Intervenção de António Filipe na Assembleia de República

Autoriza o Governo a rever vários Códigos

Autoriza o Governo a rever o Código de Processo nos Tribunais Administrativos, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o Código dos Contratos Públicos, o Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, a Lei de Participação Procedimental e de Ação Popular, o Regime Jurídico da Tutela Administrativa, a Lei de Acesso aos Documentos Administrativos e a Lei de Acesso à Informação sobre Ambiente
(proposta de lei n.º 331XII/4.ª)

Sr.ª Presidente,
Sr.ª Ministra da Justiça,
A questão que temos de colocar agora, sem prejuízo de depois, na intervenção que faremos, abordarmos questões de conteúdo desta proposta de lei, é a de que, quando se apresenta uma proposta de lei para uma reforma desta envergadura a um mês do final constitucional da sessão legislativa, está, obviamente, a inviabilizar-se um debate parlamentar minimamente adequado. Não é possível que, numa matéria destas, possa haver uma discussão com a profundidade que se impõe e com as audições que seria necessário realizar pela Assembleia da República a um mês do final da Legislatura. Não é, manifestamente, possível! Aliás, lembramo-nos do debate que houve aqui, em 2002, em que a Assembleia da República teve oportunidade de ouvir o Professor Mário Aroso de Almeida — que era um dos autores materiais da proposta de lei apresentada na altura —, em que ouvimos muitos especialistas e, portanto, tivemos oportunidade de realizar um debate adequado sobre esta matéria, que, manifestamente, neste período, não é possível.
Portanto, em relação a esta questão de saber se teria sido adequado apresentar uma proposta de lei material ou uma proposta de autorização legislativa, o Governo até poderia responder muito simplesmente: «Como é que queriam uma proposta de lei material para discutir esta matéria a um mês do final da Legislatura?! Portanto, está aqui a autorização legislativa». E, convenhamos, se em relação à maior parte destas matérias, seguramente, é constitucional fazê-lo por autorização legislativa, já poderá não ser verdade no que se refere à matéria respeitante ao estatuto dos juízes que tem sido considerada matéria de reserva absoluta, como, aliás, se salienta no parecer apresentado pela Associação Sindical dos Juízes Portugueses.
Mas não podemos deixar de lembrar que dos oito diplomas, cuja alteração se propõe, seis deles estão, neste momento, regulados por lei da Assembleia da República, sendo que a lei relativa à ação popular nasceu de uma iniciativa parlamentar na V Legislatura.
Portanto, parece-nos inadequado que esta revisão seja feita exclusivamente por via de autorização legislativa e também nos parece muito duvidoso que algumas matérias que aqui estão reguladas não sejam de reserva absoluta da Assembleia da República. Aquilo que nos parece mais significativo é que não é a um mês do final da Legislatura que o Governo propõe à Assembleia da República uma reforma desta envergadura e com esta importância.
(…)
Sr.ª Presidente,
Peço a palavra para fazer uma interpelação à Mesa sobre o andamento dos trabalhos deste processo legislativo.
Sr.ª Presidente,
A Sr.ª Ministra insinuou que nós não queríamos trabalhar até ao último dia da Legislatura, dizendo que ela o faria e que nós devíamos fazer o mesmo.
Não tenha dúvida nenhuma, Sr.ª Ministra, de que trabalharemos até ao último dia das nossas funções, mas queríamos trabalhar adequadamente. Mas para trabalharmos adequadamente era bom que o Governo tivesse feito o seu trabalho e apresentado atempadamente a proposta de lei, e isso o Governo não fez.
(…)
Sr.ª Presidente,
Sr.ª Ministra,
Sr.ª Secretária de Estado,
Srs. Deputados:
Há uma matéria que nos parece que deveria merecer uma atenta discussão a propósito destas alterações apresentadas à lei de processo nos tribunais administrativos e que tem a ver com o recurso à arbitragem.
Ainda neste mês de abril, fomos confrontados com a notícia de que o Estado vai ter de pagar 150 milhões de euros à Brisa porque assim foi decidido num tribunal arbitral. Ou seja, a Brisa queixou-se pela introdução de portagens na concessão da Costa de Prata e o Estado vai ter de lhe pagar uma indemnização de 150 milhões de euros e isso foi aceite por um tribunal arbitral.
Todos nós temos na memória a amarga experiência do navio Atlântida, em que, recorrendo a um tribunal arbitral, o Estado desistiu de litigar. Ou seja, o Governo dos Açores não quis o navio e o tribunal arbitral decidiu que os Estaleiros Navais de Viana do Castelo não só tinham de ficar com o navio a apodrecer como ainda tinham de indemnizar o Governo Regional dos Açores em 40 milhões de euros. O que aconteceu foi que, extintos os Estaleiros Navais de Viana, o navio foi vendido a preço de sucata a um particular que, por sua vez, já o conseguiu vender por mais do triplo do preço por que o comprou.
Todos nós temos, ainda, a amarga experiência do que foi o recurso aos tribunais arbitrais no caso do hospital Amadora-Sintra.
Ora bem, isto para dizer o quê? Para dizer que contestamos vivamente que, em matéria de direito administrativo e, mais ainda, se pensarmos que, nesta proposta de lei, se prevê que a validade dos atos administrativos possa ser submetida a tribunais arbitrais, estamos aqui a subverter completamente o princípio da legalidade administrativa de uma forma que, do nosso ponto de vista, suscita as maiores reservas quanto à sua constitucionalidade. Porque o Estado tem de defender o interesse público, o Estado não pode atuar como se fosse um particular, prescindindo dos seus direitos e prescindindo de uma avaliação da legalidade dos atos do próprio Estado e da legalidade das relações jurídicas que se estabelecem entre o Estado e os particulares.
O recurso à arbitragem é um recurso dos ricos. A arbitragem, em matéria fiscal, é um exemplo mais do que elucidativo disso mesmo. Se um pobre cidadão deixar de pagar o IMI, levam-lhe couro e cabelo; se for um grande devedor ao Estado, recorre à arbitragem e a dívida fica meio por meio e assistimos a um escandaloso perdão fiscal.
Devo dizer que concordamos que o parecer que nos foi enviado pela Associação Sindical dos Juízes Portugueses, o qual suscita as maiores dúvidas sobre esta possibilidade que se prevê de alargamento do recurso à arbitragem, tanto mais que, em determinada disposição desta proposta de lei, se prevê que o Estado possa ter de aceitar prescindir da possibilidade de recurso aos tribunais administrativos.
Ora bem, se isso é aceitável, apesar de muito discutível, nas relações entre privados, do nosso ponto de vista, é absolutamente inaceitável que o Estado possa admitir um compromisso arbitral de não recurso aos tribunais administrativos para resolver os seus litígios.
Esta é uma matéria sobre a qual pensamos que, em nome da transparência no funcionamento do Estado e até em nome — e vou dizer as palavras — do combate à corrupção, deveríamos ter os maiores cuidados. Do nosso ponto de vista, o Estado, em caso algum, deveria recorrer à arbitragem, porque o que está em causa é a idoneidade do Estado e o respeito pelo princípio da legalidade.

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