Music and Poetry of Spain and Portugal» (Columbia University. Hispanic Institut in the United States. New York, 1941. Existe uma reedição do Centro de Cultura Tradicional. Salamanca, 1991. Vd. http://digilib.nypl.org/dynaweb/ead/music/musschindle).

Mais de vinte anos depois, em 1958, um etnólogo natural de Ajaccio, na Córsega, que acabara de dirigir uma missão internacional de estudo do folclore das ilhas mediterrânicas, descobriu o livro de Schindler nas prateleiras da biblioteca do Museu do Homem, em Paris. Meses depois, sobraçando o primeiro gravador Nagra (ainda de manivela!) a aparecer em Portugal, Michel Giacometti seguia as pisadas de Schindler no Nordeste transmontano e entrava pela primeira vez num país que iria adoptar como seu e que o iria adoptar como um dos seus filhos.

Nessas primeiras andanças por Trás-os-Montes, Giacometti foi ainda encontrar a memória do investigador americano que por ali andara duas décadas antes. E o seu tecnológico microfone era comparado, pelos músicos populares que gravou, com a fascinação que sobre eles exercera aquele estrangeiro que escrevia sinais num papel enquanto os escutava para depois, quase misteriosamente, repetir exactamente os mesmos sons lendo os pontos e riscos que anotara...

Em 1981, Giacometti teve finalmente possibilidades de editar o seu «Cancioneiro Popular Português» e fê-lo com a probidade de intelectual e de homem de ciência que era: nele não inclui exclusivamente os registos efectuadas durante o seu trabalho e a sua colaboração com Fernando Lopes-Graça, mas sim uma selecção geral - definida por critérios de rigor e qualidade - do trabalho de quantos contribuíram para a recolha de melodias criadas pelo povo português. E ali se encontram mesmo recolhas de homens que, fixando embora a voz do povo, bem pouco a respeitavam, como o caso do desconfiado musicólogo amador que, nos anos 60, informou pressuroso a PIDE de que pelas suas terras andava pregando a subversão um francês que recolhia melodias e tradições... Giacometti sorria, quando contava: «Mandei-lhe o livro, telefonou-me, agradecendo, desfazendo-se em desculpas, tentando explicar aquilo ..» E, investigador apaixonado e generoso, concluía: «é de direita, mas é um bom homem. E muito sério nas recolhas que fez

A «Carvalhesa» foi uma das peças objecto de selecção. Exactamente na mesma aldeia (Tuiselo, perto de Vinhais - Bragança) onde em 1932 Schindler recolhera a melodia publicada em «Folk Songs...», Giacometti havia recolhido em 1970 uma outra, a que os seus executantes populares atribuíam o mesmo nome, mas inteiramente diferente.

O facto não é estranho. Como se afirma nas notas do «Cancioneiro», «a "CarvaIhesa", dança de quatro laços, era, com a "Murinheira" e o "Passeado", o baile preferido da região. O instrumento tradicional a acompanhar estas danças era a gaita de foles». Ou seja, a «Carvalhesa» é essencialmente uma dança, para a qual se conhecem duas melodias, mas que poderá mesmo ter sido dançada com outras entretanto perdidas. Face às duas versões, Giacometti entendeu ser mais interessante a recolhida por esse compositor alemão que fora o ausente cicerone da sua descoberta de Portugal. E, página 217 do «Cancioneiro, tema 166, lá ficaria a «Carvalhesa» recolhida por Kurt Schindler.

O arranjo da «Carvalhesa» gravado em 1985 acompanhou a actividade política do PCP em sucessivas campanhas eleitorais, na Festa do «Avante!», cujos palcos sempre abre e encerra e dos quais se tornou verdadeiramente emblemática.

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