Nota da Comissão para as Questões da Ciência e Tecnologia

Avaliação dos laboratários do Estado - Um processo viciado

Em Dezembro de 1995 o Conselho de Ministros incumbiu o Ministro da Ciência e da Tecnologia de "desencadear (...) as acções necessárias a uma aprofundada e independente avaliação do sector público de investigação", e, em seguida, de obter "propostas das reformas institucionais e orgânicas que melhor se adequem às recomendações" resultantes daquela avaliação. O processo culminaria na apresentação, no prazo máximo de um ano, das "medidas programáticas, legislativas, regulamentares e financeiras necessárias à realização da reforma do sector(...)". A metodologia a seguir é definida pelo Ministro da Ciência e Tecnologia, em despacho de 2 de Janeiro de 1996, de que só passado mais de um ano é dado conhecimento público. Nesse despacho, o Ministro da Ciência e Tecnologia determina a constituição de um Comité Internacional de Aconselhamento e de sete "grupos internacionais de avaliação", compostos exclusivamente por "peritos estrangeiros", e, ainda, de sete "comissões portuguesas de acompanhamento". Ao longo de 1996 o Ministro foi despachando a composição desses grupos e comissões, mas só em finais de Janeiro deste ano, entendeu oportuno publicá-la, embora os processos de avaliação de várias instituições já viessem de facto, a decorrer, há alguns meses.

Passados 15 meses sobre o início de um processo atabalhoado susceptível de ter repercussões muito negativas sobre o Sistema Científico e Tecnológico nacional, importa analisar alguns dos seus aspectos mais significativos, fazendo ao mesmo tempo o ponto possível da situação.

Avaliação duvidosa

Sem pôr em causa a necessidade de proceder a uma reorganização dos laboratórios que tenha em conta a sua importância estratégica e os revitalize - o que não é de todo possível sem o considerável reforço dos recursos humanos e materiais à sua disposição - importa dizer que o presente processo de avaliação contém aspectos discutíveis e que têm sido contestados: os seus objectivos são mal definidos, a metodologia é incorrecta, a participação dos investigadores e técnicos directamente interessados, e que conhecem bem as instituições, é marginal. A própria utilidade da avaliação, tal como está a ser conduzida, é duvidosa.

Em primeiro lugar, a metodologia fixada está longe de ser pacífica. É discutível o aparente protagonismo em todo o processo, de especialistas estrangeiros, naturalmente, desconhecedores da realidade nacional. Por outro lado, e ao mesmo tempo que explicitamente se determina a divulgação nas instituições avaliadas dos relatórios dos grupos internacionais, mantêm-se em segredo, até à conclusão do processo, os pareceres que sobre esses relatórios as comissões portuguesas são chamadas a elaborar, e as recomendações que entenderem fazer, parecendo recear-se o juízo que sobre eles e os seus autores poderá fazer a comunidade científica directamente interessada, e interessada, concretamente, numa real independência da avaliação.

O papel do Comité Internacional de Aconselhamento é, no mínimo, pouco claro. Com efeito, atribui-se-lhe a competência para "aprovar os relatórios redigidos pelos grupos internacionais de avaliação", sobre os quais terão entretanto recaído os comentários (por vezes acentuadamente negativos), "individuais ou colectivos", nascidos no interior das instituições avaliadas e expressamente solicitados pelo Ministro, dos quais se ignora que destino terão. Outra função eminente do referido Comité, consistiria em assegurar a coerência da avaliação, coisa que a simples leitura dos relatórios produzidos mostra não ter sido conseguido, desde logo em aspectos tão essenciais como o de saber que critérios de avaliação deveriam ser usados. É também estranho que o "despacho metodológico" do Ministro da Ciência e da Tecnologia não determine que os pareceres e as recomendações produzidos pelas comissões portuguesas de acompanhamento sejam necessariamente dados a conhecer aos grupos internacionais de avaliação "acompanhados".

Estranham-se, finalmente, as demoras que em certos casos se verificaram na realização das visitas dos grupos internacionais de avaliação, bem como no envio para apreciação pelos organismos avaliados e pelas comissões portuguesas de acompanhamento, dos relatórios dos avaliadores estrangeiros.

Esta grande confusão de processos, de ideias e de competências, criou uma situação propícia às movimentações de interesses restritos instalados ou com acesso ao poder político, em que é patente o risco do recurso a especialistas estrangeiros de renome, contrariamente ao propósito oficialmente anunciado, acabar por ser utilizado como simples disfarce para a concretização de objectivos pre-determinados por esses interesses.

Relatórios "preliminares"

Os relatórios "preliminares" de avaliação já produzidos revelam claramente metodologias e objectivos diversos, além de diferente profundidade (ou superficialidade) de análise, o que, desde logo, põe em causa a concepção e a coerência do processo global, bem como o real empenho e a competência da estrutura de avaliação criada.

Os vários relatórios convergem, todavia, na verificação da existência de um sistemático sub-financiamento dos laboratórios do Estado, tanto no que respeita ao funcionamento como no que toca ao investimento. Convergem também no reconhecimento do envelhecimento dos corpos científico e técnico, resultante do sistemático congelamento de admissões.

Há recomendações comuns aos vários relatórios, com destaque para as seguintes:

  • mais clara definição das missões institucionais e das estruturas orgânicas que lhes correspondem;

  • maior autonomia e responsabilização dos laboratórios e das suas unidades orgânicas;

  • melhor gestão, controlo de execução e acompanhamento de projectos;

  • reforço da articulação interna e interdisciplinaridade dos projectos;

  • reforço de estruturas e mecanismos de articulação externa e de transferência para o exterior, de conhecimentos e saber-fazer;

  • maior colaboração e mobilidade de investigadores e outro pessoal, entre os Laboratórios, as Universidades e as Empresas;

Vários relatórios destacam:

  • a importância do património acumulado, humano, documental e instrumental;

  • a importância da actividade desenvolvida e que vem sendo prosseguida, no domínio da formação avançada e especializada.

A par das convergências anteriores que correspondem ao reconhecimento de realidades insofismáveis que marcam todos as instituições avaliadas, aliás bem conhecidas e repetidas vezes sublinhadas em textos desta Comissão e pelos trabalhadores dos laboratórios, os vários relatórios divergem em outros aspectos importantes, como sejam:

  • umas vezes é valorizada e encorajada a participação em projectos internacionais (aliás fonte de financiamento e de motivação, de outro modo inexistentes); outras vezes, essa participação é condenada;

  • umas vezes reconhece-se o esforço dos Laboratórios na criação de conhecimentos e na transferência de tecnologia para os diferentes sectores de actividade económica e social, e apontam-se as insuficiências de outras estruturas ou das políticas governamentais que deveriam potenciar esse esforço; outras vezes atribui-se-lhes a responsabilidade pelos magros resultados alcançados neste capítulo (como se os laboratórios pudessem ser responsabilizados por deficiências e omissões que necessariamente os ultrapassam);

  • umas vezes é realçado o valor do potencial humano das instituições, considerado subaproveitado; outras vezes, propõe-se, sem pudor, a reforma antecipada dos potencialmente mais competentes e, bem ou mal, mais experientes, como solução para repor uma estrutura etária distorcida por uma prolongada política de congelamento de admissões!

Que política?

A superficialidade, duvidosa qualidade e limitada relevância de alguns dos relatórios já produzidos, comprovam que competência não é um valor absoluto, independente das circunstâncias, do tempo e do lugar. Qual seria o desempenho dos avaliadores se trabalhassem nas condições adversas com que se defrontam os investigadores portugueses?

A possibilidade de fundamentar neste processo de avaliação, uma reforma coerente e útil para o País, do sector público de investigação, é, certamente, muito remota. Pelo contrário, há o perigo de que venham a ser invocados fora de contexto aspectos parcelares de uma avaliação toda ela já de si descontextualizada do País real e de um passado de continuada degradação dos laboratórios, sustentada por políticas que de facto ignoram como se faz e para que serve investigação e desenvolvimento (I&DE), e fazem prevalecer uma visão objectivamente obscurantista, no plano da cultura, e economicista de curto prazo, no plano dos recursos e dos benefícios materiais. Há o perigo de ver lançar novas iniciativas que contribuam para prosseguir a degradação das condições de trabalho que se verifica desde há mais de dez anos.

A intenção de avaliar e de reformar o sector público de investigação e desenvolvimento experimental surge assim como um projecto de resultados cada vez mais problemáticos. Justifica-se e é eficaz centrar a observação e a crítica nos laboratórios públicos, sem que, antes, o Governo clarifique as suas políticas sectoriais de desenvolvimento socio-económico e, fundamentadamente, identifique parceiros e afecte os recursos para tal necessários ? É justo e eficaz centrar a atenção e a crítica nos laboratórios, ignorando ou camuflando a actuação e a parte de responsabilidade dos agentes económicos e das autoridades político-administrativas ? Pretende-se esconder que o capital privado não participa no esforço de inovação tecnológica de base nacional ? Pretende-se fazer esquecer que os Governos mantêm congelados os recrutamentos, bloqueiam a revisão dos quadros de pessoal dos Laboratórios e continuam persistentemente a subfinanciar a investigação científica e tecnológica ? Ou que o Orçamento de Estado para os Laboratórios decresceu quase 8%, em termos reais, entre 1996 e 1997, e que o esforço nacional em I&DE se queda ainda ao nível de 0,7% do PIB ?

Recorde-se que os últimos governos, com o apoio de fundos do I e II Quadros Comunitários de Apoio, promoveram o investimento de muitas dezenas de milhões de contos na criação e reforço de infraestruturas C&T, em muitos casos, de algum modo associadas a laboratórios do Estado, sem que os destinos dessas aplicações de fundos tenham sido completamente divulgados nem avaliados os efeitos estruturantes dos investimentos feitos. É necessário tornar inteiramente claras essas situações e que as correspondentes responsabilidades políticas e administrativas sejam assumidas perante o país e a comunidade científica em particular.

Não será justo nem eficaz pôr em causa os laboratórios do Estado e não cuidar de outras instituições com as quais a actividade daqueles necessariamente se articula e através das quais se projectam na sociedade. É urgente analisar missões, condições de funcionamento e desempenho de Direcções Regionais, Serviços de Extensão, Infraestruturas e Centros Tecnológicos; do Instituto Português de Qualidade e dos Laboratórios de Metrologia; do Instituto da Cooperação Portuguesa, etc. etc. etc.

Não é, na verdade, relevante, actuar apenas ao nível dos laboratórios sectoriais sem actuar concertadamente junto dos agentes socio-económicos; sem dispor de uma política de I&DE que forme com as demais políticas sectoriais um todo consistente, no sentido de promover a intensificação tecnológica, a requalificação da força de trabalho e o aumento da eficácia dos serviços prestados e da produtividade dos operadores económicos e sociais, a começar pelos próprios organismos do Estado.

Afirma o PCP

Os laboratórios do Estado, constituem uma parte muito importante e insubstituível do conjunto de recursos, humanos e materiais, afectos a actividades de investigação e desenvolvimento. Aos laboratórios do Estado cabe, em primeira linha, realizar trabalho de investigação aplicada, desenvolvimento experimental, e demonstração de novos produtos e processos; assegurar a prestação ou o suporte à prestação, de serviços especializados de elevado conteúdo científico-técnico (serviços de saúde; protecção do meio ambiente; previsão do tempo; telecomunicações - para citar alguns exemplos), e, ainda, promover, a extensão do conhecimento técnico a utilizadores, individuais e colectivos, a quem esse conhecimento interessa directamente para a execução de tarefas produtivas. Por outro lado, os laboratórios podem e devem ser chamados a desempenhar uma importante função de consultoria, nomeadamente, junto dos órgãos de soberania, Parlamento e Governo, e da Administração Pública em geral. Trata-se de uma função indispensável ao estabelecimento e acompanhamento da execução de políticas sectoriais; à elaboração ou transposição para o ordenamento jurídico nacional, de normas e regulamentos; e, no plano internacional, à cooperação e à negociação de tratados e convénios, nos mais diversos domínios. Função indispensável num Estado moderno, e, naturalmente, de importância tanto maior, quanto mais relevante for a componente técnico-científica dessas actividades.

No decurso dos últimos dez anos, a situação dos laboratórios do Estado, considerada no seu conjunto, agravou-se significativamente. No entender da Comissão para as questões da Ciência e da Tecnologia do PCP a situação exige, em primeiro lugar, o lançamento de um pacote de medidas de emergência para suster a degradação dos laboratórios; e em segundo lugar, a organização de um amplo debate nacional sobre o papel do sector público de investigação na sociedade portuguesa, um dos pilares em que deve assentar o sistema científico e tecnológico nacional, e sobre as linhas da sua reforma democrática. Quanto às medidas de emergência, elas devem incluir o recrutamento imediato de pessoal investigador e técnico, para sectores, grupos e infraestruturas, ameaçados de extinção a curto prazo, por carência de meios humanos; e injecções localizadas de capital, para permitir o desenvolvimento de actividades, que se arrastam, ano após ano, em penosa letargia, vítimas de sub-financiamento crónico, e assegurar a renovação de equipamentos e instalações em situação de ruptura. Medidas a acertar, naturalmente, com os laboratórios, e passando necessariamente por um verdadeiro diálogo com os que neles trabalham.

Quanto ao debate nacional, que é urgente, ele deverá envolver todos os parceiros sociais interessados, em particular, parceiros do sector produtivo e dos serviços, e a própria Assembleia da República.

Sem transparência e sem diálogo, sem a efectiva participação dos trabalhadores do sector, investigadores e técnicos, não é possível revitalizar o sector público da investigação. Hoje e no futuro, o desenvolvimento do País, a construção de uma vida melhor para os portugueses, depende da capacidade colectiva de dominar e aplicar novos conhecimentos científicos e técnicos, e de os pôr ao serviço da comunidade. Para estimular essa capacidade, há que investir, em primeiro lugar, na educação e na formação profissional, mas há que investir também, e decididamente, na consolidação e no desenvolvimento das infraestruturas nacionais de I&DE, vocacionadas para uma intervenção económica e social, que são os laboratórios do Estado.

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