Intervenção de Luísa Mesquita na Assembleia de República

Intervenção do Estado nas actividades cinematográficas do audiovisual e do multimédia

Senhor Presidente
Senhores Deputados
Senhor Ministro

O decreto-lei nº 15 de Janeiro de 1999 que hoje é objecto de apreciação parlamentar decorre de um processo de discussão pública cada vez mais frequente quer neste governo, quer no Ministério da Cultura em particular.

Ainda há poucos dias esta Assembleia rejeitou, por maioria, a proposta de lei de Bases do Património que ninguém conhecia e que havia resultado de um relatório intercalar, esse sim objecto de consulta pública.

No que se refere a este decreto-lei, ele decorre de um ante-projecto, relativamente ao qual foram ouvidas organizações representativas das diversas áreas; só que o diálogo permitiu ao Senhor Ministro da Cultura retirar os conteúdos considerados mais positivos e manter todos os outros que foram objecto de pareceres mais críticos.

Estamos claramente perante uma azáfama de produção legislativa contra natura.

Quatro anos para diagnosticar, avaliar e procurar soluções foram insuficientes e daí a aposta na fuga, já com a meta à vista.

Só assim se entende o texto que hoje apreciamos.

Se no ante-projecto ainda se vislumbrava alguma coerência interna, alguma linha conceptual estruturante e alguma similitude entre o texto e o programa do governo, neste decreto-lei as contradições, os enxertos realizados ao sabor das imposições mercantilistas da arte e o total propósito de ignorar a criação e a exibição do nosso produto artístico nacional são os traços mais marcantes.

Repare-se, por exemplo, no preâmbulo do decreto-lei quando se afirma a existência "de uma visão integradora dos sectores do cinema, do audiovisual e da multimédia" e quando se define que o papel do estado no seu exercício regulador assenta na cooperação interministerial, constituída por três eixos de cooperação:

Por um lado a criação de novos públicos, escolas e formação profissional a cargo dos Ministros da Educação do Trabalho e da Solidariedade.

Por outro, a consolidação e desenvolvimento do tecido económico a cargo do Ministro da Economia e do Secretário de Estado da Comunicação Social.

E finalmente o terceiro eixo, o da investigação e desenvolvimento artístico e tecnológico, a cargo do Ministro da Ciência e Tecnologia.

A visão integradora vem do programa do Governo, o preâmbulo explicita-a mais uma vez e o decreto-lei ignora-a.

Absolutamente nada do que aqui se afirma aparece regulamentado no corpo do diploma.

E o preâmbulo termina com uma referência à internacionalização do cinema, do audiovisual e multimédia nacionais e à necessidade dos apoios a esta divulgação, considerando os espaços europeus e lusófonos como espaços privilegiados. E mais uma vez se prevê o eixo com o Ministério da Economia.

E mais uma vez não há eixo. Nada está previsto. Não há medidas que, minimamente, apontem neste sentido.

As que existem são exactamente de sentido contrário; ou seja, de não protecção da produção/criação nacionais, mesmo quando e tão só dentro do espaço português.

E tão clara é esta aposta de silenciamento e abandono dos nossos criadores que as poucas medidas que constavam do ante-projecto e que apontavam para a obrigatoriedade de quotas de distribuição e exibição de filmes nacionais, pura e simplesmente se volatilizaram no documento final.

Provavelmente porque foram consideradas positivas pelos produtores e realizadores nacionais e naturalmente condenadas por aqueles que controlam e dominam a distribuição e a exibição de obras cinematográficas; os que planificam e determinam a nossa formação cinematográfica e audio-visual a milhas de distância.

Se esquecermos o preâmbulo que, naturalmente, não sendo "tipo" também não serve à personagem do texto hoje em apreciação, e passarmos ao decreto-lei, é suficientemente visível descobrir a favor de quem e contra quem o clausulado foi construído.

O Capítulo I é tão generalista que dificilmente serviria a qualquer lei de bases.

O Capítulo segundo, da produção cinematográfica, plasma já com clareza um dos objectivos do decreto-lei - asfixia financeira à produção nacional por omissão de mecanismos claros de apoio, que se escudam num conjunto de artifícios selectivos, apoiados por uma tutela centralizadora.

O Capítulo III, da distribuição e da exibição cinematográfica, plasma com redobrada clareza o 2º objectivo deste decreto-lei - nada fazer relativamente à garantia de distribuição e exibição de filmes nacionais no mercado cultural português.

E no cumprimento deste objectivo, o artigo 22º é sobejamente esclarecedor e profundo:

"O Ministro da Cultura deve adoptar medidas que facilitem o acesso de filmes de produção nacional ou equiparados, aos mercados da distribuição e exibição cinematográficas".

Só lhe falta, mas adivinha-se a vontade, quiçá, uma alínea a) remetendo para rodapé. - Se a Lusomundo concordar.

Senhor Presidente
Senhores Deputados

Muitos outros exemplos poderiam ser dados dos reais objectivos deste instrumento legislativo, das contradições que o enformam e da sua inutilidade no que ao desenvolvimento e defesa das actividades cinematográfica, audiovisual e multimédia nacionais diz respeito.

Ele preenche, no entanto a matriz para que foi criado. A defesa, a qualquer preço, das teorias neoliberais do mercado cultural, escudando um gradativo processo de desresponsabilização do Estado, executante exclusivo de práticas administrativas, lesivas dos interesses culturais de todos nós.

Disse.

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