Intervenção de Agostinho Lopes na Assembleia de República

"O caminho da renegociação da dívida pública não é uma solução fácil, mas deve ser encetada com urgência, por iniciativa do Estado português"

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Sr.ª Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados:

Devido à importância do debate que hoje aqui vamos travar, pelo facto de, amanhã, se realizar uma importante cimeira europeia sobre esta situação de crise na zona euro, desafiámos o Governo a estar neste debate, para confrontar os seus argumentos com os nossos, mas o Governo não quis estar presente, o que, devemos dizer, lamentamos profundamente.

Sr.ª Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados:

A 5 de Abril de 2011, vésperas do pedido do Governo PS de intervenção externa, o PCP avançou com a proposta da renegociação da dívida pública: uma resposta patriótica e de esquerda ao rumo de desastre nacional que estava a ser imposto.

Opondo-se, o PS, o PSD e o CDS escancaram as portas a uma intervenção externa do FMI, do Banco Central Europeu e da Comissão Europeia: um programa ilegítimo de submissão e agressão ao povo e ao País, que o novo Governo PSD/CDS, com a colaboração do PS, quer concretizar e ir mais além.

Srs. Deputados: Como há muito denuncia o PCP, o endividamento do País é a consequência mais visível da política de desastre nacional que o PS, o PSD e o CDS impuseram nos últimos 35 anos. Um endividamento líquido público e privado que assume hoje — este, sim! — uma colossal dimensão, consequência da desindustrialização, do abandono da agricultura e das pescas, das privatizações, da «financeirização» da economia, da submissão às imposições da União Europeia e do grande capital nacional e estrangeiro.

Um processo que se acentuou de forma exponencial, por via da adesão ao euro e da gestão orçamental segundo o PEC, consequência da transferência para o Estado, que, depois, transferiu para os portugueses, dos prejuízos do sector financeiro com a crise internacional — ler «BPN e C.»… —, a que se segue, há um ano, a criminosa espiral especulativa, que, a par da austeridade dos PEC, nos conduziu a uma dramática situação social e económica.

Uma dívida que não decorre de um povo «a viver acima das suas possibilidades» ou por causa de uma anónima classe política ou, pior ainda, por idiossincrasias do povo, mas por causa de políticas e de opções políticas do PS, do PSD e do CDS e dos seus governos, num processo de aprofundamento da dependência externa e de subordinação aos grupos do grande capital. Uma dívida que tem uma componente opaca e ilegítima, que necessita de ser apurada, para se determinar a efectiva responsabilidade do Estado português.

Srs. Deputados, o caminho da renegociação da dívida pública não é, certamente, uma solução fácil, nem pode constituir uma medida isolada, mas deve ser encetada com urgência, por iniciativa do Estado português.

Eis alguns eixos que consideramos essenciais: a prévia avaliação completa e rigorosa da dívida; um serviço da dívida compatível com o crescimento económico; a salvaguarda dos pequenos forradores; a reconsideração do empréstimo do FMI/BCE/CE; uma forte iniciativa negocial e diplomática junto de outros países, visando uma acção convergente e solidária na resolução de problemas comuns; uma política activa de «renacionalização» e de diversificação externa do financiamento; a consolidação das finanças públicas; e o aumento da produção, contendo e substituindo importações por produtos nacionais e fazendo crescer as exportações.

Srs. Deputados: A alternativa à renegociação foi o programa de submissão e agressão externa da tróica, ou seja, a garantia do dramático agravamento dos problemas do País: mais recessão, falência de milhares de pequenas empresas, mais desemprego, mais pobreza e atraso económico e social.

Um programa que é um escândalo, pelo seu destino — o sector financeiro —; pelos 30 000 milhões de euros de juros a pagar; pelo aumento da exploração dos trabalhadores; pelo aumento generalizado de impostos e dos preços; pelos cortes na saúde, na educação e na segurança social; pelos cortes nos investimentos públicos; pelas privatizações; e porque é insustentável, não resolvendo a própria questão da dívida pública, mas que abrirá portas, certamente, para novas medidas de austeridade, de que já é exemplo o roubo do subsídio de Natal.

Um programa que viola a independência e a soberania nacionais, que acentuará a dependência e as fragilidades estruturais do País e que, em confronto com a Constituição da República, atinge o próprio regime democrático.

Um programa semelhante ao que foi aplicado na Grécia e na Irlanda, que é uma autêntica recolonização, com as consequências que conhecemos.
E um programa inútil que, como na Grécia e na Irlanda, não travou o agravamento vertiginoso da especulação financeira, o lixo das agências de rating, a cacofonia europeia e a insuportável pesporrência e prepotência imperial da Sr.ª Merkel e C.ª…!

Srs. Deputados:

Políticos e ideólogos neoliberais em Portugal, da socialdemocracia aos conservadores, gente do PS, do PSD e do CDS (a lista é longa!), são diariamente confrontados com a brutal realidade da integração europeia e do euro — a pedra sobre a qual um Primeiro-Ministro de Portugal ia construir a sua Europa… — no quadro da crise do sistema capitalista.

Confronto que põe a nu toda a propaganda e todas as fraudes e mentiras que, ao longo de 25 anos, foram impingidas sobre uma União Europeia de «coesão económica, social e territorial» e de «solidariedade entre os Estados-membros», ainda hoje inscrita nos Tratados.

É, assim, necessário ensaiar velhas e novas explicações e justificações e inventar soluções miraculosas para a dramática situação que Portugal e outros países da periferia europeia enfrentam.

Explicações e justificações com que entramos no reino dos mitos: o mito dos pais fundadores da CEE; dos líderes inspirados — não se sabe se por alguma luz divina… — que se lhes seguiram; do tempo do paraíso comunitário, em que o feroz leão convivia com o manso cordeiro (não sabem alguns, ainda hoje, de que se alimentava o leão…!), onde não havia «egoísmos nacionais»; dos «grandes e desinteressados» líderes, que, guiados pelo ideal de uma Europa unida e solidária, conseguiram o facto notável de mais do que duplicar o número de Estados membros no alargamento a Leste, reduzindo o orçamento comunitário!
E, perante uma gestão da crise das dívidas soberanas, conduzida pelos interesses do capital financeiro europeu e do Directório, onde prevalecem os interesses da Alemanha, e a profunda crise da zona euro, desdobram-se em lamentações sobre a escassez de líderes e a fartura de egoísmo e inventam soluções mirabolantes e bombásticas, que, em geral, escondem a proposta e a escolha, pura e dura, de um super-Estado federal, o projecto que os povos da Europa acabaram por derrotar, ao negar a «Constituição europeia».

Projecto que, aliás, mesmo transfigurado de Tratado dito de Lisboa, foi dotado de avanços significativos de federalismo, para lá do aprofundamento do neoliberalismo e militarismo, mas não acrescentou uma vírgula à prevenção e à resposta à profunda crise que atravessamos.

É assim que aparece um novo «New Deal», subscrito por Mário Soares e Jorge Sampaio, e nasce «Uma visão clara para o Euro», um novo Plano Delors e C.ª (González, Prodi e Vitorino) — até o Presidente da República veio, no sábado, fazer o apelo platónico à desvalorização do euro, para favorecer a competitividade das exportações europeias, esquecido que esteve de se manifestar contra a também recente subida da taxa de juro pelo BCE!…

Tudo para confortar a possível consolidação da tese de um ministro das finanças europeu, embrião de um pretendido futuro governo económico europeu.
Srs. Deputados: Tudo tem acontecido, desde há cerca de ano a esta parte, na União Europeia e na zona euro, com a desestabilização económica, social e política de Estados-membros soberanos, como a Grécia, a Irlanda e Portugal, perante a chantagem e a agiotagem dos chamados mercados financeiros e agências de rating, e a participação activa dos membros do Directório das grandes potências.

E se, depois de tudo isto, há ainda alguém que julga que a solução passa pelo reforço do comando político e económico do Directório, via soluções federalistas, como não é possível admitir ingenuidade ou boa fé, tal desígnio só pode ser classificado como cumplicidade com políticas que ofendem a dignidade e direitos de milhões de cidadãos da Europa.

Não há mais margem para ambiguidades e dúvidas. Portugal, seguindo as orientações comunitárias, teve o PEC 1, o PEC 2, o PEC 3, transformado em Orçamento do Estado, o nado-morto PEC 4, a intervenção externa do Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu e Comissão Europeia, o dito memorando da tróica, recauchutado em versão agravada em Programa do XIX Governo Constitucional.

Cada um desses programas visava acalmar os mercados financeiros. Cada cedência abria-lhes o apetite e subia a parada da chantagem! E a União Europeia a ver! E após o último, o Programa do Governo, com um acrescento de última hora, em antecipação aos desejos dos mercados, de um preventivo imposto sobre os trabalhadores e os pensionistas, para escândalo de tanta gente, acabámos no «lixo» de uma agência de rating. E oh escândalo!, oh indignação!, oh repúdio dos que ainda há umas semanas ou meses diziam ser necessário respeitar os mercados financeiros! Mas pode alguém ser quem não é? Consumatum est? Não! Até à próxima!

Srs. Deputados, um dia destes, alguém, comentando estas coisas do euro e da reestruturação da dívida no Diário Económico, sob o título «Razões radicais», referindo o PCP, escrevia direito por linhas tortas e perguntava: «Por que razão acontece tantas vezes que o discurso da esquerda mais radical acaba por ter razão antes do tempo?» E concluía: «Será que, daqui por uns tempos, vamos ouvir os economistas de direita reconhecer que isso é inevitável?»

Quem politicamente não tiver preconceitos terá de olhar para o percurso dos posicionamentos do PCP sobre estes assuntos e, no mínimo, concluir pela coerência, consistência e aderência à realidade do seu discurso, nomeadamente sobre a adesão à CEE, sobre os sectores produtivos nacionais, sobre a moeda única — o euro — e sobre o endividamento do País.

Essas são razões fortes para uma reflexão séria sobre o projecto de resolução «Pela renegociação da dívida pública e pelo desenvolvimento da produção nacional», que hoje trazemos a debate.

(…)
Sr.ª Presidente e Srs. Deputados,

começarei pela ordem inversa das questões que me foram colocadas, dizendo ao Sr. Deputado José Luís Ferreira que desses 78 000 milhões , que eu saiba, nem 1 € está previsto para o sector produtivo.

Poderão alguns argumentar que esta é a forma de garantir que o sector bancário crie condições de crédito adequado ao tecido produtivo português. Nem isso! Todos sabemos que o tecido produtivo, as pequenas e médias empresas enfrentam custos acrescidos na contratação de empréstimos e, sobretudo, grandes dificuldades em aceder ao financiamento.

Sr.ª Deputada Hortense Martins, nós não estivemos presentes nas reuniões com a tróica e continuaríamos a não estar. Nós respeitamos a Constituição da República Portuguesa!

E poderia reverter-lhe a questão, perguntando-lhe se o PS continua a achar que fez bem em ter estado presente numa negociação que não foi negociação nenhuma e que foi, sim, a aceitação de uma imposição.

A Sr.ª Deputada Hortense Martins acusa o PCP de, com a renegociação, querer conduzir o País à lista dos países incumpridores.

Sr.ª Deputada, quem conduziu o País à lista dos incumpridores foram vocês, os vossos partidos, os vossos governos! Os governos do PSD e do PS, ao longo dos anos, é que conduziram o País ao buraco em que se encontra, à situação de incumpridor e às suas dificuldades de financiamento nos mercados externos!
Sr. Deputado Cristóvão Crespo, consideramos muito importante a respeitabilidade do País e do Estado português nos mercados internacionais, mas também não gostamos de ser ingénuos e julgamos, para não dizer outra coisa, que há uma grande ingenuidade em pensar que, por via da concretização do acordo da tróica, nós vamos ser respeitados.

Ó Sr. Deputado, olhe para o exemplo da Grécia! A Grécia não lhe diz nada?!..

Sr. Deputado, vou repetir-lhe o que disse daquela tribuna: houve um PEC 1, um PEC 2, um PEC 3 — transformado, com o vosso apoio, em Orçamento do Estado —, um PEC 4 que não chegou a ver a luz do dia, o acordo da tróica e um Governo que transformou esse acordo em Programa do Governo do Estado português.

Diga-me, Sr. Deputado: qualquer destas decisões alterou a credibilidade do País nos mercados financeiros?!

Sr. Deputado Cristóvão Crespo, gostava que os senhores me esclarecessem — até estava à espera que o Sr. Deputado dissesse alguma coisa sobre isso — porque é que o vosso Ministro da Economia, o Prof. Álvaro Santos Pereira, no seu último livro, diz esta coisa espantosa: «Por isso, e face aos exorbitantes montantes da nossa dívida e ao crescente peso dos juros, é bastante possível que, mais tarde ou mais cedo, o Governo português se declare impotente para pagar a totalidade da dívida pública, ou seja, é muito possível que cheguemos a uma situação em que o Estado português se veja forçado a reestruturar a sua dívida pública junto de credores internos e externos».

Neste capítulo, o Sr. Ministro da Economia, o vosso Ministro da Economia, tem três períodos em defesa da reestruturação da dívida.

Sr. Deputado Cristóvão Crespo, consideramos que essa reestruturação não deve ser feita quando o País estiver completamente sem remendo. Pensamos que deve ser o Estado português a tomar essa iniciativa para ainda ter capacidade de fazer aquilo que, agora, só a renegociação nos pode dar, que é poder negocial junto dos nossos credores para enfrentar a sério, com coragem política, este problema.

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